Novas acusações de violência sexual contra investigador do CES
“Eu estava sentada e ele meteu a mão dentro dos meus calções, dentro de mim”;
“Agarrou-me por trás com força e pôs as mãos nos meus peitos”;
“Senti-me extorquida, pensei: este homem quer algo e tira sem pedir licença, sem consentimento”;
“Eu era uma estudante, ele era professor, dava aulas. Havia uma dinâmica de poder”;
“Não quero que esse cara abuse de outras pessoas, sinto-me no dever ético de contar isto.”
As vozes são de Andrea Vásquez, peruana, e de Helen Barbosa dos Santos, brasileira, duas académicas de 42 e 43 anos que decidiram agora acusar publicamente o antropólogo Bruno Sena Martins, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, de as ter agredido sexualmente em 2017.
Vozes que se juntam à da norte-americana Miye Nadya Tom, que no artigo The walls spoke when no else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia, publicado há exatamente dois anos numa colectânea internacional sobre assédio na academia, e do qual é co-autora com a portuguesa Catarina Laranjeiro e a belga Lieselotte Viaene --, imputa a Sena Martins “sexual assault” (agressão sexual), tendo voltado a fazê-lo em novembro, numa reportagem no Now Canal. E agora de novo ante o DN, especificando que a agressão sexual em causa foi uma violação e situando-a em 2011, quando tinha 27 anos e era estudante de doutoramento no CES.
Nenhuma das mulheres se queixou à justiça, estando eventuais responsabilidades criminais há muito prescritas na jurisdição nacional - os alegados factos, aos quais voltaremos mais à frente, terão ocorrido em território português.
Também não foram ouvidas nas averiguações levadas a cabo no âmbito do CES. Quer nas efetuadas pela Comissão Independente (CI) nomeada em 2023 para investigar as alegações contidas no artigo referido e as que foram surgindo a partir da respetiva publicação, quer nas posteriores, levadas a cabo por advogados contratados para avaliar se havia motivo para inquéritos disciplinares -- a “Comissão Prévia de Inquérito do CES”.
Andrea, atualmente investigadora num estabelecimento de ensino superior que prefere não seja nomeado, diz ter, em setembro de 2023, enviado, identificando-se, uma carta à CI a informar que tinha sido sexualmente agredida por Bruno Sena Martins (BSM) em 2017 e que estava disponível para dar o seu testemunho desde que lhe garantissem anonimato e confidencialidade, mas a comissão nunca a contactou. Miye, que prefere não identificar o local onde atualmente trabalha, não chegou a ser ouvida nem pela CI -- houve uma tentativa que não se efectivou e não voltaram a contactá-la depois disso -- nem pelos investigadores contratados pelo CES. Helen, professora visitante na Universidade Federal do Rio Grande (Brasil), nunca tinha, até agora, denunciado a agressão sexual de que garante ter sido vítima.
Andrea e Helen falam agora porquê? “Há uma componente de solidariedade”, explica a primeira. “Mas também tem a ver com sentir-me mais recomposta, capaz de falar disto sem me destruir.” A segunda diz algo de semelhante: “Foi muito importante saber da existência do Coletivo de Vítimas do CES, de todas aquelas mulheres que se juntaram para denunciar o que se passou com elas. O acolhimento coletivo das mulheres é um remédio, e sinto-me no dever ético de contar o que me sucedeu”.
Até porque, prossegue Helen, “na altura falei com ele [BSM] e meio que perdoei o que ele fez, mas disse: ‘Tu não faz isso com mais ninguém’. E depois vim a perceber que havia um padrão.”
“Não mais contribuirei para confrontos mediáticos”
Estes relatos surgem num momento em que BSM acaba de anunciar (a 17 de março) que regressou ao ativo no CES após quase dois anos de autossuspensão enquanto duraram as averiguações que se seguiram à publicação do artigo, e na sequência de, como explicou à Lusa, a direção do CES o informar de que se concluíra, no que lhe diz respeito, pela inexistência de “fundamento para um processo disciplinar, nem no plano laboral, nem estatutário”. E acrescentava: “Plenamente convicto da lisura das minhas ações e certo da minha integridade pessoal e funcional, não esperava outro desfecho.”
