Caso Odair: as perguntas, as respostas e as (várias) dúvidas
Odair Moniz ameaçou os agentes com uma faca?
“Quando os polícias procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca, tendo um dos polícias, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito, em circunstâncias a apurar em sede de inquérito criminal e disciplinar”.
Esta é a passagem do comunicado exarado pela PSP no próprio dia da morte de Odair Moniz, ao fim da manhã, na qual, para justificar os disparos mortais efetuados contra o cozinheiro de 43 anos, nascido em Cabo Verde e morador no Bairro do Zambujal, se alegava legítima defesa.
Uma alegação que o Ministério Público, pela mão da procuradora Patrícia Naré Agostinho, não subscreve. Na descrição do ocorrido que resulta da investigação judicial - a qual, como foi noticiado pelo DN, recorreu às imagens de câmaras de videovigilância existentes no local - nunca é referida a existência de qualquer faca (ou outra arma) em poder de Odair.
Refere-se porém que “nas imediações do local onde o corpo de Odair caiu, próximo da viatura que ali estava estacionada, e cerca de dois minutos após o corpo ter sido retirado, encontrava-se e foi apreendido [não é dito por quem] um punhal com 25 centímetros de comprimento, 15 centímetros de lâmina serrilhada e cabo de 10 centímetros em plástico de cor preta, com as inscrições na lâmina ‘MACHO’.” Este punhal não tinha, certifica o MP, “vestígios biológicos em quantidade suficiente para obter um perfil de ADN”. Assim, o MP não chegou a qualquer conclusão sobre a origem desta arma branca.
Onde e como foi Odair atingido?
O agente que disparou e Odair Moniz estariam, diz o despacho de acusação, a uma distância entre 20 e 50 centímetros quando o primeiro “apontou em frente para a zona do tórax” do segundo e “disparou um tiro que atingiu este na zona anterior esquerda do tórax”.
Como Odair se mantivesse de pé mesmo após ser atingido, prossegue o documento do MP, o agente “andou uns passos para trás, e, a uma distância entre 75 centímetros e um metro, e estando Odair Moniz de frente para si, com a arma de fogo na sua mão direita apontou ligeiramente para baixo na direção de Odair Moniz e disparou um tiro na direção deste, atingindo-o na zona genital e na perna direita”.
Odair caiu “tentando amparar a queda com as mãos”, prossegue o relato. Quando estava no chão, o segundo agente desferiu-lhe uma pancada com o bastão e “o corpo rolou e imobilizou-se na posição de decúbito dorsal”.
A primeira bala “penetrou na cavidade torácica pelo sexto espaço intercostal anterior esquerdo, com fractura do sétimo arco costal, saiu da cavidade torácica e penetrou na cavidade abdominal (…), perfurou o estômago e aorta abdominal, fracturou o 12º corpo vertebral torácico e saiu do corpo pela região dorsal”; a segunda bala “perfurou a bolsa preta que Odair trazia à cintura, raspou na base do pénis à direita e no escroto direito e (…) saiu do corpo no terço médio da face posterior da coxa direita.”
Foi a primeira bala, “em consequência das lesões traumáticas toraco-abdominais, com atingimento do estômago e laceração aórtica”, a causar a morte.
Que levou os agentes da PSP a perseguir o automóvel conduzido por Odair?
De acordo com o despacho de acusação, que aparentemente assume a versão dos dois agentes - a não ser que existam imagens de câmaras de vigilância ou testemunhas a corroborá-la, o que não resulta claro da leitura -, estes, que haviam entrado ao serviço às 23H30, estavam no seu carro-patrulha quando viram o automóvel conduzido por Odair “a sair do interior do Bairro Alto Cova da Moura e a direcionar-se para a avenida 25 de Abril [na Amadora]. Porém, ao avistar a viatura policial, o condutor da viatura (…) mudou a trajetória da marcha, transpondo um traço contínuo e seguindo pela avenida da República sentido ascendente”.
É em reação à contravenção - “por ter sido constatada a infração de trânsito e a alteração de percurso” -, narra o despacho, que “foi encetada perseguição, tendo sido dada ordem de paragem através dos meios audiovisuais [sic] existentes na viatura policial, ao que o condutor desobedeceu, acelerou a marcha e colocou-se em fuga”.
