Na sua primeira entrevista nos media portugueses, o diretor clínico da Clínica dos Arcos declara-se chocado com relatos de mulheres que ali chegam encaminhadas dos hospitais e se queixam de atitudes cruéis e culpabilizadoras por parte de funcionários do SNS.
Na sua primeira entrevista nos media portugueses, o diretor clínico da Clínica dos Arcos declara-se chocado com relatos de mulheres que ali chegam encaminhadas dos hospitais e se queixam de atitudes cruéis e culpabilizadoras por parte de funcionários do SNS.Paulo Spranger

Diretor da Clínica dos Arcos: “Várias vezes ouvi no hospital: ’Lá vem o assassino’”

O obstetra Rui Marques de Carvalho é desde 2023 diretor da única clínica privada que faz interrupção de gravidez no país. No SNS, diz, foi alvo de preconceito e “bocas” por fazer abortos.
Publicado a
Atualizado a

Em 2023, o número de mulheres encaminhadas dos hospitais públicos para a Clínica dos Arcos (CA) aumentou 12,8%. O número foi apresentado no XIII Encontro de Reflexão sobre a Interrupção de Gravidez por Opção da Mulher, em 2024, pelo obstetra Rui Marques de Carvalho, que desde outubro de 2023 assumiu a direção clínica deste estabelecimento de saúde situado em Lisboa. Entre os hospitais que desde 2023 fecharam as respetivas consultas de IG e passaram a encaminhar para a CA estão, como o DN noticiou, o de Vila Franca de Xira, na Área Metropolitana de Lisboa, e o da Horta, nos Açores.

Num dos gráficos apresentados no referido encontro, é visível, entre 2019 e 2023, um aumento de primeiras consultas na CA, de 3288 para 5336; uma evolução que o diretor clínico relaciona com a “falta de resposta” dos hospitais públicos devido ao elevado número de objetores de consciência – uma realidade que diz ter sentido no Hospital de Santa Maria, no qual fez o internato de ginecologia-obstetrícia, foi chefe da equipa da urgência e também responsável pela consulta de Interupção de gravidez, e onde só existiam cinco obstetras não objetores. Facto que atribui, por um lado, ao preconceito existente contra médicos que fazem abortos, e por outro à ausência de reflexão sobre o que significa realmente a objeção.
O preconceito de que sentiu alvo, no Sistema Nacional de Saúde, como médico é, conta ao DN, exercido igualmente contra as mulheres que se dirigem aos hospitais e centros de saúde a requerer uma interrupção de gravidez: “Contam-me situações que me deixam chocado”.

Desde 2007, quando a lei passou a permitir a interrupção de gravidez (IG) até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher, vários hospitais públicos foram fechando as respetivas consultas de IG. Mas não só: chegaram a existir três estabelecimentos privados com IG, mas desde 2024 só existe a CA. Por que acha que tal sucedeu?

Não sei responder por que é que as outras instituições privadas abandonaram, só conheço a realidade da Clínica dos Arcos desde que a integrei em 2023. Suponho que é tão difícil para os estabelecimentos privados contratar profissionais de saúde para fazer IG como para o sistema público, onde só 13% dos obstetras fazem. O que sei é que a experiência acumulada e o know-how das pessoas que aqui trabalham permite dar uma resposta que é essencial ao Serviço Nacional de Saúde – se não existisse a CA a funcionar o problema que temos com a IG seria gravíssimo, não haveria resposta, sobretudo na zona da Grande Lisboa e também no Centro e Sul do país.

Ou então os hospitais públicos teriam mesmo de se organizar de modo a fazerem IG.

E como? Se a esmagadora maioria dos médicos obstetras se afirma objetor… No Hospital de Santa Maria, em muitos obstetras, só cinco eram não objetores. Creio que há pessoas que se declaram como objetoras porque não querem ser alvo de algum preconceito. Porque é desagradável a pessoa estar no local de trabalho a ouvir piadas ofensivas.

Aconteceu consigo?

