“Interrupção de gravidez? Só pode fazer até às duas semanas”
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“Interrupção de gravidez? Só pode fazer até às duas semanas”

Em 2023, após o DN demonstrar que a lei do aborto era violada no SNS, a Entidade Reguladora exarou instruções a 78 unidades de saúde. Esta investigação comprova que vários hospitais não as acataram.
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“Como faço para interromper a gravidez?”

“Quantas semanas tem?”

“Umas seis.”

“Ai, não sei se vai conseguir. Mais que duas semanas não se pode fazer.”

“Como assim, duas semanas? É até às dez.”

“Ai é até às dez?”

“Sim. A senhora trabalha no departamento de obstetrícia?”

“Sim, sou secretária, mas quem sabe melhor disso das contas são os médicos.”

Esta conversa - na qual se dá uma informação não apenas falsa do ponto de vista legal, mas cientificamente delirante (nenhuma mulher pode, com duas semanas de gravidez, saber que está grávida) - teve lugar no início de fevereiro de 2025, com o departamento de obstetrícia do hospital Dr Nélio Mendonça, no Funchal (Madeira). Repetindo o que fizera em 2023, o DN encarnou uma mulher em busca de informação sobre como interromper a gravidez até às 10 semanas, ligando para vários hospitais portugueses, do continente e das ilhas, com o propósito de avaliar o acesso a este cuidado de saúde. O qual, recorde-se, a lei impõe desde 2007 que seja disponibilizado em tempo útil nas unidades públicas, diretamente ou por via de encaminhamento para outras unidades (públicas ou privadas). Sendo “tempo útil”, de acordo com a regulamentação, a marcação da primeira consulta, ou “consulta prévia”, no prazo máximo de cinco dias, ocorrendo o procedimento abortivo não mais que cinco dias depois.

E, como sucedeu há dois anos, o DN deparou-se com vários hospitais que informam que todos os seus obstetras são objetores de consciência e portanto não fazem o procedimento - incluindo dois que em 2023 faziam interrupção de gravidez, o da Covilhã e o de Vila Franca de Xira

Duas “baixas” que só não fizeram aumentar, face a 2023, para mais de 30% a percentagem de unidades de saúde continentais que não efetuam interrupção de gravidez (IG) até à 10 semanas por decisão exclusiva da mulher porque dois outros hospitais, contrariando a tendência observada desde 2009 - entre esse ano e 2023, sete hospitais e um centro de saúde (o único no país que fazia IG) deixaram de disponibilizar esse cuidado de saúde - passaram a fazê-la. Trata-se do Hospital Padre Américo (em Penafiel, integrado na Unidade de Saúde Local do Tâmega e Sousa) e do Hospital do Litoral Alentejano (Santiago do Cacém); o primeiro abriu a consulta de IG no final de 2023 e o segundo em novembro de 2024. 

Até à abertura deste serviço no Litoral Alentejano, em toda essa região só o Hospital de Beja disponibilizava esse cuidado de saúde, tendo como resultado o facto de, como frisa o relatório da Direção Geral da Saúde (DGS) sobre IG relativo a 2023, ter sido nessa Região de Saúde de Portugal continental que se verificou a maior diferença entre o número de mulheres ali residentes que efetuaram IG durante esse ano (696) e o daquelas que conseguiram fazê-lo num estabelecimento na região (190, ou 27%). A única zona do país com menos acesso era - e continua a ser - a dos Açores (à qual o DN dedicará, nos próximos dias, um artigo específico), onde grande parte das mulheres que querem interromper a gravidez são obrigadas a viajar 1445 quilómetros, para Lisboa.  

Regulador recebeu 32 queixas desde 2023

Mas voltemos ao novo périplo telefónico do DN pelos hospitais portugueses. Se em vários casos o atendimento foi eficiente e amável e demonstrou que há serviços a funcionar bem e dentro dos prazos, notando-se até nalguns uma melhoria face a 2023, noutros, como evidencia a conversa reproduzida no início deste texto, o jornal ouviu respostas vagas, antipáticas, até bizarras, não conformes ao legislado e regulamentado. E desobedecendo às instruções vinculativas sobre “procedimentos de realização de IVG” que lhes foram dadas pela Entidade Reguladora da Saúde no final de 2023.

Assim, há ainda, como se demonstrará a seguir, hospitais a recusar encaminhamento e, em alguns casos, até informação. 