Recorde-se que a PSP, no seu primeiro comunicado sobre este caso, enviado às 11H58 de 21 de outubro para as redações, afirmava apenas que o homem baleado se havia “posto em fuga”, “ao visualizar uma viatura policial”, sem mais informação: “Pelas 05h43, no Bairro Alto da Cova da Moura [a PSP] procedeu à interceção de um indivíduo que momentos antes se havia colocado em fuga à polícia. Minutos antes [da interceção], na Avenida da República, na Amadora, o suspeito ao visualizar uma viatura policial encetou fuga para o interior do Bairro Alto da Cova da Moura, também, na Amadora”. Ou seja, no comunicado, que a PSP já esclareceu ter sido baseado no auto de notícia que teria sido lavrado pelos agentes (e escreve-se “teria sido” porque o MP instaurou um inquérito criminal separado para investigar a eventual falsificação do documento - ver mais à frente neste texto), não há qualquer referência à transposição de um traço contínuo como justificação da perseguição.
A autópsia a Odair revelou, através dos exames toxicológicos, “a presença de etanol na concentração de 1,98 g/l e canabinóides
(Delta 9-tetrahidrocanabinol), na concentração de 1 ng/ml”. Conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 gramas por litro (g/l) é crime punível com até um ano de prisão.
Que sucedeu quando os dois automóveis - o de Odair e o da PSP - pararam?
Na narrativa do despacho de acusação, o veículo de Odair reentrou no bairro da Cova Moura sem reduzir a velocidade, “colocando a integridade física de todos os utentes da via em risco, obrigando-as a desviar-se da fonte de perigo, resguardando-se atrás de viaturas e junto aos edifícios”. Razão pela qual os agentes terão decidido desligar “os meios audiovisuais [sic] da viatura policial”, “cessando o seguimento da viatura” e “reduzindo a velocidade da viatura policial, por haver várias vidas a serem postas em causa”.
Ainda assim, prossegue o despacho, “volvidos alguns instantes o condutor da viatura perdeu o controlo da mesma, despistando-se, embatendo desta maneira em várias [o MP contabiliza três] viaturas parqueadas na referida artéria, ficando permanentemente imobilizado e impossibilitado de continuar a fuga com a mesma”.
O agente que conduzia - o mesmo que viria a disparar, e que passaremos a referir por “agente 1” - terá parado o carro-patrulha ao lado do automóvel de Odair, tendo o seu colega (referido no despacho como “arvorado”, significando que liderava a patrulha) saído de imediato, dirigindo-se ao condutor fugitivo, que saiu então do seu veículo.
O agente 2 e Odair ficaram assim, lê-se na acusação, “frente a frente e nas traseiras das viaturas” momento em que o primeiro terá dito: “Polícia, mãos na cabeça, deita no chão”. Terá repetido a ordem e “ao mesmo tempo sacou a arma do coldre, colocou uma munição na câmara e apontou a arma na direção das pernas de Odair (…) visando o acatamento da sua ordem por este”.
É então este o primeiro momento em que, neste relato, é apontada uma arma a Odair - uma ação que o MP parece aceitar como justificada pela intenção de que ele obedecesse.
Odair foi violento com os polícias?
Após o agente 2 ter apontado a arma a Odair, os dois polícias “rodearam-no” para tentarem algemá-lo. O agente 1, narra o MP, tentou prender-lhe as mãos, mas Odair "levantou o braço direito para o impedir” e tentou afastar-se, sendo empurrado pelos dois polícias e a dada altura agredido nas pernas, com um bastão extensível, pelo agente 2. Aí, Odair avançou para este agente e, sendo agarrado pelo outro, “esbracejou e conseguiu libertar-se”. Foi de novo atingido pelo bastão, agora pelo agente 1, a quem logrou, em resposta, dar um pontapé nas costas, afastando-se de seguida.
É quando Odair se está a afastar que o agente 1 “levou a sua mão direita ao coldre que trazia à cintura, sacou a arma do coldre, colocou uma munição na câmara e, apontando para o ar, efetuou um disparo para o ar”, “permanecendo com a arma na sua mão direita”.
Odair continuou a afastar-se e o agente 1 voltou a disparar para o ar, tendo depois, mantendo a arma na mão, tentado imobilizá-lo. Não conseguiu porque Odair mais uma vez “esbracejou”, avançando na direção do agente “abrindo os braços” e lançando-lhe a mão direita, tentando agarrá-lo.
É aqui, diz o despacho de acusação, que o agente 1 e Odair se envolvem em “confronto físico, aproximando-se um do outro”, tendo Odair atingido o polícia com um murro.