O ilibar do antropólogo pelas instâncias de averiguação nomeadas pelo CES e a sua notória satisfação com as mesmas contrasta com o ocorrido com o fundador e ex-diretor da instituição, Boaventura de Sousa Santos, que em novembro último, na sequência do anúncio de que a Comissão Prévia de Inquérito concluíra a averiguação sobre si, alegou estar a ser “linchado” pela direção do CES, que o quereria “expulsar”, e se demitiu de todos os cargos naquela instituição.
Previamente à publicação deste artigo, o DN contactou BSM, informando-o da existência de denúncias de violência sexual por ele alegadamente perpetradas sobre duas mulheres em 2017, e inquirindo da sua disponibilidade para responder a algumas perguntas relacionadas com as mesmas, assim como sobre o caso de Miye Tom.
A resposta foi negativa: “Agradeço a oportunidade que me dá de prestar os esclarecimentos que refere. Contudo, como saberá, já o fiz em sede própria perante os membros da Comissão Independente e da equipa de instrutores/as da Comissão Prévia de Inquérito do CES, fornecendo os dados documentais e testemunhais de que dispunha, que permitiram que se extraíssem as conclusões conhecidas. Nada mais acrescentarei”.
O DN insistiu, frisando que nenhuma das duas mulheres em causa -- que não identificou e sobre as quais BSM nada perguntou -- fora ouvida por qualquer das instâncias citadas, pelo que o investigador não poderia, em princípio, ter dado quaisquer esclarecimentos em relação a essas denúncias. Também perguntou se o académico não queria pôr o DN em contacto com uma mulher que anteriormente (2023) referira ao jornal como testemunha do ocorrido com Miye Tom, e que afiançara estar disponível para falar, corroborando a versão dele.
A resposta voltou a ser negativa: “Depois de dois anos de indesejada exposição pública, não mais contribuirei para confrontos mediáticos. Espero que compreenda. Estive sempre disponível, como estarei, para prestar todos os esclarecimentos nas sedes próprias de justiça onde esteja garantido o devido contraditório.”
“Em momento algum agredi física ou sexualmente a Miye ou qualquer outra pessoa”
Há dois anos, quando confrontado pelo DN com a publicação do artigo sobre o CES, BSM mostrou-se bastante mais disponível.
Recorde-se que o artigo The walls spoke when no one else would saiu no final de março de 2023, inserido num livro internacional sobre assédio sexual na academia (Sexual Misconduct in Academia, editado pela Routledge, que veio a “despublicar” o livro para, informou, evitar ser processada por difamação), e que o posterior eco mediático colocou o CES e a sua prestigiada figura tutelar, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (BSS), no centro de um escândalo nacional e internacional.
No referido artigo, que descrevia aquela instituição académica sem a identificar, havia três figuras centrais, descritas como um triunvirato de abuso moral e extractivismo intelectual e sexual, denominadas de “Professor Estrela” (designando BSS), “a Sentinela” (referindo a investigadora coordenadora Maria Paula Meneses), e “O Aprendiz”. O último apodo visava Bruno Sena Martins, como o próprio reconheceu ao DN a 8 de abril de 2023, quando o jornal o contactou no âmbito da investigação sobre o caso (como sucedeu com BSS, que foi, aliás, o primeiro “retratado” no artigo a admitir ante o DN ser o CES o centro académico em causa e ele o “professor Estrela”, reputando esse retrato de difamatório).
Nessa altura, BSM admitiu, numa troca de emails com o DN, ter havido um relacionamento sexual com Miye Tom, situando-o em 2012, mas asseverou que “o princípio do consentimento sempre foi respeitado”, e que havia até quem pudesse, e estivesse disponível para, testemunhar isso mesmo (voltaremos a estes pontos). Também frisou que não fora “professor, orientador ou membro da mesma equipa de investigação da Miye”, nem tivera qualquer relação profissional com ela no CES. “Nestas circunstâncias, falar de uma relação de poder académico é infundado”, concluiu.