Como me afirmei muito cedo não objetor, e iniciei em 2008 a consulta de IG em Santa Maria, sofri ocasionalmente alguns comentários do tipo jocoso – "Olha, lá vem o assassino", por exemplo. Algo que sempre tentei ignorar e a que nem sequer dava resposta. Porque para mim é fundamental o acesso das mulheres a uma IG feita em condições de segurança clínica. Sempre entendi a IG clandestina como um problema de saúde pública e contactei de perto com muitas das complicações a ela associadas, situações por vezes muito graves que acabaram por exemplo em histerectomia. E desde a descriminalização, complicações como abortos incompletos são residuais. É que – é o meu entendimento – nós não podemos ser contra o aborto; sempre existiu e sempre existirá. Quando nos afirmamos contra o aborto, na realidade estamos a ser contra o aborto feito em locais seguros e em condições clínicas. Tenho muitas pacientes, senhoras na pós-menopausa, que nas primeiras consultas falam nos “desmanchos”. Todas as mulheres faziam abortos, mesmo na altura do Estado Novo, quando nem sequer havia políticas de planeamento familiar. Mas existe uma grande pressão, mesmo aqui à porta dos Arcos. Frequentemente temos pessoas a interpelar as mulheres que aqui vêm, o que é abusivo.

Essa pressão sobre as mulheres também existe no sistema público de saúde.

Sim, há situações de senhoras que se queixaram de, quando precisam de uma IG e pertencem a uma área hospitalar em que não há não objetores e vão pedir o acesso, sentirem que foram alvo de julgamento e de comentários do tipo “veja lá o seu bebé” ou “vai matar o seu bebé” – isto ainda hoje se passa, mulheres muito fragilizadas, que chegam com experiências muito negativas dos hospitais. Têm vontade de se queixar, mas muitas vezes não sabem onde ou como. Era útil existir uma avaliação sobre essas atitudes, ainda que seja muito difícil. Situações como fazer um ecografia e estar a mostrar, a obrigar uma mulher a ouvir batimentos cardíacos.

Mulheres têm relatado isso ao DN. E que se chegarem ao hospital às cinco semanas de gravidez lhes dizem que não podem fazer logo a interrupção, porque têm de esperar até haver batimento cardíaco.

Isso não tem sentido, e passa-se com alguma frequência. O facto de poder haver um aborto espontâneo – 15 a 20% das gravidezes acabam com um aborto espontâneo – não implica, na minha ótica, obrigar uma mulher que tem um saco gestacional ( que é o que existe às quatro semanas) a protelar a sua decisão. É uma violência que não é justificável, e que já me foi relatada mais de uma vez. Não considero isso eticamente aceitável, é além do mais estar a prolongar no tempo a gravidez quando se sabe que quanto mais cedo for feita a interrupção, menor risco há. Outra situação com que me deparei mais vezes do que seria desejável foi a dificuldade em referenciar mulheres com complicações de interrupção, como aborto retido [o que sucede quando, no aborto medicamentoso, não há expulsão completa], em que era preciso um procedimento cirúrgico a posteriori, para equipas de urgência em que eram todos objetores e às vezes não era assim tão linear.

Mas os objetores têm de estar disponíveis para intervir em situações de risco de vida.

Não estou a falar de situações emergentes, mas de situações que podem ser marcadas electivamente – e isso torna-se pernicioso, difícil de gerir. Até tenho dificuldade em perceber, porque a objeção de consciência é um direito que assiste a qualquer médico, em relação a algum tipo de ato clínico que de algum modo viola a sua moral, os seus princípios, religiosos, etc. Mas do meu ponto de vista a objeção de consciência em relação à IG aplica-se ao ato em si: à prescrição medicamentosa, ou ao procedimento cirúrgico. Não há objeção nem antes nem depois. Não me faz muito sentido, como já vi acontecer, haver colegas que se recusam a fazer uma datação ecográfica a uma mulher que eventualmente vá fazer uma IG. E da mesma forma não se podem negar, alegando objeção de consciência, a tratar complicações da IG. Mas passa-se, e é algo que terá de ser regulamentado.

Ainda sobre a objeção: há na auditoria da Inspeção de Saúde sobre IG uma revelação muito interessante, relacionada com o facto de a regulamentação da lei permitir aos profissionais de saúde objetarem a uma "causa" de IG e não a outra – por exemplo à IG até às 10 semanas e não à IG por anomalia fetal, que é até às 24: há muito mais médicos a objetar à IG até às 10 semanas que às outras "causas". Como vê isso?

Deve-se ao facto de que na cabeça da maioria dos obstetras as outras causas de IG – anomalia fetal, risco para a saúde da mulher, etc – têm uma justificação que não só a opção da mulher. E o próprio Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida aceita isso – que um médico seja objetor à IG por decisão exclusiva da mulher e não ser à IG em geral. Isto depende da moral de cada um. A mim, não me faz sentido absolutamente nenhum, é das coisas que me faz mais confusão em termos de interpretação pessoal. Porque quando a pessoa é objetora à IG por opção da mulher, como se a mulher não tivesse direito de decidir sobre o seu corpo, e não à IG por anomalia fetal, está significar que há vidas mais válidas que outras. Acho que quem é verdadeiramente objetor de consciência objeta a tudo. E acho que as pessoas muitas vezes não pensaram suficientemente, com profundidade, sobre o que é ser objetor de consciência. Às vezes é tudo muito superficial, a forma como se analisam as coisas.

Os dados que apresentou numa reunião recente sobre IG indicam que 51% das mulheres atendidas aqui na clínica não usavam um método contracetivo. Isto corresponde a quê, pessoas muito jovens?

Não, não. Às vezes podemos ter esse preconceito, achar que se trata de algo típico das miúdas adolescentes ou mulheres muito jovens, mas também temos mulheres maduras, na casa dos 40, que não usam métodos anticoncecionais. Muitas dizem, durante o nosso atendimento e depois de falarmos de planeamento, que têm consulta marcada no centro de saúde e que vão optar por métodos de longa duração.

Disse numa entrevista à TV espanhola que sucede haver mulheres que chegam à clínica em cima do fim do prazo legal das 10 semanas e que acabam por não poder interromper a gravidez por causa da imposição do período de reflexão de três dias. Não podem ser isentadas dessa “reflexão” obrigatória?

O período de reflexão é obrigatório, está na lei, não podemos deixar de o fazer. Se a mulher chega aqui às 10 semanas e quatro dias, vai ultrapassar o prazo legal por causa do período de reflexão. Que devia ser abolido, porque é uma visão paternalista do Estado sobre a mulher, que nem sequer tem evidência científica atual; na nossa casuística, à volta de 85% das mulheres que solicitam IG aqui na clínica têm a sua decisão completamente tomada. Trata-se de um dos aspetos arcaicos da lei, que não é reformulada desde 2007. Outro aspeto que não faz sentido é ter de haver dois médicos a validar o procedimento, partindo de um princípio de desconfiança em relação aos profissionais de saúde. Esses dois aspetos e o prazo - 10 semanas é o mais curto da Europa – deveriam ser alvo de alteração na lei. 

Na sua primeira entrevista nos media portugueses, o diretor clínico da Clínica dos Arcos declara-se chocado com relatos de mulheres que ali chegam encaminhadas dos hospitais e se queixam de atitudes cruéis e culpabilizadoras por parte de funcionários do SNS.
“Interrupção de gravidez? Só pode fazer até às duas semanas”
image-fallback
"Nós aqui como é hospital amigo dos bebés não fazemos": como o SNS viola a lei do aborto
Na sua primeira entrevista nos media portugueses, o diretor clínico da Clínica dos Arcos declara-se chocado com relatos de mulheres que ali chegam encaminhadas dos hospitais e se queixam de atitudes cruéis e culpabilizadoras por parte de funcionários do SNS.
Quanto mais longe se está de um serviço de aborto legal, menos se aborta
image-fallback
IVG nos Açores. "Obrigaram-me a assinar como objetor"

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt