Acesso ao aborto no SNS. Entre 2009 e 2023, sete hospitais deixaram de fazer IVG
O inspetor-geral das Atividades em Saúde assumiu no Parlamento "perplexidade" face ao que o DN revelou sobre o acesso ao aborto no Serviço Nacional de Saúde. "É preciso investigar a narrativa de que há um problema grave no SNS com a IVG", afirma. Mas admite ser muito elevada a percentagem de hospitais - 30% - que rejeitam a prática e que "é preciso perceber porquê".
Entre 2009 e 2023, pelo menos sete hospitais e um centro de saúde deixaram de efetuar interrupção voluntária da gravidez (IVG).
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É uma das conclusões que se retira da publicação, pela Direção-Geral da Saúde (DGS), da lista das unidades de saúde que prestam ou não prestam este serviço. Num total de 44, são 31 as que dizem efetuar IVG.
Das restantes, 12 assumem não efetuar esse ato médico, uma não dá informação e a outra é o Hospital da Guarda. O qual, segundo a informação comunicada à DGS, recebe "marcação direta pela utente através do contacto telefónico para marcação de confirmação e datação da gravidez" e "referencia" para o Hospital de Viseu. Mas em fevereiro, quando o DN o contactou, assumindo o papel de uma mulher querendo fazer uma IVG, a resposta de quem atendeu no serviço de Obstetrícia foi "aqui não fazemos interrupção voluntária da gravidez, é um hospital amigo dos bebés", não tendo sido sequer dada a hipótese de marcar para confirmar a gravidez.
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Serão pois pelo menos 13 os hospitais que não efetuam IVG - correspondendo, face ao total, a cerca de 30%.
Precisamente a percentagem esta quarta-feira qualificada como "elevada" na Comissão Parlamentar de Saúde pelo inspetor-geral das Atividades em Saúde, Carlos Carapeto.
Naquela que foi a primeira das audições de autoridades da saúde requeridas na sequência da investigação sobre acesso ao aborto no Serviço Nacional de Saúde (SNS) publicada pelo DN no mês de fevereiro, Carapeto assegurou que a instituição que dirige está a iniciar uma "inspeção ao SNS todo para perceber como estão a ser cumpridas as regras relativas à interrupção da gravidez por opção da mulher." E que uma das perguntas que quer ver respondida é: "Porque é que existem tantos estabelecimentos onde não se faz IVG?".
A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde garante que "em meados de abril" serão conhecidos resultados da análise ao SNS que procura responder à pergunta: "Porque é que existem tantos estabelecimentos onde não se faz IVG?".
Garantindo que esta inspeção estava já prevista quando a investigação do DN foi publicada, e que deverá haver resultados, com um projeto de relatório, "em meados de abril", o dirigente da IGAS referiu os dados da DGS para afirmar que 28,9% dos estabelecimentos oficiais "não asseguram o serviço de IVG". Acrescentando: "Não significa que estejam em incumprimento: podem não estar a assegurar este serviço por força de um conjunto de pessoas que declaram objeção de consciência e não o podem prestar".
A percentagem aludida, porém, está longe de constituir novidade; já se sabia pelo menos desde 2022, tendo sido objeto de notícia do Expresso, em junho, que um em cada três hospitais do SNS não realizam IVG.
O que esta percentagem não diz, nem a lista que a DGS colocou agora no seu site - porque não permite comparação com as anteriores -, é como evoluiu a situação desde que em 2007, na sequência de um referendo, foi legalizada a IVG até às dez semanas por vontade da mulher. E o que se verificou é que a partir de 2009, começando pelo Hospital de Santarém, várias unidades de saúde foram deixando de efetuar IVG.
Foram elas, para além da já mencionada, o Hospital Professor Fernando Fonseca, Amadora (2010); Hospital D. Estefânia, Lisboa (2011); Hospital de Cascais (2012); Hospital Amato Lusitano, Castelo Branco (2014); Centro Hospitalar Cova da Beira (idem) e, por fim, o Hospital Doutor José Maria Grande, Portalegre (2017).
"Há muitas formas de cumprir a lei"
Em sentido contrário, o Centro Hospitalar do Baixo Alentejo (Beja) não efetuou IVG entre 2011 e 2014, mas retomou a prática. Quanto ao Hospital do Divino Espírito Santo (Ponta Delgada, Açores), não prestou esse serviço até 2014, reiniciou em 2015 e agora não se sabe se faz ou não - não terá esclarecido a DGS, pois surge "sem informação".
Às unidades de saúde que deixaram de efetuar IVG deve somar-se, a crer na lista referida, o Centro de Saúde de Amarante, que, pelo menos até 2016, era o único a assegurar este ato médico.
São assim pelo menos 14 as unidades de saúde que deixaram de fazer ou nunca fizeram IVG, somando-se às já mencionadas os hospitais Santo Espírito de Angra do Heroísmo, Espírito Santo de Évora, Caldas da Rainha, Padre Américo (Penafiel), Francisco Xavier (Lisboa) e Setúbal.
Para efetuar estas contas, o DN socorreu-se do trabalho académico de Miguel Areosa Feio, cuja tese de mestrado de 2019 se intitula O Silêncio das Inocentes - Objeção de Consciência e Outras Barreiras na Implementação da Interrupção Voluntária de Gravidez. Nesta, o investigador escreve: "Em Portugal, entre 2008 e 2013, 46 das 50 instituições de saúde declaravam fazer IVG". Num quadro dizendo respeito a 29 unidades públicas de saúde e três estabelecimentos privados afere-se a evolução, nesse universo, do número de IVG, estabelecimento a estabelecimento, de 2008 a 2016.
De acordo com a análise de Areosa Feio, que em 2021 publicou novo estudo sobre o tema, a redução do número de hospitais que efetuam IVG relaciona-se com a "objeção de consciência", que "interfere na organização das equipas e no funcionamento das unidades de saúde".
Carlos Carapeto declarou que o facto de a objeção de consciência ser o motivo legal para a não prestação do serviço de IVG impõe que a IGAS efetue uma verificação do cumprimento das regras administrativas a ela associadas.
Será precisamente a objeção de consciência um dos aspetos sobre os quais se debruçará a inspeção, indicou aos deputados o inspetor-geral das Atividades em Saúde, que se propõe "saber se a lei está a ser cumprida em todas as suas dimensões ou não." Do ponto de vista jurídico, frisou, mas não só: "Também se a forma como essas obrigações estão a ser cumpridas está orientada de facto para a utente que recorre a este serviço. Se o direito de acesso está a ser cumprido sem a criação de barreiras administrativas, que ao mesmo tempo que se cumpre o normativo acrescentam dificuldades à concretização do direito. Há muita forma de cumprir a lei, temos de a cumprir de forma orientada para o utente. (...) O que vamos tentar perceber nesta inspeção é, para além do cumprimento das normas legais e técnicas, qual a gestão que está a ser feita pelo SNS".
Inspeção quer verificar objeção de consciência
Frisando que os estabelecimentos do SNS que não efetuam IVG têm de ter uma unidade de saúde para a qual referenciam, seja ela pública ou privada - e que neste momento só existem dois estabelecimentos privados reconhecidos pela DGS nos quais se pode levar a cabo a IVG (ambos na zona de Lisboa: Clínica dos Arcos e SAMS) -, Carlos Carapeto declarou que o facto de a objeção de consciência ser o motivo legal para a não prestação do serviço de IVG impõe que a IGAS efetue uma verificação do cumprimento das regras administrativas a ela associadas. "Temos de ver se estão a ser cumpridas; não se trata de uma suspeita apriorística, nada disso, é o nosso percurso natural."
A última publicitação do número de objetores de consciência para a IVG foi feita pela Ordem dos Médicos há mais de dez anos (em 2011): seriam 1341 os clínicos objetores, dos quais "934 médicos de Medicina Geral e Familiar e 407 ginecologistas obstetras".
As regras em causa estão desde 2007 estabelecidas em portaria pela DGS: "A objeção de consciência prevista no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril [a lei que descriminaliza a IVG até às 10 semanas por vontade da mulher], é manifestada em documento assinado pelo objetor". Este documento deve ser apresentado "ao diretor clínico, ao diretor de enfermagem ou ao responsável clínico do estabelecimento de saúde oficial, hospitalar ou de cuidados de saúde primários, ou oficialmente reconhecido, conforme o caso, onde o objetor preste serviço".
A última publicitação do número de objetores de consciência para a IVG foi feita pela Ordem dos Médicos em 2011: seriam 1341 os clínicos objetores, dos quais "934 médicos de Medicina Geral e Familiar e 407 ginecologistas obstetras", o que corresponderia, à época, respetivamente, a cerca de 27% dos obstetras e um pouco menos de 19% dos médicos de Medicina Geral e Familiar. Não é conhecida contabilidade mais recente, nem se sabe se nos hospitais que encerraram as consultas de IVG o motivo é realmente todos os obstetras e ginecologistas serem objetores de "documento passado".
Aliás, não é claro se alguma vez houve, da parte da IGAS, uma verificação das "regras administrativas" da objeção de consciência em todos os hospitais do país; essa pergunta não foi efetuada pelos deputados na audição. E quando o DN, previamente à publicação dos artigos sobre IVG, enviou várias questões a esta entidade sobre as inspeções efetuadas sobre a matéria e respetivas conclusões - nomeadamente se esta instituição efetuara algum diagnóstico sobre o número de objetores de consciência nas unidades de ginecologia e obstetrícia nacionais e a consequência desse número para o acesso à IVG -, assim como sobre eventuais queixas recebidas, não obteve mais resposta que: "Ao longo dos anos, a IGAS tem exercido a sua atividade inspetiva nos processos que envolvem a temática da interrupção voluntária da gravidez, tendo realizado, de 2010 a 2021, 57 ações de inspeção".