Por outro lado, confirmou que, como consta no artigo co-assinado por Miye -- na passagem em causa lê-se: “Vários anos depois de ter sido agredida sexualmente pelo Aprendiz, a ex-doutoranda Internacional (…) acusou o investigador de ser um predador sexual” --, apresentou em 2019 uma queixa criminal contra ela por difamação, devido a um post de Facebook no qual a ex-estudante do CES o denominava de predador sexual, e que tinha entretanto apagado (após receber um email a ameaçá-la com um processo por difamação). A queixa acabaria arquivada por, disse BSM ao DN, não ter sido possível notificar a denunciada, uma vez que esta vivia fora de Portugal.
“Em 2019 fui avisado relativamente a um post que me procurou caluniar em termos profundamente ofensivos. Perante uma representação que punha em causa de forma perversa e falsa tudo o que sou, passei o pior momento da minha vida e confesso que por um período perdi a vontade de viver. Perante isso, evitando um silêncio que poderia ser lido como anuente, achei que deveria repor a verdade recorrendo ao único meio que pareceu adequado. Quer isto dizer, que estava disponível – como ainda estou – para confrontar a autora do post em tribunal e expor a enormidade daquilo de que me acusa e/ou vem insinuando.”
Na mesma troca de emails, Bruno Sena Martins escreveu: “Ao contrário do que o capítulo ora publicado ardilosamente pretende insinuar, quero reiterar que em momento algum agredi física ou sexualmente a Miye ou qualquer outra pessoa.”
“Pôs os dedos dentro de mim”
É uma garantia que tanto Andrea como Helen vêm agora reputar de falsa.
Comecemos por Andrea: aquilo que narra ao DN, numa videochamada, é exatamente uma agressão sexual. Que, à luz do Código Penal português, se pode inserir nos tipos criminais mais graves de violência sexual: o descrito no artigo 164º, “violação”, ou o seguinte, 165º,“abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. Isto porque, diz, estava embriagada, incapaz de reagir, quando ocorreu.
“Era estudante de doutoramento numa universidade e seguia o trabalho de Boaventura de Sousa Santos com muito entusiasmo. Quando vi que havia um curso de verão com ele em Portugal, inscrevi-me. As aulas, em junho de 2017, decorriam num hotel, onde toda a gente -- professores e alunos -- dormia. Depois das aulas jantávamos e algumas pessoas ficavam a falar, a beber, etc. Na noite em causa eu tinha bebido bastante e estava ali, numa zona no rés-do-chão, sentada. E o Bruno sentou-se ao pé de mim e começou a tocar-me. Não me beijou ou algo assim, pôs a mão dele dentro dos meus calções. Eu estava consciente mas era como se não fosse capaz de controlar o meu corpo, não conseguia reagir. Lembro-me de que havia ali um empregado, um barman, que viu tudo, e eu pensava ‘porque é que ele não faz nada, não diz nada? Mas não fez, e o Bruno continuou a tocar-me.”
A tocar, como? Andrea respira fundo. “Pôs os dedos dentro de mim”.
A seguir, conta, BSM levou-a dali. “Levou-me escada acima. Lembro-me de estar a subir as escadas a tentar perceber o que se estava a passar. E dei comigo no quarto dele. Disse que ia buscar preservativos e saiu. Estava muito confusa, mas de repente, reagi, foi como se o meu cérebro se tivesse ligado ao meu corpo e lhe dissesse ‘tens de sair daqui’. Fugi. Mas, por estar embriagada, devo ter ido pelo sítio errado e dei por mim num jardim, perdida, no meio da noite. Vi um muro, escalei-o (magoei-me no joelho) e de repente estava numa rua, sem fazer a mínima ideia de como regressar ao hotel. Nem sei como consegui voltar ao meu quarto.”
Não relatou o ocorrido, não comentou com ninguém, não denunciou. “Ninguém soube. Estava tão desapontada. Não sabia o que fazer. Mas lembro-me de ouvir comentários sobre o Bruno. Uma mulher, cujo nome não recordo, disse algo sobre ele, não sei se a propósito de algo que sucedera com ela ou com outra, o que só agravou o meu desapontamento. E lembro-me de nesse momento hesitar, pensar: ‘será que devo dizer o que aconteceu?’ Mas estava muito assustada, não falei.”
