"Nós aqui como é hospital amigo dos bebés não fazemos": como o SNS viola a lei do aborto

A democracia levou mais de três décadas a conceder às mulheres o aborto livre e gratuito a pedido, num referendo há 16 anos. Porém, como prova a investigação do DN, a lei que consagra este direito é diariamente violada no SNS. Quem o quer exercer pode ser obrigada a esperar semanas e a viajar centenas de quilómetros, desprezada, recriminada, exposta publicamente. Poucas se queixam - querem "esquecer". Mas, garante uma especialista, "a tutela sabe". E nada faz.

Quinta-feira, 10H59. O número marcado é o do serviço de obstetrícia do hospital da Guarda. À questão "queria interromper a gravidez, como faço para marcar consulta?", a voz do outro lado informa: "Tenho aqui um contacto, vou dar-lhe... Nós aqui como é hospital amigo dos bebés não fazemos, está bem?"

É o DN que está a ligar, no papel de uma mulher que deseja exercer o seu direito ao aborto legal, consagrado numa lei de 2007 que resultou de um referendo ocorrido há exatamente 16 anos. Mas quem atende na Guarda não sabe - julga que está a falar com uma mulher que quer interromper a gravidez. E que agora lhe pergunta: hospital amigo dos bebés, como assim? Que quer dizer com isso?

"Nós aqui não fazemos interrupção voluntária da gravidez, só isso. Não temos consulta de interrupção", replica, agora um pouco menos segura, a funcionária. "Como temos protocolo de amamentação e tudo o mais, não fazemos a IVG. Segundo a informação que temos, o hospital de São Teotónio tem uma consulta, que é de IVG, pronto, e posso dar-lhe o contacto para ir para lá."

E esse hospital faz? É onde? "Em Viseu. Penso que sim. Pelo menos a informação que temos é que esse hospital tem consulta de IVG [interrupção voluntária da gravidez]. Nos dias úteis das 15 às 16. Se vir que não lhe atendem, pode tentar ligar a essa hora. Não sei se mudaram os horários entretanto."

Antes de desligar, o jornal pergunta o nome da funcionária. Esta identifica-se e pede desculpa. "Se a ofendi, não era a intenção. Foi a minha forma de lhe explicar por que não fazemos as consultas. Bem haja."

Uma das mulheres cujo testemunho de IVG no Serviço Nacional de Saúde (SNS) o DN ouviu para esta reportagem descreve o processo como "uma corrida de obstáculos". É uma boa imagem, mas a do peddy-paper - um jogo em se tenta chegar a um determinado destino decifrando enigmas e efetuando tarefas cada vez mais complicadas - talvez seja ainda mais adequada. Ou não ouvisse o DN da voz masculina que atende o número geral do hospital de Castelo Branco: "Aqui não, só na Guarda. E em Portalegre." Na Guarda?, é a pergunta incrédula deste lado. Mas não têm aí uma consulta de referenciação? A voz masculina diz que não sabe e vai passar "lá para cima". Lá em cima é a obstetrícia, na qual se remete para a Covilhã. "Aí no hospital não passam sequer um papel? Não, a senhora liga para a Covilhã e fazem diretamente a marcação." Mas há um número específico? "Não, liga mesmo para o geral."

Na Covilhã quem pelas 12H43 atende da consulta externa de obstetrícia indica, amavelmente e sem qualquer comentário acintoso, que só há vaga para consulta a 16. Ou seja, sete dias depois. Ai, isso é muito tempo, lamenta o jornal. Não é suposto ser no máximo cinco dias? Antes de sete dias é impossível, garante a funcionária. "Onde está a senhora? Guarda? Pode experimentar Viseu, Coimbra, e deram-me conhecimento de que o hospital de Abrantes também está a fazer. É uma questão de experimentar."

Hospitais chutam uns para os outros

Uma questão de experimentar. Porém sete dias entre o primeiro contacto com o SNS e a primeira consulta - a chamada "consulta prévia", na qual se data a gravidez e se devem colher e dar todas as informações relevantes para o processo, e que tem lugar no mínimo três dias antes da interrupção (os três dias do "período de reflexão" obrigatório) - é precisamente a média indicada no último relatório da Direção Geral da Saúde (DGS) sobre IVG, respeitando ao período de 2018 a 2020 e publicado na sua versão preliminar em junho de 2021 (a definitiva ainda não está acessível; de acordo com o que foi dito ao DN, encontra-se ainda "para aprovação").

