Ilustração: Vítor Higgs/DN
Ilustração: Vítor Higgs/DN

Quanto mais longe se está de um serviço de aborto legal, menos se aborta

Interrupção de gravidez diminui com a distância a serviço e aumenta a probabilidade de se abortar mais tarde. Conclusões do primeiro estudo a avaliar a taxa de aborto no país em função da dificuldade de acesso. “Pode haver mulheres impedidas de abortar por morarem no sítio errado”, conclui autor.
Publicado a
Atualizado a

"Está desconfiada de quanto tempo?”      

“Seis ou sete semanas.”    

 “Então aconselho a vir depressa porque quando se pensa que é seis ou sete geralmente está-se perto das nove.”

“Ai, não me diga. Mas isso é muito perto do limite legal [10 semanas de gravidez].”

“É. Eu não informo só o que perguntam, informo de tudo o que pode acontecer.”

“E a interrupção faz-se aí?”

“Sim senhora. Já se faz aqui na Região Autónoma dos Açores desde o dia 4 de dezembro.”

“Muito melhor do que ir para Lisboa, realmente.”

“É, e a senhora não é exposta a ninguém, não é como antes, com a passagem por vários serviços até chegar a Lisboa, e estar longe da família, essas situações todas. É mesmo aqui e tratamos de tudo, passa por mim, por uma enfermeira e por um médico. E por um psicólogo, se desejar.”

Do outro lado do telefonema, a voz desta funcionária do Hospital do Divino Espírito Santo (HDES), em Ponta Delgada (Ilha de São Miguel, Açores), é profissional, atenta, sem pressa. Tudo parece estar ali a correr de acordo com o estipulado na lei que, em 2007, passou a permitir a interrupção da gravidez (IG) até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher  -  até no prazo de tempo entre o primeiro contacto com o SNS e a primeira consulta, que não pode exceder cinco dias (uma estipulação legal que é muito frequentemente violada no Serviço Nacional de Saúde, como o DN denunciou em investigação publicada a partir de fevereiro de 2023): “Se na ecografia se vir que tem embrião e uma gravidez viável, e está dentro do prazo, não espera mais de 48 horas pela consulta”, explica a amável assistente técnica do HDES.

A conversa relatada tem lugar a 12 de dezembro de 2023, oito dias após a anunciada (pelo Governo Regional) reabertura, a 4 de dezembro, da consulta de IG -  que tinha fechado em 2021. Esse fecho, como o DN havia noticiado em maio, obrigava as mulheres de São Miguel (a maior ilha açoriana, com 140 mil habitantes) que queriam interromper a gravidez a fazer 1500 quilómetros até Lisboa, para ali obterem o procedimento numa clínica privada protocolada com os hospitais açorianos; em 2022, tal aconteceu com 80. O mesmo sucedia com as mulheres da Ilha Terceira, a segunda mais populosa do arquipélago (58 mil habitantes), cujo hospital também não realiza - e nunca realizou - interrupções de gravidez até às 10 semanas; em 2022, contabilizaram-se ali 38 IG protocoladas com a Clínica dos Arcos, em Lisboa.

O único hospital das ilhas que efetuava este tipo de IG era, até outubro - quando também essa consulta fechou, por um dos dois médicos não-objetores ter declarado igualmente objeção de consciência (a lei em vigor exige que haja dois médicos no processo de IG) -, o Hospital da Horta, no Faial (14 500 habitantes), que serve também a população do Pico (13 700) e de São Jorge (8 300). Em 2022, fizeram-se na Horta 32 IG até às 10 semanas; no conjunto dos três hospitais, contabilizaram-se 150 nesse ano, a esmagadora maioria das quais - 118, ou 78,6% -, correspondentes a mulheres que tiveram de se deslocar a Lisboa para obterem um cuidado de saúde garantido pela Lei da República.

A 8 de janeiro, pouco menos de um mês após o telefonema do DN para o HDES, era dada nota pública de que ali se tinham já realizado, desde 4 de dezembro, 16 interrupções de gravidez até às 10 semanas (das quais, segundo fonte do Hospital da Horta, “cinco ou seis” lhe corresponderão). Comparando com os números de 2022, parece existir um incremento. Se no resto do ano o ritmo for semelhante, contabilizar-se-ão 192 destas IG nos Açores; note-se que em 2011, quando o HDES começou a efetuar IG, o número global nos Açores subiu 14,6%, dos  178 de 2010 para 204.