Só viria a partilhar o relato depois de saber da existência de um grupo de mulheres que se juntara para denunciar os abusos no CES (o Colectivo de Vítimas). Quanto a BSM, diz, não se lembra de terem mais alguma vez falado.
Ele não tentou perceber por que motivo a Andrea desapareceu? “Acho que ele não tentou sequer aproximar-se mais de mim. Tenho pensado muito no que aconteceu, sabe? Pergunto-me: como posso provar que aconteceu? Como é que alguém imparcial olha para esta história? Não sei. O que sei é que nunca dei a entender ao Bruno que estava interessada nele. Mas mesmo que tivesse dado essa impressão, eu não estava numa festa, estava ali para um curso, para estudar. Havia um contexto, uma dinâmica de poder -- eu aluna, ele professor. Em termos éticos é um comportamento inaceitável. Abusou do poder que tem.”
Na página de apresentação do curso de verão de 2017, constante no site do CES, Bruno Sena Martins está listado como um dos coordenadores do curso e das “oficinas”, sendo identificado como “vice-presidente do Conselho Científico” e “co-coordenador executivo do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies (Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas)”, assim como “docente no Programa de Doutoramento Pós-colonialismos e cidadania global”.
Considera que foi vítima de um crime? E se sim, que tipo de crime? “Não conheço bem as definições dos crimes. Só posso dizer como me senti. Senti-me extorquida. Senti-me impotente. Senti raiva. Pensei: este homem quer algo e simplesmente vai e tira, sem pedir licença, sem consentimento. E claramente sentia-se na posição de o fazer, graças ao poder que detinha na academia. Há esta atitude, por parte de alguns homens. De acharem que podem ter o que querem, de qualquer maneira. E creio que na cabeça deles criam uma justificação, uma validação, a ideia de que a outra pessoa quer aquilo.”
“Me agarrou muito forte por trás e pegou os meus peitos”
Andrea esteve em junho de 2017 no dito curso de verão, que decorreu na Curia, de 22 a 30 de junho, e era apresentado como “um espaço desafiador de aprendizagens mútuas para a descolonização do pensamento e a luta contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado”: há fotos dela no evento. Mas, à parte dessa confirmação quanto ao tempo e espaço -- inclusive no que respeita à descrição que faz do local onde se encontrou quando “fugiu” do quarto de BSM --, nada mais existe que permita corroborar o que conta.
O caso de Helen é diferente, já que detém mensagens que trocou com BSM na sequência do episódio que narra, datadas de 22 de maio, nas quais ele garante não se lembrar do que fez, mas assume sentir-se muito mal, pedindo-lhe perdão várias vezes, enquanto ela o caustica. Existem, além disso, duas testemunhas: a amiga que estava com ela aquando da alegada agressão, e o amigo que a pôs em contacto com o antropólogo, a quem contaria o sucedido cerca de dois anos depois. Ambos falaram com o DN, confirmando o que Helen diz.
“Eu estava a fazer o estágio de doutorado na Universidade de Lisboa e morava com uma colega também brasileira, também a fazer o doutorado. E havia um evento do Boaventura em Coimbra [tratou-se de uma aula magistral, em 22 de maio de 2017, às 16 horas], queríamos muito ir para conhecer ele. Um grande amigo meu que fez o doutorado dele em Coimbra disse para mim que havia um professor no CES, o Bruno, super legal, super bacana, de confiança, e com certeza iria receber-nos uma noite na casa dele, para não termos de gastar dinheiro com hotel. Aí a gente foi, e o Bruno nos recebeu na rodoviária, bem simpático”, conta Helen.
E prossegue: “A gente saiu nessa noite com um grande grupo em Coimbra, em muitos bares, com muita gente que eu não conhecia, alguns amigos do Bruno. Estava muito divertido, todo o mundo a beber, normal. Lembro-me que estávamos num bar e o Bruno já estava bem bêbado, e pegava, botava mão na minha perna. Não gostei e ele começou a dar muito em cima da minha amiga. Ela não reagiu muito, mas eu, que não tinha bebido e estava muito lúcida, fiquei com medo, estava com uma sensação horrível, achei que ele estava a beber de mais, a passar do limite. Quando fomos para casa dele, porque íamos dormir lá uma noite, ele não parava de beber, e eu comecei a dizer ‘Bruno, bebe menos, tu tá-te passando’ e a insistir com a minha amiga para irmos dormir.”
Por fim lá foram para o quarto onde iam ficar as duas, e que, na descrição de ambas, tinha um colchão grande no chão. “Coloquei o pijama”, diz Helen, “e ele bateu na porta, perguntou se podia entrar, e entrou. Estávamos na cama, e ele deitou-se e foi aí o abuso. Me agarrou muito forte por trás e pegou os meus peitos. Dei um grito, e quando gritei ele se deu conta e saiu do quarto. No outro dia deixou uma garrafa de cachaça na porta do quarto, o que interpretei como pedido de desculpa.”
“Agradeceu não o ter denunciado, pediu mil desculpas”
Helen confessa que se sentiu, em todo o episódio, pouco apoiada pela amiga. “Fiquei muito mal, muito mal, senti-me muito abusada, mas ela em nenhum momento me defendeu. Estava de costas para mim quando aquilo aconteceu, não viu ele pegar nos meus peitos, mas viu a minha reação e que ele se tinha posto na cama atrás de mim. Disse-me que era bobagem, não era nada de mais, que ele estava bêbado: ‘Todo o mundo bebeu, vamos dormir’. E eu disse ‘não, isso aqui é abuso’. E ficámos assim. Não avancei para denúncia porque achava que não ia ter o apoio da minha amiga.”
No dia seguinte foram as duas à aula magistral de BSS. É quando lá estão que, conta Helen, recebe uma mensagem de Bruno por Facebook. “Fiquei muito nervosa, cheguei a escrever palavras erradas. Mas disse-lhe que se tinha passado, que não imaginava que ele poderia fazer isso. Ele agradeceu por não ter falado para ninguém, por não o ter denunciado, pediu mil desculpas. Mas eu nunca engoli isso, nunca fiquei bem com isso, foi uma coisa muito ruim. Me sentia um lixo, e acho que o que me fez ainda sentir pior foi não ter o apoio daquela que era a única amiga que tinha em Portugal. Senti uma grande solidão com esse acontecimento. Porque sentia a culpa de ter sido abusada, violentada, e ao mesmo tempo a culpa de estar exagerando. Inclusive levei dois anos para contar para o meu amigo que me encaminhou para o Bruno. Ele ficou muito mal, disse ‘Meu Deus, fui eu que te disse para confiar nele.’ E foi o Fernando que me avisou do que se estava a passar em 2023 [a publicação do artigo sobre assédio no CES]. Nesse momento pensei ‘eu não estou louca’. Foi como se me tirassem um peso de cima.”
O amigo, Fernando Goya Maldonado, confirma tudo ao DN. “Não é uma situação nada fácil para mim. O Bruno era uma pessoa muito próxima, que conheci em 2011, e nunca imaginei que ele iria fazer algo assim. Sabia que ele bebia muito, sim, mas nunca imaginei, não havia rumores sobre ele que eu conhecesse -- havia outros rumores e outras situações de que tinha conhecimento, porém não em relação a ele. Mas a Helen é uma pessoa da minha máxima confiança, e não teria por que inventar estes factos, que aliás me contou anos antes de o escândalo do CES rebentar.”
Questionado sobre se falou com BSM sobre o assunto, Fernando, que está professor de Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio Grande, admite que não. “Conversei com ele com o intuito de deixar um canal aberto, pensei que poderia haver uma situação de justiça restaurativa, que ele admita o que fez e peça desculpa. Sempre entendi que tinha sido um caso isolado.”
