Boaventura de Sousa Santos acusa direção do CES de causar cancro a amiga
“É preciso ver que esta doença da Paula foi provocada pela infame difamação de que foi objeto, pela cobardia inteira de uma comunidade, pela impotência que tivemos, pela perfídia, pela inveja, pela intriga a que não pudemos, a que ela não pôde resistir.”
Estas palavras fazem parte de um áudio que foi partilhado na rede de comunicação Whatsapp em fevereiro como sendo da autoria de Boaventura de Sousa Santos (BSS), e que este, em entrevista à CNN este domingo, ao jornalista André Carvalho Ramos, assumiu ser seu.
Na gravação, era dada informação sobre a doença oncológica de uma investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, pessoa próxima de BSS, e mencionadas vários nomes como sendo os de responsáveis por essa doença, incluindo a atual direção daquele centro académico do qual, recorde-se, BSS se demitiu em novembro último, acusando a direção de querer “promover o seu linchamento”.
“A difamação de que ela e eu, enfim, todos nós, fomos vítimas, a depressão que a difamação lhe causou, é certamente uma causa relevante para o cancro que ela tem hoje”, ouvia-se no áudio. Que assumia inclusive um tom de maldição, prevendo que as pessoas referidas, entre as quais estão mulheres integrantes do Coletivo de Vítimas do CES (criado em 2023, na sequência da publicação de um capítulo sobre o centro académico num livro internacional sobre assédio sexual na academia), irão “morrer tão desgraçadas quanto viveram”.
“Portanto, a direção do CES, a direção do Conselho Científico [do CES], pessoas como o Tiago Santos Pereira, a Marta Araújo, a Ana Cordeiro Santos, Catarina Martins, Sara Araújo, Teresa Cunha [todas investigadoras do CES, e parte delas integrantes do Coletivo de Vítimas], entre muitas outras, terão um peso para toda a vida”, ouvia-se na mensagem. “Morrerão tão desgraçadas quanto viveram com o peso de terem eventualmente - esperemos que não, mas a esperança é pequena, mas existe - podem ter cerceado a vida da intelectual mais brilhante com quem eu convivi toda a minha vida, que como sabeis, é uma longa vida.”
Malgrado as informações sobre o estado de saúde de alguém serem por definição matéria da reserva da vida íntima, BSS, que não menciona na mensagem a autorização da pessoa em causa para divulgar as mesmas, encorajava os destinatários a partilhá-la: “Dou as notícias desta forma para que as possais distribuir, não temos nada a esconder.” Assim foi: o áudio correu o meio académico português.
À CNN, no entanto, BSS disse estranhar tal difusão: “Mandei-o a oito pessoas amigas e tornou-se viral não sei porquê.”
Questionado por André Carvalho Ramos sobre o objetivo do áudio, BSS não recuou nas acusações que nele faz e deu ainda mais informação sobre a doença da amiga, inclusive esclarecendo o estádio respetivo e o tempo de vida que os médicos lhe dão. Adiantou até que também ele teve de “pôr, há poucos meses, um stent numa das coronárias”, e que o médico lhe disse “professor Boaventura, o senhor ultimamente tem tido muito peso em cima de si”.
Negando constituir o áudio um ato de assédio, BSS afirmou sentir-se “profundamente injustiçado, profundamente magoado”, mas incapaz de odiar: “Apesar desta mágoa toda acho que não consigo odiar. (…) Elas [as mulheres que acusam] de alguma maneira são vítimas do neoliberalismo que se instalou e é pena que não assumam a sua responsabilidade, porque isso é típico do neoliberalismo, é transferir para os outros as responsabilidades.”
Em fevereiro, quando teve conhecimento da mensagem, o DN contactou BSS por email, para averiguar da autenticidade da mesma e se, sendo autêntica, o académico tinha autorização da amiga para divulgar publicamente a sua situação de saúde - e qual o objectivo dessa divulgação. Não houve resposta. Perante a confirmação da autoria, o jornal tentou obter as reações do diretor do CES e do Coletivo de Vítimas do CES em relação a estas imputações agora públicas. O primeiro não respondeu, mas do segundo veio a certificação de que “serão tomadas medidas legais, nomeadamente queixa-crime por difamação”.