“A distância pode impedir as mulheres de abortar”

Claro que a variação no número de interrupções se pode dever a muitos fatores, mas a reabertura da consulta de IG no hospital da maior ilha açoriana pode constituir aquilo que os cientistas denominam de “experiência natural”, e corroborar as conclusões do estudo realizado pelo economista António Melo para a sua tese de doutoramento: de que quanto mais longe se encontra uma região geográfica de um serviço que providencia interrupção de gravidez, menor a taxa deste cuidado de saúde na população dessa região.

“Quanto mais longe, menos abortos”, resume este cientista ao DN. “A distância pode potencialmente impedir as mulheres de abortar. Haver pessoas que são impedidas de abortar por morarem no sítio errado.”
Essa diminuição do número de abortos legais em função da distância ao serviço de IG foi quantificada pelo economista: “Os municípios portugueses que estão a mais de uma hora do serviço de IG mais próximo têm menos 22% de abortos que municípios que estão a até 30 minutos do serviço.” A distância, em tempo, mencionada é medida num trajeto de automóvel, podendo assim corresponder a uma muito maior (e mais penosa) distância temporal em transportes públicos.

A taxa calculada está “controlada em termos do número de mulheres férteis [15/49 anos] por região”- não podendo assim ser atribuída ao facto de as populações mais distantes dos grandes centros, onde geralmente estão os hospitais, serem menos numerosas. Aliás, sem efetuar esse controlo, as diferenças são muito maiores, como se lê no  estudo: “84% dos abortos dizem respeito a mulheres que residiam a 30 ou menos minutos de um serviço de interrupção de gravidez, 13% às que residiam a entre 30 e 60 minutos, e 3% àquelas a mais de uma hora.”

O período analisado inicia-se em 2008, logo após a legalização da IG por decisão exclusiva da mulher (que ocorreu em abril de 2007, na sequência do referendo de 11 de fevereiro desse ano) e termina em 2016. Isto porque a partir desse ano, alegando a entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados, a Direção-Geral da Saúde (DGS) deixou de publicar informação relativa à IG por hospital - não permitindo assim efetuar a correspondência entre cada serviço, a origem geográfica das mulheres, o tempo que esperaram pela primeira consulta e pelo procedimento, o prazo de gravidez e o tipo de aborto (medicamentoso ou cirúrgico).

Ao longo desse período, como o DN já noticiou, uma série de hospitais fecharam as respetivas consultas de IG. Esse facto é, informa António Melo, refletido no estudo: “O que encontrei foi precisamente que regiões onde se fecha o serviço de IG sofrem umas redução dos abortos legais, e que as mulheres aí residentes demoram a chegar ao contacto com um serviço onde haja consulta prévia [o nome dado na lei à primeira consulta do processo de IG, na qual é geralmente efetuada a datação da gravidez e dada toda a informação, após a qual é obrigatório esperar três dias (o chamado “período de reflexão”) até ao procedimento abortivo].” Contacto esse, lembra o cientista, “que pode não ser o primeiro que tiveram com o SNS; podem ter andado a bater às portas erradas até as encaminharem para o sítio onde podem abortar.” 

Trata-se da primeira análise em Portugal (e, crê o autor, na Europa) do efeito da dificuldade de acesso, em função da distância geográfica/temporal, na taxa de interrupção de gravidez legal. É o tema do paper “Todas as estradas levam ao mesmo destino? Proximidade a serviços de aborto, abortos e respetivas condições em Portugal”, que submeteu para publicação no Journal of Population Economics  e que corresponde à primeira parte da sua tese de doutoramento, efetuada na Universidade de Paris-Dauphine e defendida a 13 de outubro de 2023.

Um dos fatores que, sublinha esta análise, preponderará na diminuição da taxa de aborto em função da distância aos serviços que os providenciam é o curtíssimo prazo legal imposto para a IG por decisão exclusiva da mulher (o menor na Europa; por exemplo em Espanha o prazo é de 14 semanas): “Com apenas 10 semanas para se abortar legalmente, os atrasos que observamos na chegada aos serviços podem explicar por que motivo as regiões com menor acesso à interrupção de gravidez têm taxas mais baixas -  as mulheres podem estar a requerer este cuidado de saúde demasiado tarde para ser autorizado e, consequentemente, levar as gravidezes a termo.”

Ou, lembra o DN, a interromper a gravidez pelos seus próprios meios, ou seja, ilegalmente - uma possibilidade que continua a existir (voltaremos a ela mais à frente). Até porque o economista reconhece não ter quantificado especificamente “uma transmissão total de aborto para fecundidade”, não sendo assim “garantido que todas as mulheres que quereriam abortar legalmente não tenham conseguido abortar”.

