Manifesto de notáveis refere "provas" publicadas por Boaventura de Sousa Santos num site dedicado à sua defesa. No site, assume que enquanto era diretor do CES se "declarou" a uma sua aluna de doutoramento de 26 anos durante uma reunião de trabalho entre os dois.
Manifesto de notáveis refere "provas" publicadas por Boaventura de Sousa Santos num site dedicado à sua defesa. No site, assume que enquanto era diretor do CES se "declarou" a uma sua aluna de doutoramento de 26 anos durante uma reunião de trabalho entre os dois.(Fernando Fontes / Global Imagens)

Boaventura “provou falsidade das acusações”, diz carta assinada por ex-PGR Cunha Rodrigues

A carta, intitulada “Manifesto contra o cancelamento” afirma-se pela presunção de inocência, mas vai mais longe: diz que Boaventura de Sousa Santos está inocente. Entre os signatários, além de vários notáveis portugueses, estão a mulher do interessado e Bruno Sena Martins, o antropólogo que saiu do CES na sequência de imputações de violação.
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“Boaventura de Sousa Santos é um intelectual público conhecido nacional e internacionalmente. Desde há três anos é vítima de uma difamação. Nunca foi julgado nem condenado a não ser nos meios de comunicação social e nas redes sociais. Nunca pôde defender-se nem beneficiar da presunção de inocência ou das garantias processuais fundamentais. Recentemente tornou públicos os documentos que provam a falsidade das acusações que contra ele fizeram ex-investigadoras do CES [Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra].”

É assim, falando da necessidade de respeitar a presunção de inocência para, logo a seguir, comprovar essa mesma inocência ao certificar que o catedrático de sociologia “tornou públicos os documentos que provam a falsidade das acusações contra ele”, que se inicia o texto do “Manifesto contra o Cancelamento”, tornado público a 18 de dezembro e que sete dias depois reunia 272 assinaturas de “notáveis” de vários países. Entre elas a do ex-Procurador-Geral da República José Cunha Rodrigues, a da escritora Lídia Jorge, a do constitucionalista Vital Moreira, do Prémio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel e do ex-juiz espanhol Baltasar Garzón.

Esta certificação de inocência de BSS surge num momento em que decorre ainda o inquérito criminal aberto em 2024 pelo Ministério Público na sequência da entrega às autoridades judiciais, pela atual direção do CES, das conclusões de uma Comissão Independente sobre os alegados abusos perpetrados por "pessoas com poder" neste centro académico (do qual Boaventura de Sousa Santos foi diretor desde a fundação, em 1978, até 2018) e de uma carta de um coletivo de mulheres que se apresentam como "vítimas do CES".

Existe ainda outro procedimento criminal em curso: o sociólogo apresentou uma queixa por difamação contra 13 mulheres — as integrantes, justamente, do coletivo conhecido como "de vítimas do CES", ou "Coletivo Internacional de Mulheres que denunciam assédios em contexto académico". Este processo foi, de acordo com informação recolhida pelo DN, agregado ao de uma queixa de duas das mulheres visadas por BSS contra o sociólogo, também por difamação.

"O seu sentimento era genuíno, sincero, e o seu gesto não teve qualquer conotação grosseira, vulgar ou erótica. Não deixava de ser constrangedor que BSS, um homem com 74 anos de idade, fizesse uma declaração de amor a uma jovem de vinte e seis anos.(...) Ao contrário do que referiu Isabella Gonçalves Martins, não houve qualquer contacto físico nessa conversa. Nem BSS afirmou a IGM que esta poderia ter benefícios se tivesse uma relação íntima com ele."

Excerto de documento publicado, como "prova da falsidade das denúncias", no site de defesa de BSS.