Na altura da publicação da versão preliminar, o jornal falou com Dina Oliveira, a responsável da DGS para esta área, que assegurou estar a fazer um verificação das consultas de IVG existentes, por ter a indicação de que algumas tinham fechado. Na altura, as contas indicavam que já havia um em cada três hospitais sem consulta de IVG. Dina Oliveira frisava, porém, que "mesmo que um hospital tenha deixado de fazer a IVG tem de reencaminhar a mulher, sempre."

O jornal tentou contactá-la para este artigo, com o intuito de saber qual o seu diagnóstico da situação atual e de a ouvir sobre o resultado desta investigação, mas a assessoria de imprensa do ministério da Saúde certificou que esta enfermeira estaria fora do país até 13 de fevereiro, não disponibilizando o seu contacto (Dina Oliveira acabaria por ligar ao DN exatamente quando este texto estava a ser "fechado", nesta sexta-feira; não foi já possível ouvi-la).

Voltemos então à hipotética mulher da Guarda, que segue o conselho da funcionária da Covilhã, e continua a experimentar. Tenta o número da consulta de Viseu, que por estrada - a única forma de lá chegar para quem vem de onde ela estaria - fica a mais de 80 quilómetros, numa viagem de mais de uma hora de autocarro; uma viagem que, caso conseguisse ser ali atendida, teria de fazer três vezes: para a consulta prévia, para a interrupção e depois para a consulta de seguimento. Mas nas várias tentativas efetuadas para o número de telemóvel referido como sendo o do serviço de Viseu ninguém atende, nem surge qualquer gravação.

O problema começa aqui: alguém que procure informação na internet sobre como fazer uma IVG até às dez semanas no SNS na zona do país onde se encontra pode ou não encontrar um número específico para esse efeito. Pode ter de ligar para múltiplos locais, pode ser remetida de uns serviços para outros - algo que várias deliberações da Entidade Reguladora da Saúde consideram não estar de acordo com o espírito da lei, já que o número de contactos que uma mulher nestas circunstâncias tem de fazer deve ser reduzido ao mínimo, para preservar a sua privacidade -, pode ter de passar horas ou mesmo dias a tentar que a atendam e que lhe passem a chamada para o sítio certo.

E quando finalmente lá chega, ao "sítio certo", pode descobrir que os prazos estabelecidos na lei estão muitíssimo longe de constituir uma preocupação para os serviços.

"Não tenho médicos para as grávidas, vou ter para a IVG?"

Veja-se por exemplo o caso do de Santarém, cujo serviço de obstetrícia é inteiramente composto por objetores de consciência. Há no entanto no site do hospital um número de "linha de apoio à interrupção da gravidez", do qual atende uma funcionária que explica o processo: "Nós marcamos uma consulta para que venha fazer uma ecografia, porque temos acordo com a Clínica dos Arcos [em Lisboa] e como é privada a pessoa tem de ser encaminhada através do hospital, para não pagar. Quer marcar? Ora, temos para 22 de fevereiro." Tanto tempo? Hoje é 9, responde o jornal. Isso é daqui a 13 dias. "Sim sim, para a semana temos a agenda completa." A consulta não tem de ser em cinco dias no máximo? Isto é uma coisa urgente, insiste quem liga.

"Portanto é assim. Nós em cada semana temos um dia ou dois [de consulta]. Para a semana só temos um dia, porque isto tem a ver com a disponibilidade dos médicos. Qual a sua área de residência? Poderá contactar com outros hospitais a ver se consegue mais cedo, porque agora já não tem a ver com as áreas de residência."

Deste lado do telefonema volta-se à carga com o prazo regulamentar: a lei diz cinco dias no máximo. "É de acordo com a disponibilidade e a agenda. A senhora pensa que está de quantas semanas?" Penso que seis. "Então, tem até às 10. Se fosse a si marcava já, porque só tenho três vagas para dia 22. Se arranjar mais cedo desmarca."