Acesso mais difícil produz mais maternidade adolescente?

O que o estudo analisa,  frisa o autor, é número de gravidezes adolescentes - soma dos abortos efetuados por adolescente mais o de mães adolescentes - contabilizadas por município, total que se mantém constante independentemente da distância a um serviço de IG. 
O motivo da escolha da gravidez adolescente, explica-se no paper, é o facto de se partir do princípio de que uma gravidez na adolescência é indesejada, permitindo assim entender o efeito na contraceção da distância para um serviço de IG. Isto para despistar a hipótese de que a existência de uma taxa de aborto menor nos locais mais longínquos se devesse ao facto de que, sabendo ter mais dificuldade no acesso ao aborto, as mulheres recorressem mais à contraceção. O que não aparenta ser o caso.

Mas, adverte  António Melo, se o número de grávidas adolescentes se mantém constante, independentemente de estarem perto ou longe de um serviço de IG, enquanto existem menos abortos à medida que a distância para um serviço aumenta, “quer em princípio dizer que há uma substituição de aborto por gravidez levada a termo (mais nascimentos) à medida que a distância para um serviço aumenta.”

A taxa dessa substituição não está porém, esclarece, quantificada para a gravidez adolescente: “Não se pode retirar diretamente  da minha análise que há menos aborto adolescente à medida que a distância ao serviço mais próximo aumenta. Mas se seguirem o padrão geral, então, de facto, haverá mais mães adolescentes à medida que nos afastamos do serviço de IG.”

Uma vez mais, o caso dos Açores, não incluídos neste estudo, que trabalhou apenas com dados do Continente, poderá, face à reabertura da consulta de IG na mais populosa ilha do arquipélago, constituir uma “experiência natural” também para o efeito da proximidade de serviços na gravidez adolescente. Tanto mais que estas ilhas apresentam a mais alta taxa de fecundidade adolescente do país: em 2022, foi ali de 10,9 por mil adolescentes; o total nacional é de quase metade (6,2), sendo 6,1 no Continente e 3,6 na Madeira (onde existe um serviço de IG desde 2008).

Em 2022, a média nacional de IG adolescente foi de 8,6%. O DN não encontrou dados de 2022 relativos à interrupção de gravidez adolescente nos Açores (236 413 habitantes); na Madeira (253 945 habitantes), no mesmo ano, 10,7% das IG (24) ocorreram com adolescentes. Do total de 224 IG até às 10 semanas ali contabilizadas no período, oito ocorreram com menores de 18 ; 16 tinham entre 18 e 19.

Uma vez que, quando há dificuldade de acesso, ela é ainda mais penalizadora para as jovens - têm por definição menos autonomia e disponibilidade económica -, o facto de até 4 de dezembro, para a maioria das habitantes do arquipélago (de São Miguel e Terceira), o acesso à IG se fazer mediante viagem para Lisboa terá em princípio significado, em linha com os resultados da investigação de António Melo, que naquele território e nessa faixa etária em específico houve uma taxa de abortos inferior à potencial. O economista assente: “Se o caso do Continente é grave em termos de dificuldade de acesso, nos Açores haveria decerto atrasos muito maiores.”

Maior distância, abortosmais tardios - e mais cirúrgicos

Como o título indica, o estudo de António Melo também se debruça sobre as condições em que os abortos ocorrem, quer no que respeita ao tempo de gravidez, quer ao tipo de procedimento. 

“Demonstramos que mulheres que vivem mais longe de um serviço de IG abortam com mais semanas de gravidez e que esse facto é, sobretudo, causado por chegarem tarde aos serviços, possivelmente devido a não saberem como aceder-lhes”, reporta o estudo. “Estimamos que as mulheres que vivem a entre 30 e 60 minutos de um serviço de IG têm uma probabilidade 140% maior de abortar depois das nove semanas e que essa probabilidade é ainda maior - 157% - para as que vivem a mais de uma hora.”

Os atrasos em causa, que potencialmente correspondem a um maior risco para a saúde das mulheres, podem também, lê-se, ter repercussões em outros aspetos do processo abortivo, nomeadamente onde e como os abortos decorrem. “Os hospitais públicos que atendem as mulheres que estão perto do final do prazo podem ter dificuldade em providenciar a interrupção no tempo necessário (…) obrigando-os a contratar o serviço no privado, onde 97% do aborto é cirúrgico [ao contrário do SNS, no qual a esmagadora maioria dos abortos são medicamentosos]. Tudo leva a crer que é esse o motivo pelo qual é mais provável que as mulheres que vivem mais longe dos serviços públicos onde se fazem IG sejam encaminhadas para clínicas privadas e façam abortos cirúrgicos.”