"Causa surpresa não haver denúncias nesta área"
Também na audição na Comissão de Saúde, o representante da IGAS não referiu as conclusões das anteriores ações inspetivas, que reconheceu terem sido mais numerosas até 2014 e depois "terem abrandado". Alegando não se poder basear nelas "porque a realidade é de uma transformação muito rápida", considerou ser altura de "voltar a fazer massivamente ações inspetivas sobre o tema saúde da mulher", incluindo a IVG.
Ainda assim, assumiu "alguma perplexidade" face ao panorama de violação da lei descrito pelo DN, explicando que a IGAS não tinha "indicadores" nesse sentido, nomeadamente queixas.
"Apesar de não sermos a entidade que tem competência para apreciar reclamações - é a Entidade Reguladora da Saúde - chegam-nos centenas de denúncias, mais de meio milhar anualmente. E o tema da interrupção voluntária da gravidez não foi objeto de nenhuma denúncia", certificou o representante da IGAS. "Há a necessidade de investigar esta narrativa de um problema grave do SNS em torno da interrupção da gravidez, porque ele não foi observado por nós a partir desses indicadores [as denúncias]."
Certo é que se a IGAS não recebe denúncias relativas ao acesso à IVG, recebe-as a Entidade Reguladora da Saúde (ERS). Esta tem exarado várias deliberações sobre o assunto, reconhecendo a existência, no SNS, de violações da lei e dos regulamentos que resultam em entraves e constrangimentos no acesso a este direito que chegam por vezes, por serem ultrapassados os prazos, a impedir a realização da IVG.
Tendo anunciado, na sequência do relatado pelo DN, ter aberto um processo para investigação dos factos relativos aos hospitais de Santarém e Garcia de Orta, a ERS comunicou ao jornal estar "a monitorizar o cumprimento da Lei pelos restantes estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde do SNS".
Referiu igualmente que, "em 2023, foi aberto um processo de inquérito, que se encontra em curso, decorrente de uma reclamação anterior", e que, em 2022, "foram abertos dois processos de inquérito, decorrentes de reclamações recebidas pela ERS", ambos já alvo de deliberação. Estes últimos disseram respeito ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve e ao Centro Hospitalar Barreiro-Montijo.
Impossibilitadas de aceder à IVG dentro do prazo
No primeiro caso, a denúncia foi efetuada por uma mulher que contactou o hospital para fazer uma IVG, foi remetida para o centro de saúde, e por dificuldades sucessivas na marcação de consultas, com prazos muito para além do máximo de cinco dias definido na lei, acabou por não conseguir realizar o procedimento, por se exceder o prazo das dez semanas - uma situação semelhante à ocorrida com uma das entrevistadas do DN com o Hospital de Santa Maria, a qual teve de recorrer ao privado (à Clínica dos Arcos) por lhe estarem a marcar a consulta para além das 10 semanas de gravidez.
A segunda reclamação é de uma médica e diz respeito à recusa do hospital em atender uma mulher que ali foi requerer a realização de IVG. Deram-lhe a justificação de que não pertencia à área daquela unidade. Em ambas as situações a ERS considerou ser necessário que os hospitais alterassem os seus procedimentos.
Este tipo de deliberação da ERS, que é vinculativa (sob pena de multa), foi já dirigido a vários outros hospitais, nomeadamente ao de Cascais, ao das Caldas da Rainha, ao Hospital Espírito Santo de Évora e à Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, assim como aos hospitais de Santa Maria e Francisco Xavier (também neste último caso a queixosa certificou não ter conseguido realizar o procedimento).
Quanto ao número total de queixas dirigidas a este regulador dizendo respeito à IVG, segundo a explicação dada ao jornal "não é possível quantificar um total de reclamações recebidas, especificamente, sobre esse assunto". Isto porque a classificação em vigor para as reclamações remetidas à ERS é efetuada com "indicadores amplos", que podem "abranger casos relacionados com a restrição de acesso a IVG".
Assim, prossegue a informação enviada ao jornal, "em concreto, e por referência às valências de "Ginecologia-Obstetrícia" e "Obstetrícia" e a prestadores de cuidados de saúde do setor público, o Sistema de Gestão de Reclamações da ERS permite a pesquisa de informação por indicadores e temas mais latos, nomeadamente, "Acesso a cuidados de saúde > Discriminação/rejeição em razão de estado de saúde e características pessoais"; "Acesso a cuidados de saúde > Resposta em tempo útil/razoável". Considerando estas classificações, as quais podem ou não envolver casos de IVG, até à presente data a ERS tomou conhecimento das seguintes reclamações: relativamente a factos ocorridos em 2021, 90; relativamente a factos ocorridos em 2022, 100".