Estes 13 dias de espera pela consulta no Hospital de Santarém são um prazo tanto mais inaceitável quando, como Rita e Madalena descobriram, essa consulta não é sequer a "consulta prévia" da lei, mas apenas de "datação da gravidez", que consiste numa ecografia, da qual depende a referenciação para a Clínica dos Arcos, na qual irá ter lugar enfim a dita consulta prévia, à qual se seguirá o período obrigatório de reflexão - mesmo se a mulher já tiver esperado mais de duas semanas para ali chegar - e depois, finalmente, a interrupção.

O que permitiu que Madalena, 18 anos, filha de Rita, tenha contado 19 dias entre o primeiro contacto com o SNS e a IVG - quase o quádruplo do período legalmente estipulado.

É Rita, 43 anos, quem fala com o DN. A filha está "muito revoltada e magoada com a forma como foi tratada, e não quer para já falar do assunto". Oiçamos pois a mãe.

"Ela disse-me a 6 de janeiro que estava grávida. E nesse mesmo dia, uma sexta-feira, porque a Madalena tinha aulas (está na universidade) liguei para a linha Saúde 24 para, usando os dados dela, dar início ao processo. De lá disseram-me para falar com a médica de família, porque há centros de saúde que remetem para os hospitais. Esta, que não foi nada simpática - perguntou "como é que isso aconteceu?", mas fosse isso toda a anedota neste processo -, deu-me um número de telemóvel do serviço de obstetrícia do hospital de Santarém, que é onde vivemos. Liguei para lá e disseram, depois de me certificar "ai aqui não vai fazer nada disso, não pense", que só tinham vaga para 18 de janeiro." Informada - fez ela própria uma IVG no SNS há 10 anos -, Rita confrontou a funcionária com o prazo legal. "E ela: "Ó minha senhora, que quer que lhe faça? Não quer? Marque para outro hospital." Disse-lhe que na Saúde 24 me tinham dito que tenho de ser referenciada por um hospital da área da minha residência. Mas decidi tentar outros."

Passou, conta, "dia e meio ao telefone", só conseguindo ser atendida por uma pessoa da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) que lhe disse que "os hospitais estão a usar o Covid para não cumprir os prazos, e que se o hospital de Santarém não podia atender dentro do prazo tinha de passar um termo de responsabilidade para a mulher ir à Clínica dos Arcos." Rita voltou então a ligar para Santarém, onde, assegura, do mesmo número a mesma funcionária, cujo nome apontou (e transmitiu ao DN), lhe disse "Não tenho médicos para as grávidas, vou ter para as IVG? Se está com pressa, marque diretamente para clínica e pague".

"Há 10 anos, no mesmo hospital, o processo foi muito mais fácil"

"Eu poderia pagar, mas há pessoas que não podem", comenta a mãe de Madalena, que prossegue a descrição: "Pedi-lhe que me passasse a quem chefia o serviço, ou ia para a porta do hospital até resolverem. Aí ela disse-me para se quisesse reclamar para a direção do serviço ou para a administração ou para o gabinete do utente. Liguei para esse gabinete e tive uma sorte do tamanho do mundo, porque a assistente social para qual me passaram assumiu ser a pessoa responsável por acompanhar as clientes das IVG e para lhe deixar o meu número. Ligou-me depois a dizer que tinha conseguido marcar para dia 12."

O alívio durou pouco: "Quando lá chegámos vimos que não era a consulta prévia, mas de reencaminhamento. A médica que atendeu a minha filha era uma objetora de consciência, na casa dos 20. Fez-lhe uma ecografia intravaginal para datar a gravidez - ela estava de sete semanas e cinco dias - e não lhe dirigiu qualquer pergunta nem lhe deu qualquer informação, não lhe falou dos métodos disponíveis [a lei diz que as mulheres podem escolher entre dois tipos de IVG, a medicamentosa e a cirúrgica], dos três dias de reflexão, nada. Uma pessoa nova, acabada de chegar ao sistema, sem empatia, sem qualquer noção dos deveres deontológicos..."

A seguir foram ao guichet do serviço. "E ali, à vista de todas as pessoas da sala de espera, a funcionária disse, em voz alta: 'Isto aqui é só para encaminhar, agora vai para a Clínica dos Arcos, é esperar ser contactada'. Uma total falta de respeito pela privacidade."

A 17 de janeiro, ligaram da clínica a marcar a consulta para dia 20. Quando lá chegaram, Rita teve de se impor para poder acompanhar a filha, porque queriam que ela entrasse sozinha. "Na sala de espera, apercebo-me de que era tudo miúdas na casa dos 20, todas sozinhas e a comentar. Uma chorava porque estava à beira das nove semanas, dizia que tinha sido muito difícil chegar ali e que tinha medo de que não fosse possível fazer a IVG. Pelo que ouvi tinham sido processos complicados."

Como o de Madalena: depois da consulta, teve de esperar ainda cinco dias pela interrupção. Que foi cirúrgica, porque nos Arcos não fazem medicamentosa - em mais uma desconformidade com a lei, não teve escolha.

Rita suspira. "A minha filha conseguiu abortar a 25 de janeiro, às nove semanas e dois dias. Há 10 anos, quando eu própria decidi fazer uma IVG, fui atendida no hospital de Santarém um dia depois do meu pedido telefónico para desencadear o processo. E saí do hospital nesse mesmo dia com toda a informação necessária - apesar de ter sido atendida por um médico objetor - e a consulta prévia na Clínica dos Arcos marcada diretamente pela assistente administrativa para daí a três dias. Ao todo, decorreram exatamente sete dias desde o meu primeiro contacto telefónico e a IVG." Faz uma pausa, como quem toma balanço. "Andámos a fazer campanha pelo direito à IVG há 16 anos com as filhas bebés ao colo, também por elas. E agora são enxovalhadas desta maneira. Isto não pode acontecer."

"Num inquérito da DGS sobre IVG, todos os hospitais disseram que está tudo bem"

Contactado pelo DN, o Hospital Bernardo Santareno - nome próprio da unidade de Santarém - pede que as perguntas sejam enviadas por escrito. O jornal assim fez, solicitando explicação para os acontecimentos narrados por Rita, e pedindo informação sobre o número de mulheres que nos últimos cinco anos se dirigiram ao hospital a solicitar uma IVG.

Também foi perguntado quantas queixas relativas a esse processo foram apresentadas, se deram lugar a inquéritos e com que resultado, e se aquela unidade foi alvo de alguma auditoria sobre esta questão.

Por fim, questionava-se se foi tomada alguma iniciativa no sentido de que o seu corpo de obstetras e ginecologistas não seja inteiramente composto de objetores de consciência, e se não, porquê.

Na resposta, sob a forma de "comunicado", o hospital afirma que "cumpre os procedimentos previstos na lei relativos à interrupção voluntária da gravidez" e informa ter nos últimos cinco anos efetuado "um total de 1538 consultas de datação da gravidez, tendo sido efetuadas 848 IVG na Clínica dos Arcos."

Não dando qualquer explicação para a diferença entre o número de consultas e as interrupções, assegura nunca ter sido "objeto de queixas por parte de utentes ou alvo de qualquer inspeção ou auditoria sobre esta matéria."

Sobre o caso de Madalena, e o facto de incumprir os prazos estipulados na lei, assim como sobre as condutas de quem atendeu Rita e Madalena, zero: escuda-se na "proteção de dados" e "sigilo médico".

Quanto à objeção de consciência, invoca a lei que "assegura aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à objeção de consciência relativamente a quaisquer atos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez".

Tudo está bem, portanto, no Hospital de Santarém. Como, parece, em todos.

"A DGS fez um inquérito a perguntar se havia problemas nesta área. E os conselhos de administração de todos os hospitais disseram que estava tudo bem", comenta, irónica, Teresa Bombas, da Sociedade Portuguesa de Contraceção (SPDC) e responsável pelo Comité de Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia. "Mas na SPDC fizemos um inquérito e há uma diferença entre o que as pessoas dizem que fazem e o que sucede."