Encontrou-se assim uma correlação positiva entre o tempo de viagem até ao hospital com serviço de aborto e a probabilidade de o aborto ser efetuado numa clínica privada. “A proporção de abortos encaminhados para clínicas privadas [no caso, clínica privada, no singular, uma vez que em Portugal só existem dois serviços não-públicos licenciados para fazer IG e apenas um deles tem protocolos com hospitais do Serviço Nacional de Saúde: a Clínica dos Arcos, em Lisboa] aumenta de 21% entre mulheres que vivem até 30 minutos de um serviço com IG para 37% entre mulheres que vivem a uma hora de viagem. Do mesmo modo, a proporção de IG cirúrgica aumenta de 31% entre as mulheres que residem a 30 minutos de um serviço de IG para 44% naquelas que enfrentam tempos de viagem superiores a uma hora.”

Em geral, assume o economista, as conclusões do estudo não foram exatamente uma surpresa: “No Texas e no Wisconsin, ainda antes da decisão de 2022 do Supremo Tribunal [revogando a decisão de 1973 que declarou o aborto um direito constitucionalmente protegido], se aprovaram leis para fechar as clínicas de aborto e os efeitos, que foram objeto de análise semelhante a esta, não são muito diferentes daqueles que encontramos em relação a Portugal.” 

Sendo que, sublinha, existem várias diferenças entre os dois países. Desde logo, o facto de nos Estados Unidos a maioria das IG se efetuarem em clínicas privada e de o prazo permitido para o procedimento ser muito maior. Mas também, refere, os dados de que os cientistas ali dispõem são de muito menor qualidade que os portugueses: “Há que dizer que os dados da DGS são fantásticos, muito completos.”

Uma diferença interessante entre o estudo português e os americanos é que, lê-se no primeiro, “enquanto estes estudos concluem que a magnitude do efeito [decréscimo das taxas de aborto à medida que a distância para os serviços aumenta] se vai esbatendo com uma maior distância para os serviços, nós vemos o oposto - o impacto é ainda maior quando os municípios estão já longe.” Ou seja, em Portugal, quanto mais afastadas as mulheres estão de um serviço de IG, maior o impacto desse afastamento na sua capacidade de aceder a um aborto seguro.

Esta discriminação em função da localização geográfica comprova que, como o DN já reportou (em maio de 2023, partindo do exemplo extremo dos Açores), a situação de Portugal no que respeita ao acesso à IG legal é muito semelhante à de Itália, país que foi já por duas vezes, em 2014 e 2016, alvo de condenação pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais. Este organismo do Conselho da Europa, que tem a incumbência de fiscalizar o respeito dos Estados-membros pela Carta Social Europeia, considerou que o facto de naquele país 35% dos hospitais (em Portugal são 30%) não providenciarem IG alegando objeção do corpo clínico viola o direito à saúde das mulheres, discriminando-as com base na sua pertença de género, assim como social e  territorial.

“As mulheres que procuram serviços de aborto podem encontrar, na prática, dificuldades substanciais na obtenção desse acesso, apesar de a lei o garantir (…). Em alguns casos, dado o caráter urgente dos procedimentos, as mulheres que desejam interromper a gravidez podem ser forçadas a procurar outros serviços de saúde, em Itália ou no estrangeiro (…), ou a interromper a gravidez sem o apoio e o controlo das autoridades de saúde competentes, (…) ou ser de todo impedidas de aceder aos serviços de aborto a que têm direito legal”, concluiu o Comité, considerando que essas situações “podem envolver riscos consideráveis para a saúde e o bem-estar das mulheres em causa”, violando assim o seu direito à saúde.

“Quem tem dinheiro consegue sempre, o problema é sempre para as mesmas”

“Creio que mesmo para alguém que seja contra o aborto é impossível justificar que uma mulher de Lisboa possa abortar e uma em Portalegre não”, comenta António Melo. “E claro que quem tem dinheiro consegue sempre, o problema é sempre para as mesmas - as pessoas com mais dificuldades económicas, as mais jovens.” 

Atualmente na Universidade de Turim (Itália), o economista, de 29 anos, tinha começado por se interessar pelo tema da interrupção de gravidez porque, conta, leu um estudo americano “que demonstrava que a legalização do aborto baixava o crime e pensei que seria interessante ver o que tinha acontecido em Portugal”. 