Também a amiga de Helen corrobora o relato. Com 37 anos, atualmente a viver na Europa e a trabalhar na área da psicologia, fala com o DN na condição de não ser identificada. Confirma que BSM “tinha bebido muito e estava alterado”, e que entrou no quarto onde iam dormir as duas. “Eu estava sentada a tirar coisas da mala, estava de costas quando sucedeu. Ele encurralou ela, e ouvi a Helen gritar, dizendo ‘Você está louco, me respeita’ e vi-a afastar a mão dele, pedindo para ele sair do quarto. Perguntei o que se tinha passado, ela disse ‘ele botou a mão dentro da minha roupa, tocou o meu seio’, e também pedi para ele sair. Ele ficou tentando levar na brincadeira mas saiu. Dormimos com medo de ele entrar no quarto.”
Sobre a sua reação -- ou falta dela -- a um ato que na descrição de Helen se poderá encaixar no tipo criminal de “coação sexual” (artigo 163º do Código Penal), a amiga recrimina-se: “Na época não sabia o que fazer, tinha medo que ele pudesse atrapalhar os nossos estudos, que pudéssemos perder a bolsa. Acho que me senti coagida de alguma forma. Sei que ele lhe mandou mensagens, que pediu desculpa. Aconselhei a Helen a não fazer nada, sair de perto, bloquear, não ter mais nada com ele. Mas agora sinto o dever de fazer justiça.” Reflete: “Se fosse hoje, reagiria de forma diferente. Teria denunciado. E lamento porque o silêncio da gente permitiu talvez que ele fizesse o mesmo com outras pessoas.”
“A quem passa pela cabeça ir para a cama com uma mulher que foi espancada?”
É uma das mágoas que Miye Nadya Tom transmite ao DN, a de não ter agido de forma a impedir que BSM pudesse fazer o mesmo a outras mulheres.
Lembra no entanto que tentou falar na altura, como é narrado no artigo sobre o CES de que é co-autora: abordou a sua coordenadora de doutoramento, Maria Paula Meneses (designada no artigo de “A Sentinela”). “Pedi-lhe ajuda. Mas fui ignorada, invalidada. Ninguém me ouviu. Fizeram-me sentir que o meu caso, o que eu tinha a dizer, era nada. O CES não está à altura daquilo que ali se defende. E eu era uma estudante estrangeira, não conhecia as leis do país, estava numa cultura diferente. Então, apesar de estar em causa um crime, e de ter ficado marcada para a vida, não denunciei a violação.”
A pedido do DN, e frisando que lhe é sempre difícil falar disso, Miye regressa a 2011, à noite em que diz ter sido violada e ao restaurante onde tudo começou. “Houve álcool envolvido, é o modus operandi. Saí com uma mulher que estava também no programa de doutoramento e ele, que tinha aquilo que me pareceu uma relação emocional abusiva com ela, estava sempre a pedir bebidas para nós. Fiquei porque era uma miúda de 27 anos e sentia alguma solidariedade em relação a ela. E às tantas fui à casa de banho e ele foi atrás de mim e beijou-me à força, enfiou-me a língua na boca. Senti-me ameaçada, reagi mal, e quando outro homem se aproximou, estando embriagada e não controlando bem os meus movimentos, agredi-o. Não queria andar à pancada, só que me deixassem em paz. Ele agrediu-me de volta. Saí do restaurante e ele foi atrás de mim e deu-me uma sova. Eu estava no chão a levar pontapés, foi um taxista que o parou. Chamaram uma ambulância e levaram-me ao hospital.”
De acordo com o relato de Miye, Bruno e a mulher referida -- a quem chamaremos Diana --, foram também ao hospital, onde ela lhes pediu para a levarem para casa. “Acho que eles me deviam ter obrigado a ficar ali, porque era importante documentar o que tinha acontecido; era o que qualquer pessoa com um módico de decência teria feito. Mas não o fizeram. E em vez de me levarem para a minha casa, levaram-me para casa do Bruno, onde ele se pôs a oferecer-nos mais bebidas. Pôs colchões no chão e eu não sabia como sair dali, nem sequer em que local de Coimbra estava. Tinha sido severamente magoada, estava em choque, e só queria que tudo aquilo passasse. E de repente sou envolvida em sexo a três. A quem é que passa pela cabeça querer ir para a cama com uma mulher que foi brutalmente agredida e está em choque? Não faz qualquer sentido.”