Além dos nomes já citados, vários outros ressoam na longa lista que se pode consultar online, no site supportboaventura.com, criado em 2025 para defesa de Boaventura de Sousa Santos (doravante BSS). No que respeita aos portugueses, assinalam-se a presença do militar de Abril Vasco Lourenço, do cientista e ex-deputado do PS Alexandre Quintanilha, do jornalista, advogado e fundador do Partido Renovador Democrático (criado em 1985 sob a égide do então Presidente da República, Ramalho Eanes) José Carlos de Vasconcelos, dos escritores Helder Macedo e Almeida Faria, dos ex-secretários de Estado João Correia (Justiça) e Ana Benavente (Educação), e da professora catedrática e conhecida feminista Lígia Amâncio.

O abaixo-assinado de desagravo visa, afirma, pôr fim ao que refere como “morte civil” de BSS: “É tempo de acabar com o silenciamento de Boaventura de Sousa Santos e de novo ouvir a sua voz. É tempo de pôr fim à sua morte civil. É tempo de voltar a vê-lo participar na realidade nacional e internacional. É tempo de ver publicados os novos livros que entretanto completou. É tempo de rejeitar mobilizações contrárias, públicas ou não, às suas intervenções em eventos intelectuais, culturais, políticos, como aconteceu recentemente na Universidade de São Paulo. (…) É tempo de acabar com tão pesado e injusto silenciamento de um grande intelectual.”

O silenciamento em causa refere, recorde-se, a onda de choque do escândalo mediático e académico mundial que se seguiu à publicação, no final de março de 2023, de uma coletânea internacional sobre Assédio Sexual na Academia (Sexual Misconduct in Academia, da editora científica Routledge, a qual viria a “despublicar” o livro na sequência de ameaças de processos judiciais). A colectânea incluía um artigo, intitulado The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia, descrevendo um centro académico (que não identificava) onde existiam três personagens centrais que compõem aquilo que é caracterizado como um “triunvirato de abuso”: “o Professor Estrela”, “o Aprendiz” e “a Sentinela”. 

As autoras, a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a americana Miye Nadia Tom, passaram pelo CES no respetivo percurso académico, o que permitiu identificar quer a instituição referida no artigo quer as pessoas referidas — desde logo, BSS como “O Professor Estrela”. Isso mesmo assumiu aliás este quando foi, no início de abril de 2023, confrontado pelo DN com a existência do artigo. Logo aí afirmou-se alvo de cancelamento, caracterizando as imputações do artigo como difamatórias.

O caso Isabella e a “declaração de amor” de Boaventura

Uma dessas imputações — a mais grave que lhe diz respeito no citado artigo, e que o próprio assim reconhece, considerando que foi a causa das pichagens que surgiram nas paredes do CES (as tais paredes que "falavam quando ninguém mais se atrevia"), nas quais se lia “Todas sabemos, Boaventura” — relata uma situação em que o “Professor Estrela" teria tocado o joelho de uma estudante de doutoramento de quem era orientador, "convidando-a a "aprofundar o relacionamento" como "paga" do seu apoio académico". Abordagem que, ainda segundo o artigo, teria levado a estudante a voltar ao seu país de origem.

A estudante em causa identificou-se publicamente logo a 14 de abril de 2023: trata-se da política brasileira e deputada estadual do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Isabella Gonçalves, que foi estudante de doutoramento na instituição coimbrã a partir de 2013.

Como sucede com todas as suas outras “acusadoras” (incluindo todas as integrantes do Coletivo de Vítimas do CES), BSS dedica-lhe um longo documento no separador das “provas" do site supportboaventura.com, titulado “Isabella Gonçalves Martins”, no qual reproduz emails trocados pelos dois e fotografias em que ambos aparecem.

Nesse documento, é citada a entrevista que Isabella deu a 14 de abril de 2023 ao site brasileiro Agência Pública, na qual se lia: “‘Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação’. Ela relata que foi embora atordoada. No dia seguinte, ela conta que o professor a convidou para uma conversa junto com o ex-companheiro dela, que estudava no mesmo centro acadêmico. ‘Ele humilhou nossos trabalhos. Meu ex-companheiro chorava muito’, lembra. ‘Ali identifiquei que você poderia ter vantagens por estabelecer relações afetivas e sexuais com professores. Mas, se você se nega, é punida por isso.’”

Ora, lê-se no documento, “a narrativa de IGM [Isabella Gonçalves Martins] não é verdadeira e vem causando graves prejuízos à reputação e à saúde de BSS. A narrativa concentra-se em três núcleos de informação: a) uma declaração onde IGM diz ter sofrido assédio por parte de seu então orientador, BSS, no decurso de uma reunião que se passou no escritório do professor; b) BSS era conhecido por ter comportamentos impróprios e abusivos; c) os prejuízos que lhe causou nos planos profissional, pessoal e financeiro (nomeadamente a perda da bolsa de estudos). (…) IGM mente nos três casos e causa grandes prejuízos à imagem e à reputação de BSS.”

E passa-se a explicar por que motivo se afirma que a denúncia de Isabella é falsa: “É importante mencionar que se tratou de uma reunião profissional, que ocorreu em seu [de BSS] escritório, e não em seu apartamento, como IGM afirma na entrevista, e que, ao contrário do exposto por ela, jamais teve qualquer conotação libidinosa, como IGM dá a entender (…)." 

Boaventura de Sousa Santos com Isabela Gonçalves em março de 2013 "durante  durante o ato de abertura do Fórum Social Mundial da Tunísia". (foto reproduzida no documento sobre Isabella no site de defesa de BSS).
Boaventura de Sousa Santos com Isabela Gonçalves em março de 2013 "durante durante o ato de abertura do Fórum Social Mundial da Tunísia". (foto reproduzida no documento sobre Isabella no site de defesa de BSS).

Ao longo de 49 páginas, o texto, que trata sempre BSS na terceira pessoa, explica que este conheceu Isabella a partir de 2009 e que na altura em que ela começou a fazer o doutoramento sob sua orientação tinha um namorado, que também foi para o CES, apresentando-se a relação entre os três como de “muita cumplicidade e uma amizade muito grande”.  Sempre, refere o documento, “com uma forte demonstração de carinho e afeto, a relação entre o jovem casal e BSS assumiu uma crescente intensidade, dada a convergência dos interesses científicos com as lutas políticas contra a desigualdade e a discriminação. BSS passou a nutrir uma grande admiração por IGM, não só por conta de sua trajetória de lutas e ativismo social, mas também por seu grande brilhantismo e potencial intelectual e académico.” 

A partir de setembro de 2014, porém, lê-se no documento, BSS havia tomado conhecimento de que "IGM e o namorado tinham rompido a sua relação no início do segundo semestre desse ano". No início de outubro, foi aprazada uma reunião presencial entre BSS e Isabella, como orientador e orientanda. “Ela ligou-lhe e marcaram a conversa presencial para o dia 10 de outubro de 2014 (aproveitando uma passagem de BSS por Portugal vindo do Peru e a caminho de Madison)”, lê-se no documento. “Como já havia ocorrido outras vezes, a conversa ocorreu no escritório particular de BSS onde, por escassez de espaço no CES e de tempo de BSS em Portugal, por vezes tinha reuniões de trabalho.”

A descrição prossegue: “Durante o diálogo, considerando que a relação entre BSS e IGM tinha um caráter de muita proximidade e de grande afeto, de amizade muito distinta da relação com outros colegas (…), de outros orientandos e até mesmo de outros colegas do CES, BSS disse-lhe que pensava ter um sentimento de amor por ela. Ela respondeu prontamente, indicando que esse sentimento não era recíproco. Embaraçado, BSS levantou-se de imediato e pediu-lhe desculpa por ter-se declarado, dizendo textualmente: ‘Desculpa-me por não ter controlado os meus sentimentos’. O seu sentimento era genuíno, sincero, e o seu gesto não teve qualquer conotação grosseira, vulgar ou erótica. Não deixava de ser constrangedor que BSS, um homem com 74 anos de idade, fizesse uma declaração de amor a uma jovem de vinte e seis anos. Entendeu BSS, por respeito à amizade que os unia, que deveria ser sincero com a IGM. Ao contrário do que referiu IGM, não houve qualquer contacto físico nessa conversa. Nem BSS afirmou a IGM que esta poderia ter benefícios se tivesse uma relação íntima com ele. Nem IGM se levantou e saiu da reunião. Na verdade, a conversa continuou normalmente e foram abordados outros temas (…).”

“BSS orgulha-se de tudo o que fez contra o patriarcado”

Não existe no documento, no qual são publicados emails posteriores entre BSS e Isabella, visando demonstrar que esta não rompeu de imediato a relação com o orientador (nota-se, porém, uma mudança progressiva de tom nessas comunicações, até um email de janeiro de 2015 no qual Isabella assume o fim da relação académica com BSS), qualquer outra consideração ou reflexão relacionada com a propriedade ou impropriedade da “declaração de amor” que o então diretor do CES confessa ter efetuado a uma aluna no meio de uma reunião de trabalho que o próprio descreve como tendo “a finalidade de reestruturar o futuro académico de IGM”.

Pelo contrário: na conclusão deste capítulo, lê-se: “BSS reafirma que nunca cometeu qualquer tipo de violência contra a IGM. Nunca lhe prometeu tratamento diferenciado, nem jamais lhe fez insinuações de que ela poderia ter qualquer tipo de benefício por se relacionar com ele. O comportamento de BSS sempre foi correto, em mais de cinco décadas de carreira académica, o professor jamais sofreu qualquer interpelação por má conduta, bem como jamais foi ligado a comportamentos antiéticos ou imorais. Nunca fez chantagens, ameaças, nunca ofereceu vantagens, nunca tentou coagir qualquer pessoa para obter favorecimento sexual. (…) Por fim, importa repetir que BSS se orgulha de tudo o que fez contra o patriarcado.

Isabella relatara ao DN, em julho de 2024 (esse relato seria apenas publicado em setembro no jornal), que BSS tentara, através de uma advogada brasileira, chegar a acordo com ela. O DN tentou então confirmar o facto com o sociólogo: “Uma das suas alegadas vítimas diz que foi contactada por um advogado que o representa. Confirma que esse contacto existiu?” A resposta foi negativa: “Tenho um advogado para a minha defesa constituído em Portugal, que aguarda a comissão [Independente] para que possa atuar de facto no caso. Ele não fez nenhum contacto.”

Porém no documento agora publicado assume-se a veracidade desse relato da política brasileira: “Como BSS não queria agir judicialmente contra IGM, a melhor solução era entender as suas motivações, estando aberto a resolver a questão através da via restaurativa e com a intervenção de uma advogada especializada nesse domínio. Assim se fez. A advogada entendia que um depoimento conjunto de BSS e IGM poderia esclarecer plenamente o caso entre ambos e (…) levantarem a discussão sobre um problema contra o qual ambos podiam lutar: o assédio na academia.” Mas, lamenta o texto, foi “tudo em vão. Tornou-se então claro que IGM precisava de ser considerada vítima de assédio sexual para singrar na sua carreira política pela pauta feminista.

Uma das pichagens que apareceram nas paredes do CES, às quais faz referência o artigo The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia, publicado em março de 2023 numa colectânea internacional sobre assédio sexual na academia.
Uma das pichagens que apareceram nas paredes do CES, às quais faz referência o artigo The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia, publicado em março de 2023 numa colectânea internacional sobre assédio sexual na academia.