Quanto à objeção de consciência, esta médica é cortante: "A objeção de consciência diz respeito ao ato da interrupção, não é ao resto. Não há serviços objetores de consciência. Os hospitais que assumem que todos os profissionais são objetores têm de ter circuitos funcionantes."

"Nunca pensei que fosse um caminho com tantos obstáculos"

Têm de ter, mas não têm. Não são só os testemunhos recolhidos pelo DN e a própria experiência do jornal ao ligar para hospitais a atestá-lo; várias deliberações da Entidade Reguladora da Saúde sobre interrupção de gravidez, resultantes da análise de queixas, indicam que, como diz Patrícia, 35 anos, administrativa, no SNS o acesso à IVG até às 10 semanas pode ser "uma corrida de obstáculos".

Tendo-se descoberto grávida a 20 de outubro de 2022 - "Acordava todos os dias mal disposta, e ao terceiro dia fiz teste" - ligou de imediato para o centro de saúde da sua área de residência, Alverca do Ribatejo, no qual a rececionista a informou que devia ligar diretamente para o hospital (Vila Franca de Xira). "Primeiro que conseguisse falar com alguém do serviço de obstetrícia foram 40 minutos", garante esta mãe solteira (tem uma filha adolescente), "e a cada transferência da chamada tinha de explicar a situação. Quando finalmente me atenderam pediram os dados da última menstruação, datação do teste, dados de utente do SNS. E disseram que só tinha consulta a 15 de novembro."

Patrícia não queria crer. "Perguntei se era possível tanto tempo, e a resposta foi "não há problema, está de poucas semanas". Quis saber se era possível ir a outro lado e a funcionária disse-me que sim, que havia uma mulher que tinha conseguido consulta mais cedo em Setúbal."

Não tendo automóvel, Patrícia achou que era melhor tentar Lisboa. "Liguei para a Maternidade Alfredo da Costa, e lá disseram-me que o hospital tinha de me atender no máximo de cinco dias, e que se não tivessem vaga tinham de me referenciar para outro lado, que não podia ser eu andar a bater às portas. A senhora parecia zangada a falar comigo. Já estava tão angustiada que me pôs a chorar. Tentei Santa Maria e marcaram-me para dia 7 ou 8 de novembro, e como eu chorava - estava descontrolada - disseram-me que "havia uma clínica que fazia isso em Lisboa, mas não sabiam o nome"."

Falou com "a outra parte" - o homem corresponsável pela gravidez - e decidiram tentar o privado. "Liguei para o Hospital da Luz e comuniquei que queria agendar uma consulta de obstetrícia para fazer uma IVG. Disseram-me que o hospital não faz, porque é "pró-vida" e se eu não queria reconsiderar". A sério que lhe disseram isso? "Juro. Depois lá descobri que a clínica de que falara de Santa Maria era a dos Arcos. Liguei e começaram a debitar a tabela de preços. Mas avisaram que podia ir lá pelo SNS."

Resolveu então voltar a ligar para o hospital de Vila Franca e confrontar o serviço com o prazo legal, invocando a lei, usando a explicação que lhe tinham dado na MAC. "A mesma pessoa que me tinha atendido antes disse que nesse caso enviasse um mail a 'expor a situação, falando da lei'." O endereço que lhe deram foi o geral do hospital. "Na altura nem pensei no que isso significava - que qualquer pessoa lá podia ler aquilo, com os meus dados todos. Mandei o mail nesse mesmo dia, 24 de outubro. No dia seguinte tentei falar com o serviço mas não consegui, enviei um mail a pedir resposta. No dia 26 lá me atenderam. Disseram que tinham avisado a clínica."

A chamada dos Arcos veio a 27; marcaram-lhe a consulta para 31 e depois a intervenção para 4 de novembro, mas teve de reagendar porque, explica, não conseguia ter folga no dia. "Fui lá no dia 7. À frente da clínica havia umas pessoas de uma igreja ou assim e um homem veio atrás de mim a dizer "mamã mamã, com amor tudo se cria, onde come um comem dois". Disse-lhe "por favor o senhor deixe-me em paz"."

