Boaventura Sousa Santos
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Boaventura de Sousa Santos demite-se do CES alegando "linchamento"

O fundador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra anuncia a sua saída no momento em que o processo de averiguações interno que sobre ele incide chega ao fim. Acusa a direção de o querer "expulsar" e de "promover o linchamento" e anuncia mais uma ação nos tribunais contra o "coletivo de vítimas".
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"Já não confio que possa haver no CES [Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra] qualquer tipo de julgamento imparcial e não tenho quaisquer dúvidas de que o objectivo da direção do CES é (e sempre foi) expulsar-me. Não tenho dúvidas de que a direção do CES age de modo parcial, com total violação das regras do direito democrático (presunção de inocência), politicamente motivada, devido às disputas internas na instituição, e quer condenar-me publicamente, antes que os Tribunais se pronunciem sobre os casos que estão a ser tramitados."

Foi com palavras duras contra a direção atual do centro académico, que fundou em 1978, que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (BSS) anunciou, esta terça-feira, em email enviado aos membros, a sua saída. O académico, que diz ter sabido que o processo de averiguações interno da instituição contra si chegou ao fim - "Tive conhecimento de que o processo de averiguações estava concluído, mesmo sem eu ter sido ouvido, nem ter tido a possibilidade de apresentar a minha defesa perante acusações formalizadas" -, parece assim estar a antecipar-se ao respetivo resultado,  imputando à direção do CES a intenção de promover o seu "linchamento".

"Não posso pactuar com esta conduta de uma direção da instituição que criei, a qual, descontente com o relatório da comissão independente, promove o linchamento, sem provas e sem qualquer preocupação com a verdade, de um investigador de renome internacional que, com o seu esforço e dos seus colaboradores, tornou o CES numa das mais prestigiadas instituições científicas do mundo na área das ciências sociais."

Na mesma comunicação, BSS anuncia que vai disponibilizar publicamente "todos os documentos que sustentam a minha versão dos factos" e que tenciona "dedicar as forças aos processos judiciais" e espera "que um dia a verdade fale mais alto."  Também adianta que "vai entrar nos próximos dias" na justiça uma segunda ação, semelhante àquela que já corre nos tribunais contra quatro das mulheres pertencentes ao "coletivo de vítimas do CES", dizendo respeito a outros membros desse coletivo - as "não residentes" em Portugal. 

O sociólogo também afirma que "aqueles que internamente me apoiavam têm sido silenciados e alvos de perseguição, havendo recusa na publicação de textos e artigos, como nunca havia sucedido na instituição". E acusa: "Isto não é o CES, uma instituição onde antes toda a diversidade de opiniões poderia ser expressa".

Recorde-se que as denúncias contra BSS surgiram a partir da publicação, em março de 2023, de um artigo, inserto num livro da editora científica internacional Routledge, no qual se descreviam situações de assédio e "extractivismo intelectual" ocorridas num centro académico não identificado no qual "reinava" um professor de renome internacional, denominado de "professor estrela" e que o próprio Boaventura de Sousa Santos reconheceu ao DN pretender retratá-lo. Uma das acusações efetuadas no artigo, o qual viria a ser causa de "despublicação" do livro por decisão da editora (naquilo que vários académicos consideraram uma "ação de censura"), era precisamente a do silenciamento das denúncias dentro da instituição. O título, de resto, remetia para essa ideia - "The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia", aludindo a pichagens que surgiram nas paredes do CES em 2018, e nas quais se lia, por exemplo, "Boaventura, todas sabemos".

Processo interno no CES foi "para responder à pressão mediática"

Lembrando que se "autossuspendeu" das suas funções no CES em abril de 2023, após as primeiras notícias sobre as acusações de assédio na instituição, "para que se estabelecesse uma Comissão Independente com vista à averiguação", e alegando ter aguardado "em silêncio a sua implementação, que ocorreu vários meses depois" (na verdade, não aguardou em silêncio, reagindo logo em abril de 2023 às acusações, ameaçando com processos nos tribunais e queixando-se de "cancelamento" e de ser atacado pelas suas posições políticas, tendo inclusive, em julho de 2023, dado uma entrevista sobre as acusações nas quais as associava à sua posição sobre a invasão da Ucrânia), BSS frisa que o relatório dessa comissão concluiu pela existência de 14 pessoas "denunciadas" por diversos motivos mas não as identificou nem, afirma, lhes imputou "crimes ou faltas graves". Também sublinha o facto de a CI não ter usado a palavra "vítima".