Segundo Isabella, a conversa com a advogada terá ocorrido a 16 de maio de 2023. Descreve-a assim:  "Foi uma reunião bastante violenta, não da parte dela, mas para mim, por estar a reviver tudo o que sucedeu e porque todas as condições que eu colocava eram desconsideradas. Ela estava todo o tempo tentando conduzir a coisa para que eu firmasse um termo [assinasse uma declaração] de que nada aconteceu comigo, e que se alguma coisa aconteceu foi porque o Boaventura se apaixonou e não tem culpa de se ter apaixonado.

A política brasileira contou ao DN que uma das condições por si colocadas era de que o sociólogo fizesse uma retratação pública em relação aos seus atos. "Aí ele fez uma carta num jornal [trata-se de um texto publicado a 4 de junho no Expresso], falando que era uma espécie de reconhecimento, que como homem podia ter cometido erros. Mas essa carta é absolutamente insatisfatória, não reconhece nada. E interrompi o processo.”

Mulher de Boaventura, “O Aprendiz” e “A Sentinela” assinam manifesto

Há ainda, entre as assinaturas que o DN encontrou na lista do "manifesto contra o cancelamento" a 25 de dezembro, outras que merecem ser assinaladas. Desde logo, a de Maria Irene Ramalho, professora jubilada da Faculdade de Letras e investigadora do CES. Descrita pela Lusa como fazendo parte do grupo de promotoras da iniciativa,“as feministas Isabel Allegro de Magalhães, Mary Layoun e Maria Irene Ramalho”, a académica é também mulher de BSS.  

Outra assinatura que chama a atenção é do antropólogo Bruno Sena Martins. Sena Martins, que saiu do CES em abril de 2025 na sequência de novas imputações, por duas mulheres, de crimes sexuais (imputações essas efectuadas numa reportagem do DN), esteve com BSS no centro do escândalo desencadeado pela publicação de The walls spoke when no one else would. Nesse relato, Sena Martins, sob o apodo de “O Aprendiz”, era acusado de violação — a violação de uma das autoras do artigo, Miye Nadia Tom. 

Igualmente na lista de assinaturas do manifesto está a mulher que no referido artigo era crismada de “Watchwoman”, ou “Sentinela”, a investigadora coordenadora do CES Maria Paula Meneses, apontada pelas autoras como o terceiro vértice do referido triunvirato de abuso no CES.

“O assédio tem de ser insistente, tem de ser tirar vantagens, prometer vantagens a ninguém, nunca fiz insistência, não é não, para mim sempre não foi não e muitas vezes isso aconteceu. Agora se vamos pelo caminho de que tudo é assédio…” 

BSS em entrevista à CNN em março de 2025

Ainda de relevar é a assinatura do sociólogo António Sousa Ribeiro, que sucedeu a BSS na direção do CES (entre 2018 e 2023) e é igualmente referido no artigo em questão como alguém muito próximo do objeto do manifesto e que, apesar de ter conhecimento de desmandos (nomeadamente da situação ocorrida com Isabella Gonçalves), nada teria feito. Sousa Ribeiro desvinculou-se do CES em dezembro de 2024, juntamente com vários outros investigadores seniores, depois de o próprio BSS ter feito o mesmo no mês anterior. 

Recorde-se que após a publicação do artigo na colectânea sobre assédio na academia a direção do CES anunciou a criação de uma comissão independente para averiguar os factos, a qual apresentou em março de 2024 o seu relatório. Neste concluía-se: “A análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”, e que as denúncias de abuso tinham sido sempre “tratadas como assuntos privados entre pessoas adultas”.

Com base nessas conclusões, a direção do centro exarou uma carta aberta pedindo desculpa às vítimas e prometendo agir em relação aos denunciados, tendo Tiago Santos Pereira, o diretor, comunicado, na apresentação do relatório da Comissão aos jornalistas, que o mesmo fora remetido ao Ministério Público (o qual, como referido, abriu um inquérito que continua a decorrer).

Pouco depois, perante o facto de BSS anunciar publicamente que o relatório da comissão o ilibava, o Coletivo de Vítimas publicou a sua sexta carta, na qual pela primeira vez revelava nomes de vítimas e mostrava disponibilidade para dar a conhecer publicamente as suas histórias concretas.

“Se vamos pelo caminho de que tudo é assédio…”

Seguiu-se, no CES, um processo de averiguações interno com vista a apurar se existiam fundamentos para processos disciplinares. É na sequência desse processo que BSS, que se havia “auto-suspendido” de todas as funções no CES em abril de 2023, anuncia em novembro de 2024 a sua desvinculação do mesmo, num email enviado a todo o universo CES, no qual acusa a direção de o querer “expulsar” e de proceder a "um linchamento”.

"Tive conhecimento de que o processo de averiguações estava concluído, mesmo sem eu ter sido ouvido, nem ter tido a possibilidade de apresentar a minha defesa perante acusações formalizadas”, lia-se no email. “Não posso pactuar com esta conduta de uma direção da instituição que criei, a qual, descontente com o relatório da comissão independente, promove o linchamento, sem provas e sem qualquer preocupação com a verdade, de um investigador de renome internacional que, com o seu esforço e dos seus colaboradores, tornou o CES numa das mais prestigiadas instituições científicas do mundo na área das ciências sociais.” 

Na mesma comunicação, BSS anunciava que iria disponibilizar publicamente "todos os documentos que sustentam a minha versão dos factos" e que tenciona "dedicar as forças aos processos judiciais" e espera "que um dia a verdade fale mais alto.

Em março de 2025, em entrevista à CNN, assumiria a autoria de um áudio de WhatsApp no qual acusava a direção do CES de causar cancro à amiga Maria Paula Meneses. “A difamação de que ela e eu, enfim, todos nós, fomos vítimas, a depressão que a difamação lhe causou, é certamente uma causa relevante para o cancro que ela tem hoje”, ouve-se no dito áudio. “Portanto, a direção do CES, a direção do Conselho Científico [do CES], pessoas como o Tiago Santos Pereira, a Marta Araújo, a Ana Cordeiro Santos, Catarina Martins, Sara Araújo, Teresa Cunha [todas investigadoras do CES, e parte delas integrantes do Coletivo de Vítimas], entre muitas outras, terão um peso para toda a vida. Morrerão tão desgraçadas quanto viveram (…).”

Na dita entrevista, no entanto, BSS, afirmando-se “profundamente injustiçado, profundamente magoado”, nega qualquer sentimento de ódio: “Apesar desta mágoa toda acho que não consigo odiar. (…) Elas [as mulheres que acusam] de alguma maneira são vítimas do neoliberalismo que se instalou e é pena que não assumam a sua responsabilidade, porque isso é típico do neoliberalismo, é transferir para os outros as responsabilidades.”

E, gabando-se de ter tido “sorte com as mulheres” — “era considerado uma pessoa atraente, ter sorte com as mulheres não é crime nenhum” —, garantiu que nunca assediou ninguém: “O assédio tem de ser insistente, tem de ser tirar vantagens, prometer vantagens a ninguém, nunca fiz insistência, não é não, para mim sempre não foi não e muitas vezes isso aconteceu. Agora se vamos pelo caminho de que tudo é assédio…” 

O sociólogo intentou em 2024 uma ação cível, de defesa dos direitos de personalidade, contra quatro mulheres que o acusaram publicamente de várias formas de abuso no âmbito do CES, tendo requerido ao tribunal que impusesse uma "ordem de silêncio" às rés, de modo a que estas fossem impedidas de falar do processo (o tribunal recusou esse pedido). Como já referido, mais recentemente apresentou queixa-crime por difamação contra as mesmas e mais nove mulheres, anunciando que desistira da ação cível. Ao DN, porém, uma das rés da ação cível garantiu que esta ainda não terminou.

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