Acresce que em 2025 o jornal foi confrontado, como em 2023, com a marcação da primeira consulta num prazo muito superior ao regulamentado, quase duplicando os cinco dias estipulados na lei. É o caso dos hospitais de Aveiro e Coimbra, que só tinham marcação nove dias depois. Já no Hospital de Santa Maria, em Lisboa - que em 2023 tinha como média de atendimento “6,91 dias úteis”, ou seja quase 10 dias corridos, quem atendeu o telefone recusou terminantemente dizer quando haveria vaga, insistindo ser preciso enviar um email com o pedido e depois esperar resposta. “A data da consulta é uma decisão médica, o médico é que a toma”, repetiu a funcionária.

E há ainda os hospitais onde não se consegue falar com alguém sobre IG: é assim no de Leiria e no Garcia de Orta (Almada), para os quais o DN ligou repetidamente, sem conseguir chegar à fala com o departamento correto.

Como alívio cómico em horas de telefonemas, refira-se a informação (ou melhor, desinformação) dada no Hospital de São Francisco Xavier (Lisboa), outro que alega a objeção de consciência de todo o corpo clínico, pelo funcionário com o qual o DN chega à fala: "Tem de se dirigir ao Centro de Saúde, ou liga para a linha Saúde 24." A linha Saúde 24? Tem a certeza? "Sim sim, eles é que encaminham." E o procedimento é onde? "Não é feito cá, é na clínica de Paço de Arcos”.

Por outro lado, voltou a evidenciar-se, nos casos em que os hospitais encaminham para a única unidade de saúde privada que faz IG em Portugal (a Clínica dos Arcos, em Lisboa), a existência de um “circuito” em que as mulheres são obrigadas a efetuar duas primeiras consultas - uma no hospital ao qual se dirigiram e outra na clínica, posto a qual terão ainda de observar o “período de reflexão” obrigatório de pelo menos três dias. Exemplo do Hospital da Covilhã, que quando o DN telefonou só tinha vaga para daí a nove dias - nove dias até uma consulta que não conta sequer como consulta prévia. 

Com a particularidade de os hospitais “de acolhimento” não registarem a data dessa primeira consulta nem o número de dias desde o primeiro contacto até que esta teve lugar, falsificando assim a contabilização do prazo legal e eximindo-se de responsabilidades se, devido aos atrasos no atendimento, a gravidez ultrapassar o número de semanas permitido.

Face ao patente desrespeito de algumas unidades de saúde pelas instruções que lhes foram dirigidas pela ERS no final de 2023, o DN questionou o regulador sobre se está a preparar algum tipo de avaliação da situação. A resposta do regulador - que informa ter criado, a 17 de fevereiro de 2023 (seis dias após a primeira publicação da investigação do DN), “uma categoria denominada “Restrição à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)” e recebido desde então “32 reclamações relacionadas especificamente com este assunto, 25 com data de ocorrência de 2023 e sete relativas ao ano de 2024” - é afirmativa: “A ERS possui atualmente em curso uma nova monitorização, com dados referentes a 2024, para análise da evolução sistémica desta temática.”

“Não temos nada a ver com essa situação”

Passemos então à monitorização direta do DN, na qual o pódio da incorreção e antipatia vai, de entre todos os hospitais contactados, para Portalegre e Castelo Branco.

“Não temos nada a ver com essa situação, nós não fazemos, os nossos médicos são objetores de consciência”, asseveraram ao jornal duas funcionárias da Unidade de Saúde Local (USL) de Portalegre. “Desde 2017 que não fazemos, e mesmo quando fazíamos as utentes tinham de vir encaminhadas dos centros de saúde. Normalmente mandamos para Abrantes, porque é o sítio mais próximo de Portalegre. A indicação que temos é de dar o contacto direto do Hospital de Abrantes. Para marcarem diretamente. Depois lá dizem tudo o que é necessário.” 

Questionadas sobre se não tem de ser o Hospital de Portalegre a efetuar o encaminhamento para a outra unidade de saúde, negam terminantemente. O mesmo sucede no Hospital de Castelo Branco. Telefonando para os números constantes, para esta unidade, na listagem correspondente ao ano de 2024 dos "Estabelecimentos de Saúde Oficiais e Oficialmente Reconhecidos para Realização da Interrupção a Gravidez por Opção da Mulher” da Direção Geral da Saúde (DGS) - onde é suposto estar a informação atualizada sobre os locais, contactos e horários para início do processo, fornecida pelas 44 unidades de saúde listadas -, constata-se que um está desligado e o outro nunca atende. Tentando o geral do hospital e explicando que nenhum daqueles contactos funciona, ouve-se, da funcionária que atende o telefone: “Minha senhora, aqui na zona não há interrupção voluntária de gravidez. Já houve, agora não.” Mas não há um número para ligar aí no hospital? “Não, já não há. Esses números são da obstetrícia mas o hospital não faz IVG.” E não encaminha? “Não não não. Não encaminha ninguém. O Hospital de Portalegre é que faz. É uma questão de ligar para lá.” Portalegre? Olhe que não faz. “Então olhe, também já fez.” Então uma pessoa de Castelo Branco liga para onde? “Minha senhora, não me faça essa pergunta, não faço a mínima ideia. É uma questão de ligar para os centros de saúde e perguntar, pode ser que eles saibam.” 

Pode ser que alguém saiba - que não a unidade de saúde pública para o qual a mulher que precisa de informação ligou. Curiosamente, quer no site deste hospital (Amato Lusitano), quer na referida lista da DGS, na entrada relativa ao mesmo, é informado que este tem “protocolo com entidade privada Clínica dos Arcos”.

“A Unidade Local de Saúde de Castelo Branco não realiza Interrupções Voluntárias da Gravidez (IVG). Cumpridos os requisitos necessários, a utente será reencaminhada para a Clínica dos Arcos, em Lisboa”, lê-se no site. “Para mais Informações contacte a sua Unidade de Saúde [hospital ou cuidados primários, vulgo centro de saúde]”. O que deveria significar que quem se dirija a este hospital para interromper a gravidez será por este referenciada para a referida unidade de saúde privada, localizada em Lisboa (a 224 quilómetros). Este “referenciada” significa, nos termos da regulamentação, que o hospital se responsabiliza pela comunicação com a clínica e pela instrução e pagamento de todo o processo. Porém, como se constata, a informação dada é “vá bater a outra porta”.

Desobediência total às instruções da ERS

Bastante diferente daquilo que, na sequência da citada investigação do DN e de duas auditorias simultâneas da ERS e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) sobre o acesso à IG no Serviço Nacional de Saúde - as primeiras auditorias, em 16 anos de vigência da lei, sobre o seu cumprimento pelas unidades públicas -, a ERS produziu como instruções para 78 unidades (hospitais e centros de saúde). Publicadas a 19 de março de 2024 na página do regulador, essas instruções, que citam excertos da investigação do DN, incluem o Hospital de Portalegre e o de Castelo Branco - como todos os outros hospitais constantes na citada lista da DGS.

Concluindo, no caso do Hospital de Portalegre, que este não tinha um protocolo de “referenciação/encaminhamento das utentes grávidas que solicitem realização de IVG, discriminando as competências atribuídas a cada estabelecimento, as formas de comunicação e o circuito a percorrer”, a ERS instruiu-o para que o celebrasse (no caso, com o Hospital de Abrantes), e que divulgasse os procedimentos necessários “a todos os profissionais envolvidos, para que sejam corretamente seguidos e respeitados, de acordo com as competências atribuídas a cada prestador”. Em resposta, o conselho de administração do hospital garantiu ter já remetido uma proposta de protocolo à unidade de Abrantes, a qual, informava, “se encontra em análise daquela entidade, sendo que após, ir-se-á proceder à realização de uma sessão de esclarecimentos”. Terá sido, constata-se, um esclarecimento bem pouco esclarecedor - a não ser que as ordens dadas aos funcionários tenham sido contrárias ao instruído pela ERS.

De resto, também no Hospital de Abrantes quem atende o telefone dedicado à IG parece não ter conhecimento de que um protocolo de encaminhamento não é tome lá o número e desenrasque-se. Questionada sobre a obrigação de referenciação por parte do Hospital de Portalegre, a voz feminina responde “não, as pessoas é que têm de ligar.” A boa notícia é que a primeira vaga para consulta é quatro dias depois do contacto, ou seja, dentro do período regulamentado. 

Sendo a distância entre Portalegre e Abrantes de 92 quilómetros, o DN pergunta se é o SNS que se encarrega dos custos da deslocação (neste caso, deslocações, já que o processo implica uma primeira consulta, três dias de período de reflexão, nova consulta para efetuar o procedimento e ainda uma terceira para ver se tudo correu bem e, eventualmente, escolher um método contraceptivo). “Não faço a mínima ideia, nunca ninguém falou disso”, retorque a funcionária. “Se precisar de algum transporte, tem de ser com o hospital de Portalegre. Eles não têm estas consultas e então há um protocolo entre o Hospital de Abrantes e o de Portalegre para as senhoras dessa zona virem aqui à consulta.” Mas eles dizem que não têm nada a ver com isso. “Pois, não sei. Nunca ninguém pediu transporte para vir de Portalegre para aqui. Se tem esse problema, eles é que têm de fazer alguma coisa, não somos nós.”  

Quanto ao Amato Lusitano (Castelo Branco), este assumiu ante a ERS, em abril de 2023, não realizar IVG desde 2014 e não possuir qualquer protocolo “no âmbito da matéria em apreço” (o encaminhamento de mulheres solicitando acesso a IVG). Após instado a criar o referido protocolo, veio em 28 de novembro de 2023 certificar que celebrara contrato com a Clínica dos Arcos, e que aprovara em agosto um “procedimento operativo relativo à IVG (…) divulgado internamente através da circular informativa nº83, de 7/8/2023”. Teria igualmente aprovado a 23 de novembro “um folheto informativo IVG” e “um cartaz IVG” onde constariam “os contactos e respetivos horários para marcação de consulta no âmbito da IVG”. 

O “procedimento operativo” aprovado está reproduzido na instrução da ERS, e nele se indicam os números de telefone que a funcionária do hospital garantiu ao DN não servirem para atendimento relativo a IVG. De acordo com o documento enviado à ERS, esses contactos deveriam servir para marcar uma consulta de enfermagem na qual seria prestada informação sobre o processo de IVG, entregue uma declaração de consentimento informado e efetuada referenciação para consulta de Planeamento Familiar - posto o que a mulher deveria ir levantar o documento necessário para entregar na Clínica dos Arcos.   

Dando como boa esta informação, a ERS lembrou no entanto que a unidade de saúde teria de “garantir permanentemente o cumprimento do quadro legal e regulamentar estabelecido para a realização de interrupção voluntária da gravidez de modo que a mesma se verifique nas condições e prazos legalmente previstos, designadamente, através da rigorosa observância do procedimento de organização interna aprovado”, e “assegurar que o procedimento descrito (…) é do conhecimento dos seus profissionais, procedendo à sua divulgação, nomeadamente, através da emissão de ordens, orientações, instruções de serviço, logrando assim a sua efetiva implementação”. E lembrava o regulador que o desrespeito de norma ou de decisão sua “configura como contraordenação punível in casu com coima de € 1.000,00 a € 44.891,81”. 

“Hospital amigo dos bebés” continua a rejeitar pedidos de IG 

Dir-se-á que as ameaças de contraordenação não assustam os hospitais. Veja-se o caso do Hospital da Guarda. No qual, recorde-se, uma funcionária disse em fevereiro de 2023, quando questionada pelo DN sobre os procedimentos para a IG, “aqui não fazemos, é um hospital amigo dos bebés”

Dois anos depois, esta unidade de saúde continua a “não fazer”. E a não encaminhar. Ligando para aquele que, informa quem atende no geral do hospital, é o “número próprio para interrupção de gravidez” (o que consta na lista da DGS), e que “só atende nos dias úteis entre as 14H30 e as 15H30”, ouve-se: “As instruções que tenho é de dar o número do Hospital de Viseu. Ligue para lá, atendem nos dias úteis entre as 15 e as 16 horas, e a interrupção é até às 10 semanas de gestação. As pessoas também se podem dirigir à nossa urgência obstétrica se tiverem alguma dúvida.” Questionada sobre o encaminhamento efetuado pelo hospital, a funcionária do departamento de obstetrícia nega existirem instruções para tal. Para quê um número de telefone e um horário específicos para a IG se a ideia é apenas transmitir o número de outro hospital, pergunta o DN. “Este telefone está especificamente para isto”, é a resposta. 

O DN invoca a regulamentação legal e as recentíssimas instruções da ERS - mas a funcionária, que assevera trabalhar ali há muitos anos, parece nunca ter ouvido falar de tal.

Ora a ERS, informada pelo hospital, em abril de 2023, de que o “encaminhamento” que este realiza se limita ao fornecimento de um número de telefone, sublinhou que a "mera disponibilização de contacto telefónico”, não se revela um meio “idóneo, nem suficiente”, já que corresponde à “transferência do ónus de contacto e organização de todo o processo de referenciação para a própria utente”.

Lembrando que a portaria regulamentar nº741-A/2007 de 21 de junho dispõe que “[o]s estabelecimentos de saúde oficiais em que a existência de objetores de consciência impossibilite a realização da interrupção da gravidez nos termos e prazos legais devem garantir a sua realização, adoptando (…) as adequadas formas de colaboração com outros estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos e assumindo os encargos daí resultantes”, e que impende “sobre as unidades funcionais que integram a Unidade Local de Saúde Guarda o dever e responsabilidade de garantir a efetiva referenciação das utentes que ali se dirigem para iniciar o procedimento de IVG”, o regulador, à imagem do que fez com os hospitais de Portalegre e Castelo Branco, instruiu o hospital a rever o protocolo “de referenciação/encaminhamento das utentes grávidas que solicitem a realização de IVG”. Do mesmo modo, ordenou-lhe que revisse os procedimentos de modo a que “a responsabilidade de referenciação que impende sobre as unidades funcionais da Unidade Local de Saúde [não] resulte, em momento algum, transferida para as utentes”, e que garanta “que todos os profissionais adequam a sua conduta aos procedimentos que venham a ser protocolizados e definidos”

Neste como no caso dos dois outros hospitais referidos (e em todas as 78 instruções sobre o mesmo assunto), o regulador impõe que a unidade de saúde dê “cumprimento imediato à presente instrução”.

“Acho que não fazemos isso aqui”

Também quanto ao hospital de Évora se constata que as instruções da ERS caíram em saco roto. Assumindo ter um corpo de obstetras inteiramente objetor para a IG por decisão exclusiva da mulher - segundo o mencionado relatório da auditoria da Inspeção Geral das Atividades em Saúde, de 2023, neste como noutros quatro hospitais de Portugal continental (o de Cascais, o Amadora-Sintra, o de Santarém e o de Setúbal), os obstetras, segundo o mencionado relatório da auditoria da IGAS, apenas são objetores a este “tipo” de interrupção de gravidez, efetuando por exemplo interrupções por anomalia fetal (até às 24 semanas), por risco para a saúde da mulher (até às 12) e por gravidez resultante de crime contra a autodeterminação sexual (até às 16) -, esta unidade de saúde informa, no respetivo site, que “garante às suas utentes o acesso a este procedimento através do encaminhamento para clínica oficialmente reconhecida pelo SNS, Clínica dos Arcos, em Lisboa”.

Este encaminhamento, prossegue a explicação, “não representa quaisquer custos associados para a Utente. O Hospital do Espírito Santo de Évora [HESE] pugna por garantir o atendimento atempado das solicitações de interrupção da gravidez e o cumprimento dos prazos legalmente fixados. As Utentes que pretendam realizar este procedimento deverão dirigir-se aos Cuidados de Saúde Primários (CSP) e realizar uma consulta para solicitação de IVG ou ao Serviço de Urgência Polivalente do HESE EPE.”

Porém, mais uma vez, quem atende o telefone diverge na informação: “Já falou com o médico de família? Os pedidos têm de ser efetuados através do médico de família.” Ora o fulcro da instrução dada ao hospital pela ERS foi precisamente no sentido de que alterasse esse procedimento, considerando-o um “verdadeiro constrangimento no acesso à realização de IVG no HESE”. Em resposta, o hospital garantiu que a menção aos cuidados de saúde primários “configura apenas e só uma preferência, não uma limitação, nem condicionamento. É apenas a tradução da expressão de uma ideia, que tem, aliás, ressonância na legislação, de que os Serviços de Urgência devem sobretudo receber casos clínicos urgentes. (…) Não existe constrangimento no acesso das utentes, não é feito condicionamento de nenhuma espécie.” E, para comprovar o que afirma, apresenta os números relativos aos pedidos de IG ali tramitados de janeiro a outubro de 2023: 184 ao todo, 74% (136) dos quais via “Unidade de Saúde Familiar” e 26% (48) via urgência de obstetrícia. 

Sucede que a prática não se coaduna com esta certificação - aquilo que é dito a quem liga a pedir orientação é “os pedidos têm de ser efetuados através do médico de família”. Implicando que quem não tem médico de família ficará sem saber o que fazer: o constrangimento detetado pela ERS em 2023 permanece em 2025.