Porém ao começar a investigar, dando-se conta de que “havia uma falta de acesso no interior e Alentejo” foi-se afastando daquela abordagem. “Percebi que apesar de Portugal ser um país pequeno e de a lei ter como objetivo que o aborto legal seja acessível a todas as mulheres, há grandes diferenças no acesso, que podem implicar que a lei não esteja a ser cumprida.”

As conclusões deste estudo são mais uma peça do puzzle  que ao longo de 2023 se foi construindo na sequência da já citada investigação do DN sobre o acesso ao aborto legal no SNS. Particularmente relevantes para o descortinar dessa realidade foram as auditorias efetuadas pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) sobre esse mesmo acesso, e cujos relatórios, noticiados pelo DN em setembro de 2023, dão a ver a existência, no SNS, de uma percentagem altíssima - superior a 80%- de médicos objetores de consciência para a interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher, facto que os hospitais alegam para não terem consulta de IG

Acresce que, como o DN relatou através do contacto direto com os hospitais assumindo o papel de uma mulher que queria abortar, além da dificuldade em chegar ao número certo ou ao serviço adequado - muitos hospitais não ostentam nos respetivos sites informação sobre IG (uma falta apontada pela IGAS no seu relatório) -, em vários deles ninguém parecia saber como (ou queria) orientar quem inquiria; como comentou uma das entrevistadas, tudo parece pensado para desencorajar. O DN deparou-se até com uma funcionária que assegurou não ser possível, naquele estabelecimento (o Hospital da Guarda), “fazer isso”, por ser “um hospital amigo dos bebés”.

Noutra das situações reportadas pelo DN, entre o primeiro contacto com o SNS e o procedimento, que ocorreu numa clínica privada (por encaminhamento do hospital), passaram quase três semanas, implicando quatro viagens de 80 quilómetros para a frente e para trás. E uma mulher que estava, em fevereiro de 2023, a tentar efetuar uma IG no SNS viu-se obrigada, por estar a aproximar-se o fim do prazo legal, a fazê-lo a suas expensas no privado.

58 inquéritos de aborto ilegal desde 2020

“Uma corrida de obstáculos”, foi como uma  entrevistada resumiu o que sentiu na sua demanda de um cuidado de saúde garantido na lei.

Sentimento que os números oficiais revelam ser certeiro em relação a pelo menos um quinto das mulheres: de acordo com o relatório da DGS relativo a 2022, 5% das mulheres que conseguiram interromper legalmente a gravidez nesse ano tiveram de esperar entre 11 e 15 dias pela primeira consulta; 20% esperaram acima do máximo de cinco dias estipulados na lei para essa espera. Sendo que, como vários médicos frisaram ao jornal, essas contagens pecam por defeito: a maioria das mulheres não contabiliza os dias que levou até obter uma marcação

Recorde-se que quando em fevereiro de 2023 o DN revelou o calvário que muitas mulheres enfrentam para aceder ao aborto legal, o ministro da Saúde garantiu que os problemas de acesso seriam resolvidos em meras semanas. Porém nenhuma medida foi desde então anunciada; até janeiro de 2024, nenhum serviço hospitalar ou centro de saúde continental abriram ou reabriram consulta de IG. Só nos Açores, como relatado no início deste texto, e já no final de 2023, foi reaberta uma consulta de IG. Mas tal sucedeu na sequência do fecho, um mês antes, da consulta de outro hospital do arquipélago, o da Horta.

Um dos possíveis efeitos destas dificuldades - e até impossibilidades -, de acesso ao aborto no SNS é, como apontou o Comité Europeu dos Direitos Sociais nas citadas duas condenações que deliberou aplicar à Itália, o recurso ao aborto clandestino. Mas, como releva António Melo, “é muito difícil extrapolar com rigor a dimensão do aborto ilegal”. 

Até porque, como vários médicos têm vindo a apontar ao DN, aquele que é historicamente o principal indicador da IG ilegal - as complicações abortivas que dão entrada nas Urgências - não tem tido alterações assinaláveis. Tal pode dever-se, aventam os mesmos clínicos, ao acesso ilegal a medicamentos abortivos que, sendo seguros em interrupções precoces, permitem que o aborto clandestino permaneça invisível quer para o SNS, quer para a investigação criminal.

Perguntada pelo DN sobre o número de processos relacionados com suspeita de crime de aborto ilegal desde 2008, a Procuradoria-Geral da República indicou, em resposta, dados entre 2020 e 2022. Nesse período, informa, foram abertos 58 inquéritos com essas características, sendo arquivados 39 e suspensos provisoriamente 10. Seis - dos quais quatro abertos em 2022- estão ainda em investigação; três inquéritos, um relativo a cada ano, tiveram despacho de acusação.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt