"Disseram que tinha de esperar pelos batimentos cardíacos para abortar"

No Hospital Garcia de Orta, Almada, o circuito imposto a quem quer fazer uma interrupção de gravidez é um labirinto de dificuldades, desmazelo e erros. A Carolina e Maria, de 25 e 27 anos, disseram que "é preciso esperar pelas sete semanas e meia, quando já há batimento cardíaco".
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"Disseram-me: tem de esperar até às sete semanas por causa dos batimentos cardíacos. Achei estranhíssimo, porque se quero abortar, quero abortar, que sentido faz esperar?"

Carolina tem 27 anos e vive em Almada. Tinha 25 quando a 18 de maio de 2021 se descobriu grávida. "Fui ver à internet como era para fazer IVG [interrupção voluntária da gravidez] e dizia lá, acho que foi no site da Direção Geral de Saúde, que me devia dirigir ao centro de saúde da minha área - vivo em Almada - para pedir os exames necessários. Parecia muito simples."

Mas foi tudo menos simples. "Achei um processo com demasiada burocracia e demasiadas falhas de comunicação, tudo muito demorado, muito difícil, pouco humano. E se consigo perceber que se tenha decidido impor na lei três dias de reflexão entre a consulta e a IVG, isso não faz sentido nenhum para quem como eu chega à consulta ao fim de duas semanas de andar de um lado para o outro."

Ao todo o processo de Carolina, entre o dia em que percebeu estar grávida e a interrupção, demorou 14 dias. 14 dias de angústia. "É angustiante mesmo porque a cada dia que passa a pessoa está com mais medo de não conseguir cumprir o prazo. Eu era uma pilha de nervos."

Estaria, ao aperceber-se da gravidez, de "cinco ou cinco semanas e meia". Dirigiu-se no dia seguinte ao centro de saúde e conseguiu consulta logo - "Foi tipo urgência" - mas viria a descobrir que o que ali lhe foi prescrito não coincidia com o que o hospital onde iria fazer a interrupção, o Garcia de Orta, exigia. "Só me passaram exames errados: análises ao sangue e uma ecografia endocavitária [intravaginal], quando, descobri depois no hospital, a aceite é a obstétrica."

Deu-se conta disso quando, precisamente, já com os exames na mão, foi ao hospital para marcar. "A consulta externa de obstetrícia já estava fechada. Pensei "que chatice, vou ter de voltar cá amanhã de manhã". Mas uma enfermeira quis ver os exames que eu trazia e ficou chocada porque a ecografia não era a correta."
Teve então de voltar ao início do processo: de regresso ao centro de saúde, para lhe passarem a prescrição para a outra ecografia. Que teve "grande dificuldade em marcar"
: "Até deixei de dizer que era para IVG, achei que podia ser esse o problema."

Foi em relação à realização dessa ecografia que lhe certificaram ser preciso esperar, para a fazer, pelas sete semanas e meia de gravidez, quando já se detetam os batimentos do coração do embrião: "Explicaram que antes disso podia ter um aborto espontâneo."

E não, não foi um mal-entendido de Carolina ou uma afirmação equivocada de um profissional de saúde isolado. Porque a mesmíssima coisa aconteceu agora à sua amiga Maria, 27 anos, também residente em Almada.

"Descobri que estava grávida a 27 de janeiro, sexta-feira", conta Maria. "Como sabia que a Carolina tinha passado por isso, falei com ela para perceber como seriam os próximos passos. Então dirigi-me logo na segunda, às 8H30 da manhã, ao centro de saúde."

Do acolhimento ali - é um centro de saúde distinto daquele onde a amiga foi - nada tem a apontar. "Foram bastante cuidadosos. Disse qual o motivo da consulta e que tinha alguma urgência, e a funcionária olhou para mim e respondeu: "Muita urgência mesmo". Marcou para o próprio dia, e depois ainda me ligou a antecipar. Voltei lá às 14 horas."

Na consulta, o médico, "muito simpático", disse-lhe que teria de fazer análises ao sangue e uma ecografia obstétrica de primeiro trimestre. "Mas, explicou, não de imediato: tinha de ser depois, para haver batimento cardíaco."

Maria estaria de quatro a cinco semanas aquando da consulta; esperar pelo "batimento cardíaco" implicava mais duas semanas a duas semanas e meia. "Fiquei surpreendida, claro. Porque a minha ideia era de que deveria fazer a interrupção o mais depressa possível, até porque a seguir às sete semanas e meia já só tenho duas semanas de prazo. E aí, depois de a ecografia feita, ainda tenho de ir de novo ao centro de saúde mostrar os exames, depois ao hospital fazer a inscrição - que me disseram ter de ser presencial (inacreditável) -, e depois, ainda, aguardar pela consulta, cujo dia, informaram-me, não é sempre o mesmo, varia de semana para semana."

Tudo isto acrescendo à dificuldade que já Carolina tinha experimentado na marcação da ecografia obstétrica comparticipada. "Liguei para uns 40 sítios, porque na maioria é a pagar. Só consegui duas vagas, uma para dia 20 de fevereiro e outra para 27."

27 de fevereiro é exatamente um mês depois de ter percebido estar grávida - e não sabe com certeza de quantas semanas está neste momento. "Acho que estarei de seis. Mas disseram-me que os exames de sangue não dão a certeza do prazo. Todos os dias a toda a hora penso nisto, estou sempre a fazer telefonemas."

Esta segunda-feira, depois da análise ao sangue, telefonou de novo para o hospital, para a consulta da grávida, na esperança de que a ajudssem. "Expliquei que estou a ter muita dificuldade em marcar a ecografia, e perguntei se não podia fazer lá os exames. Responderam-me que "não está previsto, não é o protocolo". Indicaram-me um sítio na Baixa da Banheira, outro na Amadora, outro em Setúbal, para tentar marcar a ecografia - liguei para o de Setúbal e disseram que não têm convénio com o SNS." Maria respira fundo. "Felizmente tenho alguma flexiblidade no trabalho, mas isto é ridículo, o tempo que se perde a ligar para aqui e ali, a andar de um lado para o outro, a ansiedade em que se fica por achar que se vai passar o prazo legal."

A relatada conversa com a consulta da grávida no Garcia de Orta acrescentou-lhe ainda mais confusão: "Estava a insistir com a senhora nesta questão da ecografia e de não ter muito tempo, e ela disse: "Não se preocupe porque tem até às 10 mais 4." Então naquele momento fiquei mais relaxada: ah, são 14 semanas, afinal, tenho tempo."

Mas o descanso durou pouco. "Achei que não, que não podia ser que o prazo fosse de 14 semanas e ninguém soubesse. Pensei: mais vale prevenir que remediar - e remediar seria comprar fraldas."

Pensou bem: se há países, como Espanha (desde 2010, e com confirmação esta semana, pelo respetivo Tribunal Constitucional, de que tal é conforme à lei fundamental) e França (desde maio de 2022), nos quais 14 semanas é prazo gestacional para o aborto a pedido, Portugal é, de entre os da Europa, aquele onde vigora o prazo mais curto para a interrupção da gravidez a pedido da mulher.

Um prazo apertado e que os inúmeros obstáculos criados por parte de muitos serviços do SNS, e já reiteradamente reconhecidos em várias deliberações da Entidade Reguladora da Saúde, tornam ainda mais aflitivo.

Que quererá então dizer "10 mais quatro"? A ginecologista Teresa Bombas, uma das dirigentes da Sociedade Portuguesa de Contraceção, responsável pelo Comité de Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia, traduz: "Dez semanas completas de gravidez são 10 semanas e seis dias para os médicos."

Quanto à alegada necessidade do batimento cardíaco do embrião para confirmar a gravidez, esta médica do serviço de obstetrícia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra espanta-se: "Isso é uma coisa que está totalmente ultrapassada, já não se faz. Aliás no very early medical abortion [aborto médico muito precoce], para o diagnóstico da gravidez intra-uterina basta vermos um saco gestacional com vesícula vitelina. Se não tivermos esta imagem damos a escolher à mulher repetir a ecografia a uma semana ou fazer uma análise ao sangue [da hormona beta HCG] que repete após três dias. A evolução dessa hormona permite excluir uma gravidez extra-uterina e avaçar com a IVG mais cedo. Não é de todo necessário visualizar o embrião, e visualizar o embrião com vitalidade. A menos que para a mulher seja fundamental saber se a sua gravidez estava a evoluir ou não."

Mas não há normas, critérios uniformizados no SNS em relação ao procedimento? "Sim, guidelines claras. Trata-se de um problema de falta de conhecimento e de articulação da consulta hospitalar com o centro de saúde."

E as mulheres serem obrigadas a andar doidas à procura de um lugar onde lhes façam a ecografia necessária em tempo útil, também não é suposto, assegura a especialista: "O que está escrito é que os hospitais que não asseguram todos os passos têm de estabelecer um circuito de referenciação funcionante. O que significaria que estando protocolado que a consulta prévia é no centro de saúde, este tem de se organizar com o hospital de modo a que os exames sejam executados e os prazos cumpridos."

Os prazos, pois: a lei estabelece que desde o primeiro contacto com o SNS até à consulta prévia (à qual se segue o período de reflexão de três dias, e depois a IVG), só podem decorrer, no máximo, cinco dias - se bem que no último relatório sobre IVG disponível, cuja versão preliminar foi publicada em junho de 2022 e dizendo respeito ao período 2018/2021, a média nacional seja de sete dias.

Cinco dias, não 14 como no caso de Carolina ou, no de Maria, um mês ou até mais.

Mas nem uma nem outra, que teriam no máximo 10 anos quando Portugal decidiu, em referendo, a 11 de fevereiro de 2007, que a interrupção no início da gravidez é um direito das mulheres, sabiam grande coisa sobre a forma como a lei e das suas regulamentações garantem o acesso a esse direito.

Esse, crê Carolina, é um dos problemas. "Era muito importante que quando nos descobrimos nesta situação pudéssemos ir a uma página na internet onde o processo estivesse todo explicado, de forma simples e clara, com o que é preciso fazer, prazos, direitos, exames necessários, tudo. E onde encontrássemos também informação sobre os locais onde não se deve ir porque são todos objetores e/ou obstaculizam de propósito."

Já Maria fica calada a ouvir as explicações que o DN lhe transmite, quer sobre o prazo gestacional para aborto, como esclarecido por Teresa Bombas, quer sobre o que a lei prescreve. "Pois, o médico do centro de saúde disse-me que antes as mulheres iam diretamente ao hospital, e tratavam de tudo lá. Portanto este processo, que me está a irritar tanto, não devia ser assim. Não sabia que não era suposto ser isto. A ideia com que fiquei é que era mesmo pensado para dificultar, para haver menos abortos. Assim fico contente. Por Portugal, por ter uma lei boa, e não pela prática, que está errada."

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