De imediato. prossegue o relato, e estando os corpos de ambos próximos, “a uma distância entre 20 cm e 50 cm”, o agente 1, “com o intuito de o afastar de si e poder imobilizá-lo de imediato, apontou em frente para a zona do tórax de Odair e disparou um tiro que atingiu este na zona anterior esquerda do tórax”.
Note-se que, se na descrição do primeiro tiro para o ar, o despacho refere a colocação, pelo agente 1, de uma (única?) bala na câmara, nos três tiros seguintes - mais um para o ar e dois contra Odair - não há menção à colocação de qualquer bala na arma. Já lá estavam? Nesse caso, por que é que foi preciso colocar uma munição para efetuar o primeiro disparo?
Os agentes podiam recorrer à arma de fogo na situação descrita?
A lei que rege o uso da arma - decreto-lei 457/99 de 5 de novembro - não admite o recurso a arma de fogo (recurso a arma de fogo é por exemplo retirá-la do coldre, assim como disparar para o ar) como meio de obter obediência a ordens policiais.
No elenco de situações que permitem o recurso a arma de fogo - o qual é muito diferente de disparar a arma contra pessoas, ato que tem, naturalmente, um condicionalismo ainda mais apertado - está o repelir de “uma agressão atual e ilícita contra o agente ou terceiros”; “efetuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de haver cometido crime punível com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas brancas ou engenhos ou substâncias explosivas (…)”; “para efetuar a prisão de pessoa evadida ou objeto de mandado de detenção ou para impedir a fuga de pessoa regularmente presa ou detida”; “para vencer a resistência violenta à execução de um serviço no exercício das suas funções e manter a autoridade depois de ter feito aos resistentes intimação inequívoca de obediência e após esgotados todos os outros meios possíveis para o conseguir”.
Refira-se que na altura em que Odair foi abordado pelos agentes o único crime de que aquele poderia ser suspeito era o de “condução perigosa de veículo rodoviário”, previsto no artigo 291º do Código Penal, e que tem pena de prisão até três anos.
Já o recurso de arma de fogo contra pessoas - que inclui apontá-la a pessoas e dispará-la - só é permitido, e continuando a citar a lei, “desde que, cumulativamente, a respetiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo” (ou seja, sem ser contra pessoas) e se verifique uma das seguintes circunstâncias: “Para repelir a agressão atual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física”; “prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas”; “proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou impedir a sua fuga”.
Sublinhe-se que este decreto-lei também impõe a “obrigação de socorro”: “O agente que tenha recorrido a arma de fogo é obrigado a socorrer ou tomar medidas de socorro dos feridos logo que lhe seja possível”.
No despacho de acusação do MP, que certifica que Odair levou uma bastonada já depois de ser mortalmente ferido, nada é referido quanto à obrigação de socorro e se esta foi ou não respeitada - mas há imagens da cena do crime, captadas por moradores da Cova da Moura, que mostram o ferido no chão sem qualquer assistência, enquanto alguém pergunta aos polícias onde ele foi atingido e se é grave.
O que é homicídio com dolo eventual, e porque é que o MP optou por essa acusação?
“Com o intuito de o afastar de si e poder imobilizá-lo de imediato”. É esta a frase que o MP utiliza para “explicar” o motivo pelo qual o agente 1, nascido em novembro de 1996 (estando portanto a dias de completar 28 anos) e que se encontrava há dois anos na PSP, disparou contra Odair.
O MP considera pois que o intuito do polícia não foi matar ou ferir gravemente o homem sobre o qual disparou duas vezes, a curta distância, primeiro na direção do tronco, e depois um pouco mais abaixo, para uma zona onde se encontra a artéria femural.
Na perspectiva do MP, não houve aquilo a que se dá o nome de “dolo direto” - em que se age com a intenção consciente e “direta” de produzir um resultado específico -, mas “dolo eventual”, tal como descrito no número 3 do artigo 14º do Código Penal (CP): “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização”.
O dolo eventual, aplicado ao homicídio, significa que alguém se conforma com a possibilidade de que da sua ação resulte a morte, mesmo se não agiu com o objetivo de matar.
