Sete hospitais só fazem abortos se não forem "a pedido da mulher"
Este artigo inicia-se com uma errata: ao contrário do que se tem insistentemente noticiado - também neste jornal - não são 30%, ou 13 (em 42 com serviço de obstetrícia e ginecologia) os hospitais portugueses que não fazem interrupção de gravidez (IG). Na verdade, a percentagem de hospitais com valência de obstetrícia que fazem algum tipo de interrupção de gravidez é de mais de 80%. Só seis hospitais não oferecem este cuidado de saúde: quatro no continente e dois nas Regiões Autónomas (ambos nos Açores).
Isto porque há sete unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que fazem abortos, mas não os até às 10 semanas de gestação, habitualmente denominados "por vontade da mulher"- para os distinguir das outras IG legais, que, sendo igualmente efetuadas a pedido da mulher, apresentam razões médicas ou resultam de crimes de violação.
Isso mesmo se lê no relatório do Processo de Inspeção aos Estabelecimentos de Saúde Oficiais no âmbito da Interrupção da Gravidez da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), datado de agosto, e ao qual o DN teve acesso: "27 estabelecimentos oficiais de cuidados de saúde hospitalares [de Portugal continental] realizam todos os atos respeitantes à interrupção da gravidez previstos [no artigo 142.º do Código Penal ("Interrupção de gravidez não punível")] e sete realizam apenas os atos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 142" (ou seja, efetuam todos os tipos de IG menos a prevista na alínea e) do artigo: "A interrupção de gravidez que for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez."
Tal não se deve, como se constata no dito relatório, a uma especialização/organização dos serviços, mas à declaração de objeção de consciência "seletiva" (na expressão da constitucionalista Teresa Violante) dos médicos. Nesses sete hospitais, de acordo com a informação enviada à IGAS, o número de obstetras objetores de consciência não permite realizar interrupções até às 10 semanas - as mais numerosas de entre as anualmente efetuadas - só os outros tipos de IG. Nomeadamente os chamados "abortos eugénicos", devidos a anomalias fetais, cujo prazo máximo está no limite da viabilidade do feto (24 semanas de gravidez), e que só podem acontecer após decisão favorável de uma comissão de especialistas existente nos hospitais para esse efeito.
Em cinco destas unidades - Hospital de Cascais, da Amadora-Sintra (Fernando Fonseca, Évora (Espírito Santo), Setúbal e Santarém - os médicos que segundo o relatório da IGAS se declararam objetores só o fizeram para o aborto até às 10 semanas. No Hospital de Setúbal também houve dois profissionais de enfermagem objetores só para a IG "a pedido da mulher".
Nos dois outros hospitais da lista - Tâmega e Sousa e São Francisco Xavier (Lisboa) - há uma variação. No primeiro, 19 médicos (e nenhum enfermeiro) declararam objeção à interrupção a pedido da mulher até às 10 semanas; no segundo, 12 médicos (mais uma vez, nenhum enfermeiro) objetam a todos os tipos de IG à exceção do aborto por anomalia ou doença fetal.
A situação está longe de se ater apenas a estas sete unidades do SNS: a listagem da IGAS sobre o número de profissionais de saúde objetores de consciência nos estabelecimentos oficiais do continente (Madeira e Açores não estão incluídos no relatório) permite concluir que a IG até às 10 semanas tem mais do triplo das objeções dos outros tipos de aborto.
Assim, se na referida quantificação 832 profissionais de saúde, dos quais 533 médicos (os restantes 299 são enfermeiros), são objetores para a interrupção até às 10 semanas, apenas 275 objetam ao aborto "eugénico". E os outros "tipos" (para salvar a vida ou preservar a saúde da mulher ou porque a gravidez resultou de crime contra a autodeterminação sexual) de IG nunca chegam aos 300 objetores.
Com uma particularidade: de entre estes "tipos" de IG, aquele que colhe mais objeções é o resultante do crime de violação, com 299 declarações.
Já a interrupção de gravidez que "se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez" suscitou 278 objeções, mais três que as 275 já referidas para aquela que se deve a haver "seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo".
A que reúne menos objeções (259) é aquela que é feita para salvar a vida da mulher, e que por isso mesmo não tem prazo: trata-se da IG que "constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida".
Constata-se assim que o número de objeções varia, não na proporção do número de semanas de gestação, mas da autonomia da decisão da mulher: para os profissionais de saúde, o que parece ferir mais a consciência é a possibilidade de as mulheres decidirem abortar sem ser por "razões médicas".
Esta objeção de consciência "a la carte", ou "seletiva" - na caracterização de Teresa Violante no artigo Abortion and Selective Conscientious Objection (Aborto e Objeção de Consciência Seletiva), publicado em maio de 2023 no blogue do International Journal of Constitutional Law - , individualizada por "tipo" de IG, será, como o DN já tinha noticiado, uma excecionalidade portuguesa no panorama das legislações internacionais.
É o que leva a crer um estudo de 2017 sobre Regulação da Objeção de Consciência ao Aborto, publicado no Health and Human Rights Journal, apontando o país como o único, de entre os analisados, com "objeção de consciência parcial".
Esta "parcialidade" ou "seletividade" é permitida pela regulamentação da lei que em 2007 resultou do referendo através do qual o chamado aborto "a pedido" foi, à imagem do que já acontecia há décadas na generalidade dos países da Europa ocidental, descriminalizado em Portugal.
Até 2007, recorde-se, só eram (desde 1984), permitidos os outros quatro "tipos" de IG.
Assegurando a lei 16/2007 de 17 de abril ("Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez"), no seu artigo 6.º, o direito à objeção de consciência "aos médicos e demais profissionais de saúde (...) relativamente a quaisquer atos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez", prescreve que estes têm de a manifestar em documento assinado, "o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou ao diretor de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objetor preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez."
O documento-tipo dessa declaração está em anexo à Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, que regulamenta a lei, determinando que o profissional de saúde tem de "especificar expressamente" a quais indicações/prazos de interrupção objeta. Essa indicação é, como já referido, efetuada tendo como referência as cinco alíneas do número 1 do artigo 142º do Código Penal ("Interrupção da gravidez não punível").
De acordo com o que o DN conseguiu apurar, a objeção de consciência seletiva terá sido criada, aquando da regulamentação da lei, por receio das autoridade de saúde de que, se a objeção só fosse possível "em bloco" - ao ato do aborto em si -, deixasse de haver médicos suficientes para levar a cabo as interrupções de gravidez por "motivos médicos". Tal significa que desde logo se antecipou que haveria mais tendência nos profissionais de saúde para censurar as motivações das mulheres que para rejeitar a morte do feto.
Ora isso, como sublinha Teresa Violante no texto citado acima, significa que o profissional de saúde "não objeta ao ato em si mas a praticá-lo em determinadas circunstâncias". E a constitucionalista, investigadora na Universidade Friedrich-Alexander (Alemanha), prossegue: "A objeção de consciência absoluta representa uma reivindicação de imunidade legal prevista na legislação que isenta funcionários de praticar um ato, independentemente das circunstâncias. No contexto do aborto, a objeção de consciência seletiva coloca os funcionários na posição de juízes morais do comportamento das mulheres."
Tal, considera a jurista, não pode ser permitido: "A objeção de consciência seletiva permite a possibilidade de julgar em que circunstâncias a mulher merece a proteção assegurada na lei democrática. Nas democracias constitucionais, esse julgamento só cabe aos legisladores e só pode ser formulado em termos gerais. Porque expõe as pessoas grávidas ao julgamento das suas atitudes e comportamentos pelo pessoal médico, reforçando estereótipos e estigmas. Mesmo se as mulheres forem remetidas para outros profissionais, existe um dano indireto à sua dignidade." E Violante conclui: "É difícil ver como a objeção de consciência seletiva pode ser compatível com a aplicação do princípio da não discriminação."
Do ponto de vista não da ciência jurídica mas da prática de um profissional de saúde, o coordenador da região Sul do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal, Luís Mós, concorda. Em maio, em entrevista ao DN, afirmava que o juízo de valor que identifica na objeção ao aborto até às dez semanas por parte de médicos e enfermeiros que por exemplo não objetam à IG por anomalia fetal pode ter como resultado obstruir o acesso à IVG segura por parte de muitas mulheres, colocando em risco o seu direito à saúde.
E exemplificava com o caso de um dos sete hospitais portugueses que fazem abortos desde que não "por vontade da mulher": "O Amadora-Sintra está numa zona com muitas imigrantes e é tudo mais difícil para elas, porque o encaminhamento é feito através dos centros de saúde, e muitas não estão lá inscritas. Até as nacionais que não têm médico de família se veem aflitas neste processo", preocupa-se Mós, lamentando que o hospital nem sequer veja "as senhoras das 10 semanas": "Nem a datação da gravidez [necessária para perceber se está dentro do prazo legal] é feita ali, mandam-nas para a Clínica dos Arcos (clínica privada lisboeta com a qual o hospital tem protocolo). São umas 200 por mês que são enviadas para lá. Custa-me fazerem isso, até porque na clínica a interrupção é cirúrgica, o que implica sempre mais risco que a medicamentosa."
Como o DN demonstrou numa série de reportagens em fevereiro, e os relatórios quer da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), divulgado esta semana, quer da IGAS, confirmam, existem no país sérios constrangimentos no acesso à IG a pedido da mulher até às 10 semanas (a situação no que respeita aos outros tipos de IG não é conhecida).
Esses constrangimentos, que já eram analisados em várias deliberações da ERS exaradas desde 2015, advêm, como o DN tem vindo a noticiar, de uma combinação de fatores. Incluem insuficiências na articulação entre unidades de saúde que derivam inclusive - releva a IGAS - de desconhecimento das próprias Administrações Regionais de Saúde das obrigações que lhes competem em matéria de IG; inexistência de procedimentos quanto à IG (obrigatórios) em todos os hospitais e centros de saúde, incluindo aqueles onde aquelas não se realizam; ausência de informação pública do "circuito" existente para aceder à IG - e mais um longo rol de desleixos e incompetências. Mas é indesmentível que um fator essencial na determinação das dificuldades encontradas por quem quer aceder à IG, como frisou em O Silêncio das Inocentes - Objeção de Consciência e Outras Barreiras na Implementação da Interrupção Voluntária de Gravidez (2019) o investigador Miguel Areosa Feio, é a enorme percentagem de médicos objetores, e a constituição, ao arrepio da lei, de uma "objeção dos serviços" - ou seja, a decisão oficiosa de um serviço hospitalar de recusar a IG, funcionando como pressão sobre os próprios profissionais de saúde.
Numa situação muito semelhante à portuguesa - 35% dos hospitais sem serviço de IG e 70% dos médicos objetores - a Itália foi, como o DN reportou, por duas vezes condenada pelo Comité dos Direitos Sociais do Conselho da Europa (com o voto de Portugal) por violação do direito à saúde e por discriminação no direito à saúde das mulheres que querem abortar, assim como por discriminação no direito ao trabalho dos médicos não objetores.
O principal motivo das condenações é o facto de as autoridades italianas não terem tomado as medidas necessárias "para remover as causas de perigo para a saúde, em particular assegurando que os abortos requeridos de acordo com as regras legais são efetuados em todos os casos, mesmo quando o número de médicos e outros profissionais de saúde objetores de consciência é elevado", e permitirem que uma percentagem importante dos hospitais - 35% - recusassem, alegando objeção de consciência dos profissionais, providenciar esse serviço.
As últimas diretrizes da Organização Mundial de Saúde (2022) sobre aborto estipulam, como lembra Teresa Violante no texto citado, que a objeção de consciência pode tornar-se indefensável se se provar ser impossível regulá-la "de uma forma que respeite e proteja plenamente os direitos de quem procura fazer uma interrupção de gravidez".
Em Portugal, é a primeira vez em 38 anos - desde que em 1984 se legalizaram alguns "tipos" de IG - que existe uma contabilidade oficial de objetores e se expõe a dimensão e natureza da sua "seletividade". Confessando que a dimensão "brutal" da objeção entre os médicos evidenciada pelos relatórios da IGAS e ERS é "um pouco o que esperava", o psicólogo Miguel Ricou, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, considera ser "altura de pensar numa regulamentação objetiva e clara."
Diz este especialista em Bioética, co-autor de um estudo sobre objeção de consciência publicado em julho (Conscientious Objection and Other Motivations for Refusal to Treat in Hastened Death: a Systematic Review): "Nunca vi uma reflexão pública adequada sobre a objeção. Fala-se dela como um direito absolutamente adquirido e inquestionável, e até pode ser, mas não se pode deixar que ponha em causa os outros valores, ou direitos, envolvidos. É preciso discutir, pôr as pessoas a refletir sobre o que é realmente objeção de consciência."
Um desafio que, aparentemente, não estará na mente do ministro da Saúde. Em entrevista à RTP na quarta-feira passada, Manuel Pizarro admitiu que, "muitas vezes, o problema é uma percentagem muito grande dos profissionais de um serviço serem objetores de consciência", mas acrescentou de imediato: "Isso tem de se respeitar". E, questionado sobre a necessidade de existência de registo dos objetores, respondeu: "Devo dizer que não tenho a certeza absoluta de que seja necessário haver uma lista."
Ficou por perceber se o ministro considera que a obrigatoriedade legal de entrega da declaração de objeção de consciência - que visa quer a organização dos serviços quer a garantia de que objetores não participam nas consultas das mulheres que desejam abortar - não faz sentido. E, se for esse o caso, como acha possível, não se sabendo quantos objetores existem, certificar que há no SNS médicos suficientes para assegurar o direito à saúde das mulheres que querem interromper a gravidez.