O calvário terminou a 22 de novembro, com a consulta pós IVG. Considerando que só na Clínica dos Arcos foi bem tratada - "As senhoras de lá foram super simpáticas, e o médico explicou-me tudo e disse que não tinha de me sentir mal, que estava tudo bem" -, declara-se "chocada": "Sabia como era antes de ser legal, mas agora pensei que fosse uma coisa simples, não um caminho com tantos obstáculos. Foi um processo muito desgastante, angustiante. Todos os dias, até acabar, estava numa angústia."

Quis dar nota disso ao hospital de Vila Franca: "Quando tive a certeza de que tinha a consulta nos Arcos, liguei para o hospital a desmarcar a outra consulta. E perguntei porque é que é tão difícil. A funcionária disse que era por ser "uma consulta muito usada"."

"As mulheres não se queixam. Não se querem expor"

E fazer queixa? Patrícia tem peso na voz: "Não tive força psicológica para isso, quis deixar tudo para trás." Teresa Bombas assente: "As mulheres não se queixam. Nenhuma das mulheres que conheço se queixou do circuito. Não se querem expor."

Apesar desta falta de reclamações formais, a médica não tem dúvidas: "O SNS não respeita a lei no acesso ao aborto, colocando em causa um direito reprodutivo fundamental. A acessibilidade é muito assimétrica no País. Existem regiões onde a resposta é adequada e dentro da lei e existem outras em que a resposta é inaceitável. Do ponto de vista prático, no interior do país e no Alentejo a resposta é pior. Os maiores intervalos de tempo encontram-se em zonas onde os hospitais não fazem IVG e referenciam, por exemplo, à Clínica dos Arcos e também nos hospitais com dificuldade de resposta por falta de recursos humanos. Esta situação é do conhecimento da tutela e tem sido um ponto de debate permanente na reunião nacional de profissionais de saúde que trabalham esta área."

Concedendo que não é um exclusivo da IVG - "A acessibilidade à saúde em Portugal tem muitos problemas" - esta especialista destaca este direito como uma das áreas mais vulneráveis. "O que se traduz no stress emocional para as utentes, eventualmente não realização de IVG por ultrapassar o prazo legal e um passo rápido para o aborto clandestino. E quem mais sofre é quem tende a descobrir a gravidez mais tarde - as adolescentes, as mulheres em situações de violência e sócio-económicas desfavoráveis."

O panorama de recriminação e "bocas" acintosas descoberto pelo DN não é novidade para a especialista: "Não há só o problema da dificuldade de marcação de consulta; há também a estigmatização feita pelos vários interlocutores com que as mulheres têm de se confrontar até chegarem a uma consulta. E se se tratar de uma estrangeira e não tiver documentos então tudo se complica ainda mais. Apesar de a nossa lei também ser clara nas condições de acesso a saúde reprodutiva (planeamento familiar, aborto, vigilância de gravidez e parto) para os estrangeiros."

A incumbência de verificar se a lei 16/2007, a qual determina que "o SNS deve organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da IVG nas condições e nos prazos legalmente previstos", está a ser cumprida cabe à Inspeção Geral da Atividades em Saúde (IGAS).

O DN endereçou a esta entidade uma série de perguntas sobre a sua atividade nesta área: quantas auditorias e com que resultado foram efetuadas desde 2007 sobre o cumprimento da lei no acesso à IVG; em que anos e com que resultados - e onde podem ser consultados os respetivos relatórios; número de queixas sobre esse mesmo acesso; diagnóstico sobre o número de objetores de consciência nas unidades de obstetrícia e consequências para o acesso à IVG.

A IGAS levou uma semana a responder, para produzir dois parágrafos.

A saber: "Na sequência das questões colocadas, informamos que a IGAS, ao longo dos anos, tem exercido a sua atividade inspetiva nos processos que envolvem a temática da interrupção voluntária da gravidez, tendo realizado, de 2010 a 2021, 57 ações de inspeção. Em 2023, que coincide com novo ciclo estratégico, informa-se que uma das linhas diretivas de trabalho será a saúde da mulher onde se inclui também a interrupção voluntária da gravidez. Nesse sentido está a ser elaborado um Guião para uma fiscalização completa no âmbito desta temática."

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