“O arguido sabia que a conduta de disparar, por duas vezes, a curta distância do corpo de Odair era apta a atingir o corpo deste. Mais sabia que se um dos projéteis atingisse zonas vitais do corpo de Odair tal ação era apta a provocar a sua morte”, lê-se no despacho assinado pela procuradora Patrícia Naré Agostinho, que conclui: “Apesar de tal conhecimento o arguido, com o propósito de afastar Odair de si e poder imobilizá-lo, quis atingir com dois projéteis o corpo deste. E disparou o primeiro projétil ciente da curta distância que os separava e consciente de que esse disparo podia atingir zonas vitais do corpo de Odair tendo em conta que apontou para o tórax e previu que pudesse daí resultar a sua morte. Admitindo a morte de Odair como possível, ainda assim o arguido quis desferir e desferiu disparos sobre aquele e conformou- se com a morte daquele.”
Por extraordinária coincidência, Odair Patriky Moniz Moreno Fernandes era familiar de Ademir Araújo Moreno, também ele nascido em Cabo Verde e que morreu em março nos Açores, igualmente, de acordo com uma outra acusação do MP, confirmada pela pronúncia do Juiz de Instrução, vítima de homicídio com dolo eventual.
Ademir, agredido com um murro na cabeça à porta de uma discoteca na Horta, Faial, por um empregado da discoteca, caiu, bateu com a cabeça e morreu. A acusação e a pronúncia consideram que o agressor aceitou a possibilidade de da agressão - perpetrada de surpresa, “à traição”, sem que a vítima a pudesse antecipar ou defender-se - poder resultar a morte do agredido.
Tendo em comum o dolo eventual, as duas acusações apresentam no entanto uma diferença de monta: a que leva o arguido açoriano a julgamento é de homicídio qualificado - previsto no artigo 132º do CP, trata-se de uma forma agravada de homicídio, com pena de 12 a 25 anos de prisão, que ocorre quando a morte é produzida “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”. Isto porque se considerou que a agressão a Ademir foi motivada por “ódio racial”, e por motivo“fútil ou torpe”.
Já no caso de Odair a acusação é de homicídio “simples”, previsto no artigo 131º do CP: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
Entre as circunstâncias que revelam “especial censurabilidade ou perversidade”, elencadas no artigo 132º do CP, e que qualificam o homicídio, está “ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”. O Ministério Público não viu, no entanto, evidência de que a atuação do agente da PSP que disparou sobre Odair se tenha revestido de “grave abuso de autoridade”.
Na acusação, porém, afirma-se que “as circunstâncias de cometimento do facto pelo qual o arguido se encontra acusado revelam uma manifesta e grave violação dos deveres inerentes à função de agente da PSP”, explicando-se porquê: “O arguido não se esforçou por reduzir ao mínimo as lesões em Odair Moniz”; “o arguido não fez tudo o que estava ao seu alcance para preservar a vida humana e recorreu à medida extrema de recurso a uma arma de fogo contra uma pessoa, conformando-se com a possibilidade da morte”. Pelo que o MP requer que o agente seja condenado na pena acessória da proibição do exercício de função - ou seja, que deixe de ser polícia.
Quem foi responsável pela versão da faca na mão de Odair?
A investigação sobre aquilo que face ao resultado da investigação surge como uma falsificação da realidade - a versão dos factos vertida no primeiro comunicado da PSP, segundo a qual Odair teria ameaçado os agentes com uma arma branca, e que proviria do auto de notícia da autoria do agente ou agentes envolvidos - está ainda em curso.
No despacho de acusação, lê-se: “No decurso das diligências de investigação realizadas surgiu a suspeita de que o auto de notícia elaborado pela PSP padece de incongruências e de inexactidões”. Uma das suspeitas, explica o MP, “é, desde logo, quanto à sua autoria”. Isto porque o auto teria sido elaborado pelo agente agora acusado de homicídio, no dia 21 de outubro de 2024, a uma hora - 14H55 - em que ele estava a ser ouvido no Polícia Judiciária, numa “diligência que se iniciou pelas 14H40 e terminou pelas 18H00”. Informa o MP que, “por despacho de 19 de dezembro de 2024, foi extraída certidão para investigação autónoma destes factos”.
Recorde-se que na passada semana o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, António Sérgio Henriques, foi condenado a dois anos e meio de prisão, com pena suspensa, pelo crime de denegação de justiça e prevaricação, precisamente por ter sido considerado culpado de “martelar” os relatórios relativos à morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março de 2020 em custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, e pela qual foram condenados, a nove anos de prisão efetiva, três ex-inspetores daquela extinta polícia.