E cita, das conclusões do relatório, conhecido em março de 2024, dois excertos: "Verificou-se que as versões apresentadas por várias pessoas denunciantes e por várias pessoas denunciadas foram em muitas situações incompatíveis entre si, tornando-se, nessas situações, impraticável aferir evidências das mesmas"; "a documentação apresentada e as audições realizadas, tanto de pessoas denunciantes como de pessoas denunciadas, não permitiram esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas à CI".

Logo de seguida, porém, reconhece que a CI recomendou que as acusações mais graves e de teor criminal fossem encaminhadas para o Ministério Público (MP) - o que significa que a comissão identificou indícios de terem existido "crimes e faltas graves". De facto, o relatório da CI, se de facto não indica "nomes", concluiu pela existência de "um padrão de abuso e de assédio" no CES: "A análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES.” 

BSS insurge-se ainda contra o facto de a direção do CES ter, antes da divulgação do relatório, escolhido publicar, naquilo que caracteriza como "uma ação política parcial", um comunicado no qual pedia desculpa "às vítimas", "sem dar o benefício da dúvida aos muitos investigadores visados". E atribui à existência desse comunicado o motivo de o seu nome ter "vindo a ser o mais atingido na guerra mediática que se abriu contra mim, em que o tom é sempre o da condenação prévia". Acusa ainda a direção do CES de, a seguir à publicação do relatório da CI e da divulgação de uma carta do "Coletivo de Vítimas do CES", ter querido responder "à pressão mediática" abrindo "um processo interno".

Processo no qual, certifica, não teve direito a defesa: "Fui chamado para prestar declarações nesse processo e compareci perante os inquiridores. Disseram-me que queriam apenas levantar questões oralmente numa simples conversa 'informal'. Dispus-me a prestar declarações, solicitando que me fossem dadas a conhecer as acusações de que eu era alvo e quem as fazia. Esse direito, que é básico em qualquer direito de defesa, foi-me negado, o que não permitiu o exercício do direito ao contraditório". BSS alega ainda que a direção do CES terá dado "a entender aos associados" que se "havia negado a depor", o que refuta: "Essa informação não corresponde à verdade, tal como demonstram a ata da audiência com os inquiridores, à qual eu compareci, bem como as trocas de e-mails entre os meus advogados e os advogados do CES."

Foi o facto de não lhe terem sido facultadas informações sobre as acusações, explica BSS, que o levou a colocar um processo contra quatro das mulheres que o denunciaram, pertencentes ao Coletivo de Vítimas do CES: visa com ele "ter acesso formal às acusações" que lhe são feitas, motivo pelo qual "o processo foi apresentado na esfera civil, por meio da ação de tutela de personalidade" (ação de particular rapidez e na qual não existe, ao contrário do que sucede nos processos criminais, a possibilidade de segredo de justiça). Tendo sido dirigida apenas a mulheres residentes em Portugal, o que tem criado alguma perplexidade, esta ação, anuncia agora o sociólogo, será seguida por outra, dirigida às denunciantes não residentes no país, e que "está a ser elaborada e dará entrada nos próximos dias".

A direção do CES não fez até ao momento qualquer comentário a propósito destas acusações. Contactada pelo DN, a comunicação da instituição disse não ter ainda informação sobre se vai haver alguma reação ao comunicado de BSS.  

A ação de tutela da personalidade colocada por Boaventura de Sousa Santos contra quatro das mulheres que o denunciaram foi, por decisão da juíza titular de 15 de novembro, quando deveria ter lugar a primeira audiência, "fechada" ao público, o que significa que ninguém poderá assistir à "produção de prova" - a qual terá de dizer respeito à existência ou não de assédio. Entretanto, corre no MP o inquérito criminal relativo às denúncias efetuadas à Comissão Independente, que de acordo com o que o DN conseguiu saber "está a começar a avançar".

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