“As mulheres verdadeiramente vítimas não gostam de falar”
Como tem vindo a fazer desde que rebentou o escândalo, em abril de 2023, BSS voltou a negar, na entrevista à CNN, as acusações que têm surgido contra si. E anunciou mais uma vez (tem-no feito periodicamente) que vai tornar públicas “600 páginas de documentos” que segundo ele “provam” que tais acusações não têm fundamento.
Clamando ser “um dos sociólogos mais citados do mundo”, voltou também a apresentar as acusações contra si como motivadas por "inveja" e pelo desejo de o “afastar”: “Houve razões externas e internas para que isto sucedesse. Primeiro, a minha reputação é uma reputação internacional; se me queriam afastar, tinham de o fazer com estrondo, não podia ser uma coisa simples. (…) Não digo que haja um conluio direto, mas houve uma convergência de interesses, internos e externos, porque sou um pensador incómodo, sou um intelectual crítico, de esquerda, incómodo, que critica tanto a direita como a esquerda, não tenho igreja nem partido, e seria um alvo fácil para atacar para forças que estão fora do CES. (…) Porque é que se fala em assédio sexual? Porque o assédio sexual é que vende. Estamos num sistema em que o assédio sexual com o neoliberalismo se transformou numa agenda pública.”
Admitindo que é um homem que “teve sorte com as mulheres, era considerado uma pessoa atraente, ter sorte com as mulheres não é crime nenhum”, BSS garantiu que nunca assediou ninguém: “O assédio tem de ser insistente, tem de ser tirar vantagens, prometer vantagens a ninguém, nunca fiz insistência, não é não, para mim sempre não foi não e muitas vezes isso aconteceu. Agora se vamos pelo caminho de que tudo é assédio… Aliás as mulheres nunca me manifestaram isso, pelo contrário. Uma delas por exemplo, num jantar, no meio da euforia, de estarmos a discutir poesia, vir junto de mim sentar-se ao meu colo, por exemplo. Eu não me senti assediado. Ou quando uma delas põe a mão na minha perna. É um contexto de amizade, de confraternização.”
Questionado por André Carvalho Ramos sobre se considera esse tipo de situação apropriada entre pessoas em situações de poder tão diferente, BSS garante: “Procurei ser sempre muito correto com as pessoas que trabalhavam comigo.” Admite porém que nos EUA, onde é professor numa universidade, age de outra forma. “Eu nos Estados Unidos não beijo as alunas. São culturas diferentes. A proximidade varia de cultura para cultura.” E prossegue com outro dos argumentos que repete há dois anos: “Nunca houve nenhuma queixa [no CES]. Nunca me disseram ‘está aqui uma denúncia documentada contra si’.”
De seguida, porém, assegura que o normal é as vítimas terem dificuldade em denunciar: “Fiz muitos estudos de assédio, ao longo dos anos, e quem estuda as questões do assédio sabe que as mulheres que são verdadeiramente traumatizadas e vítimas de trauma não gostam de falar, não querem falar. E por isso criámos instituições para elas falarem. Estas senhoras [refere as mulheres do Coletivo de Vítimas do CES que o acusam, contra parte das quais colocou uma ação cível que está em julgamento] foram privilegiadas - tiveram a trabalhar num grande projeto, onde poderiam ter feito grandes coisas, escrito grandes coisas - e agora são vedetas de televisão, mais parecem vendedoras de trauma.” Qualifica-as até como “pessoas cuja única sua reputação é terem destruído a minha reputação”.
“A questão do assédio em relação a mim é mínima”
A entrevista de BSS surge dois anos após o rebentar do escândalo sobre o assédio no CES, desencadeado pela publicação do artigo The walls spoke when no one else could/As paredes falaram quando ninguém se atrevia, inserto na coletânea Sexual Misconduct in Academia, da editora científica Routledge (a qual viria a “despublicar” o livro na sequência de ameaças de processos judiciais). O artigo em causa, da autoria da belga Lieselotte Viaene, da portuguesa Catarina Laranjeiro e da americana Miye Nadia Tom, descreve um centro académico não identificado onde existem três personagens centrais que compõem aquilo que é descrito como um “triunvirato de abuso”. São elas “o Professor Estrela”, “o Aprendiz” e “a Sentinela”.
No artigo, é descrita uma situação em que o Professor Estrela (designação que refere BSS) teria tocado o joelho de uma estudante de doutoramento de quem era orientador, "convidando-a a “aprofundar o relacionamento" como "paga" do seu apoio académico". Abordagem que, segundo o artigo, levou a estudante a voltar ao seu país de origem. Em abril de 2023, a brasileira Isabella Gonçalves, hoje deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade, assumiu publicamente que essa situação ocorreu com ela e que tentou denunciar o caso no CES.
Em declarações à Lusa, Isabella afirmou que na altura, em 2013, “o tom geral era que de facto ele [BSS] era intocável e qualquer denúncia poderia colocar em risco o meu processo de doutorado. Eu não tinha como colocar em risco o meu processo de doutorado estando a receber uma bolsa”. Assevera inclusive que falou com António Sousa Ribeiro (que sucedeu em 2019 a BSS na direção do CES) mas a denúncia não avançou.
Na entrevista à CNN, BSS menoriza a gravidade da denúncia de Isabelle, quando diz que, “no capítulo, a questão de assédio em relação a mim é mínima”. Até hoje, não é conhecida qualquer refutação circunstanciada da sua parte em relação ao relato da deputada brasileira.
Foi BSS que assumiu ser o “Professor Estrela”
Quando teve conhecimento do artigo, que saiu no final de março de 2023, o DN verificou que no percurso académico das três autoras só existia um centro académico em comum - o CES. Se o centro descrito era o CES, o “Professor Estrela” só poderia ser BSS - pelo que o jornal o contactou, para saber se lera o artigo. BSS assumiu, numa resposta escrita, datada de 8 de abril de 2023, que aquela personagem visava representá-lo, e negou as acusações que o artigo lhe faz, dizendo-se alvo de “cancelamento” e atribuindo-lhe a intenção de “lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor” e explicando-o como uma consequência do “neoliberalismo”: “O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjectividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz”.
Nessa primeira resposta pública a propósito do artigo e das suas acusações, BSS usou alguns dos argumentos que tem repetido nas suas várias intervenções sobre o caso ao longo destes dois anos - não só apresentou as acusações que lhe eram feitas como uma consequência do “neoliberalismo” como asseverou que nunca tinham existido denúncias de “alegadas condutas menos éticas (…) aos órgãos do CES” - frisando que "o CES tem um Código de Conduta, uma Comissão de Ética e uma Provedoria”.
Ora o Código de Conduta e a Provedoria do CES só foram criados em 2020, e a Comissão de Ética em 2017 - ou seja, bastante depois da data em que terão ocorrido a maioria, ou mesmo todos, os episódios que são narrados no artigo. Por outro lado, no relatório da Comissão Independente (CI) nomeada pela direção do CES para averiguar sobre assédio na instituição lê-se: “Algumas pessoas denunciantes referiram que informaram pessoas dentro do CES sobre situações de assédio e abuso, acrescentando que estas normalizaram as situações e referiram que se tratava de assuntos privados entre pessoas adultas.”
Outro argumento apresentado por BSS na entrevista concedida este domingo a André Carvalho Ramos e que não bate certo com a realidade é de que “a comunicação social teve neste aspeto um critério duplo”. O qual explica assim: “Tivemos na mesma altura uma acusação de assédio sexual na Faculdade de Direito de Lisboa, e nunca se soube o nome das pessoas nem nunca se viram as fotos; as minhas foram a primeira página dos noticiários durante vários dias da semana.”
Na verdade, como relatado, foi Boaventura de Sousa Santos que assumiu, em resposta ao DN, ser o “Professor Estrela” e o CES o centro académico retratado no capítulo do livro. Se não o tivesse feito, dificilmente alguém nos jornais poderia afirmá-lo ou publicar fotos suas. Foi porque BSS o assumiu que o DN pôde contactar a então direção do CES e pedir uma reação; foi na sequência desse contacto do DN que a direção do CES fez, a 11 de abril de 2023, um comunicado sobre o assunto e assumiu publicamente ser aquele o centro académico referido no livro.
Na justiça, além do processo instaurado por BSS contra três das mulheres integrantes do Coletivo de Vítimas do CES, corre um inquérito no Ministério Público relativo a denúncias de assédio e abuso de poder alegadamente ocorridos no CES.