Mantendo-nos no Alentejo, e em contraste, no Hospital de Beja tudo continua, como em 2023, a funcionar de acordo com as regras: consulta passível de ser marcada dentro do prazo de cinco dias, explicação escorreita e simpática: “Como funciona? Então tem a primeira consulta [prévia] com o médico, a segunda com a enfermeira [para o procedimento, ou seja, a administração do primeiro medicamento abortivo, uma vez que a interrupção e medicamentosa], e depois vem cá para ver se correu tudo bem. Quer marcar? Olhe que se espera pode perder esta vaga.” 

Já no Hospital do Litoral Alentejano, no qual, como referido, foi aberta uma consulta de IG em novembro de 2024 (e que não constava na lista da DGS, porque não tem serviço de obstetrícia), o acolhimento dá a mensagem contrária. O telefone “dedicado”, que o DN encontrou no Instagram e Facebook da unidade de saúde, está desligado. E no geral do hospital quem atende dá esta resposta: “Acho que não fazemos isso aqui.”

“Há muitos boicotezinhos dentro dos serviços, de toda a ordem”

Só depois de o DN contactar o conselho de administração do hospital, na pessoa da presidente, Catarina Filipe, é recebida pelo jornal, via SMS, uma mensagem automática, requerendo que “para pedido de solicitação de consulta” se envie email com nome completo, data de nascimento, número de utente, telefone para contacto, data da última menstruação e semanas de gravidez.

O facto de a legislação portuguesa ser clara no sentido de que qualquer mulher, mesmo estrangeira, mesmo não inscrita no SNS, e decerto mesmo sem acesso a um telemóvel ou a email, poder aceder a uma IG não parece ser tido em conta nesta forma de contacto, efetuada apenas em português e que não permite, obviamente, obter esclarecimentos sobre o processo (haverá decerto quem não saiba sequer qual o prazo legal) ou a data disponível para consulta.

“A enfermeira tinha ligado o telefone de serviço mas não tinha inserido o código necessário para receber as chamadas”, explica a responsável pelo hospital, que se declara mortificada com a experiência do DN: “Não percebo como é que a funcionária que atendeu o telefone foi dizer que não temos o serviço. Fico muito triste. Porque conseguimos criar uma resposta que não existia - as nossas utentes que queriam fazer a interrupção ou iam para Beja ou para Setúbal [que envia para a Clinica dos Arcos] - e depois, constato, a comunicação não funciona. Há uma falha interna da parte dos nossos profissionais que é não saberem o que está disponível na nossa carteira de serviços.” Catarina Filipe também admite que a mensagem automática pode excluir muita gente. “Vamos trabalhar melhor isto”.

Trabalhar melhor, sem dúvida, precisa-se. Desde logo, falta aos serviços hospitalares a capacidade de se colocarem no lugar de quem precisa de informação e de conforto: respostas automáticas não são adequadas numa situação que pode ser aflitiva e na qual o tempo urge - o prazo de 10 semanas definido pela lei portuguesa, que muito recentemente o parlamento teve ocasião de mudar (e não mudou), é o mais curto da Europa no que respeita à interrupção de gravidez “a pedido”. 

E é necessário também perceber o motivo da existência de tanta resposta torta ou inexata por parte de quem tem a incumbência de, na primeira linha, acolher quem precisa de ajuda. Não poderá existir, no que respeita à IG, uma obstaculização deliberada, surda, preconceituosa, por parte daquilo a que se dá o nome de “serviços”?

Um médico que há décadas trabalha em consultas de IG, e que pede para não ser identificado, tem a certeza de que sim: “Há muitos boicotezinhos, até da arraia-miúda. E nunca me esquecerei de uma diretora de serviço que proibiu a datação da gravidez na urgência do hospital, dizendo: ‘Esta marquesa é para mulheres que pagam impostos e querem ter filhos’.” Há quem tenha esta atitude, explica, e quem obstaculize de forma mais subtil, “com a ordem de prioridades. Porque a interrupção de gravidez é sempre deixada para o fim da lista. Perguntam: ‘É mais importante uma consulta de oncologia ou de IG?’ Pois eu acho que são ambas importantes.”

Por extraordinária coincidência, quando o DN telefona para o geral do Hospital de Portimão (o número “dedicado” estava sempre interrompido) e insiste para falar com alguém sobre interrupção de gravidez, a telefonista faz a ligação para a extensão errada: “Interrupção de gravidez? Não, aqui é do serviço de oncologia, é engano”.

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