Há agora lágrimas na voz de Miye. “No dia seguinte tinha a cara toda inchada, passei dias sem sair de casa a chorar, mas tenho de ouvir que aquilo que aconteceu foi consensual?”
“Devia pedir desculpas, é a primeira coisa que me vem à cabeça”
A seguir, garante, só queria sair de Coimbra. Ainda foi à esquadra apresentar queixa contra o homem que lhe bateu e que, diz, fazia parte do grupo que estava com ela e com Diana e Bruno no restaurante. Conta que Bruno não queria que ela fosse à polícia, e que lhe disse, por mensagem, que ela estivera demasiado embriagada naquela noite e estava agora demasiado traumatizada para se lembrar realmente do que tinha sucedido. Quanto a Diana, comenta, “num minuto apoiava-me, no minuto seguinte estava a arranjar desculpas. Não podia confiar nela.”
A queixa por agressão acabou por não ter sequência, explica Miye, porque saiu de Portugal. E quando, muito mais tarde, em 2019, acusou, no Facebook, BSM de ser “um predador sexual”, “o facto de estar outra mulher presente foi usado contra mim, e ela falou em defesa do Bruno. Levei anos a perceber que também é uma agressora.”
Questionada sobre como sabe que no CES havia o conhecimento de que tinha havido outra mulher presente naquela noite em casa de BSM, Miye responde que lhe disseram que um dos membros seniores do CES comentara que não podia ter havido uma violação porque estava outra mulher envolvida. Certo é que em abril de 2023, quando o DN confrontou BSM com a existência do artigo na coletânea da Routledge e a acusação, nele inserida, de agressão sexual a Miye, este invocou Diana: “Atendendo à pergunta específica que me faz, digo-lhe que no dia seguinte ao jantar houve uma relação sexual a três inteiramente consentida, facto que pode pode ser confirmado pela outra pessoa, também uma mulher, que esteve connosco todo o tempo (e que está disposta a depor em tribunal).”
À época, o jornal não tentou ouvir Diana porque não conseguira chegar à fala com Miye. Fê-lo agora; Diana solicitou que as questões lhe fossem enviadas por escrito. Pedindo para que o seu anonimato fosse preservado, declinou responder à maioria das perguntas, garantindo no entanto que, “se alguma vez tivesse presenciado uma violação ou qualquer agressão sexual contra quem quer que seja, teria imediatamente denunciado o agressor junto das autoridades competentes”. Também informou ter comparecido “voluntariamente junto do CES, respondendo com verdade e responsabilidade cívica a todas as questões que me foram colocadas”.
Por fim, o DN perguntou às três mulheres que acusam Bruno Sena Martins de agressão sexual o que considerariam a conduta correta por parte do CES e do próprio face a elas.
“Desde logo, o reconhecimento do que sucedeu, e impedir que ele esteja numa posição de poder. O CES devia pedir desculpa e garantir que homens como o Bruno não têm posições de poder”, responde Miye. “E, muito francamente, a lei portuguesa é bárbara no que respeita à violação. Seis meses para apresentar uma queixa criminal? Como é possível?”
“Ele devia pedir desculpas, é a primeira coisa que me vem à cabeça”, diz Andrea.
“O que eu acho que devia acontecer com o Bruno?” Helen pondera. “Desde logo, perceber que tem um padrão de alcoolismo, que o álcool potencia algo nele. E deixar de ser orientador. Essa pessoa não pode continuar a ter o poder que tinha, não pode orientar ninguém. Mas trabalho há 10 anos sobre masculinidades, sabe? E sei o quanto os homens que cometem crimes e assédios costumam colocar-se no lugar de vítima, fazer-se de vítimas para contrapor o lugar de quem realmente foi vitimizado.”
Em 2021, num inquérito Proust do Público, BSM apontava como sua qualidade mais marcante “ser memorioso” e, como seus “heróis na vida real”,“ativistas que doam a vida pela causa: antirracistas, LGBTQI+, anticapacitistas, feministas e anticapitalistas”. Às perguntas “qual a qualidade que mais admira num homem?” “E numa mulher?”, respondeu com a mesma frase: “O desprezo pelos padrões dominantes de masculinidade”.