Ana Rita Gil: "As alterações à lei potenciaram a imigração clandestina e a exploração laboral"

Professora na Faculdade de Direito de Lisboa, doutorada direitos fundamentais de imigração, relatora para a Comissão e Parlamento Europeu sobre migrações e ex-consultora da Provedoria de Justiça, Ana Rita Gil alerta para os riscos de "regularizações em massa" em Portugal.

Recentemente foram detidas mais de 30 pessoas numa operação da Polícia Judiciária (PJ) no Alentejo por suspeita de tráfico e exploração de centenas de imigrantes. Poucas semanas antes, tínhamos também assistido à questão dos imigrantes timorenses em situação de sem-abrigo, em Lisboa. Há um ano, também aconteceu Odemira. Como chegámos aqui?
Vejo dois fenómenos diferentes que normalmente são confundidos. Por um lado, temos um fenómeno de tráfico de pessoas e, por outro, temos um fenómeno de auxílio à imigração ilegal.

Numa situação de tráfico, a pessoa é aliciada no seu país de origem, por exemplo com promessas de trabalho, viaja sob controlo de redes criminosas, e quando chega ao território é sujeita a uma situação de servidão e exploração.

No auxílio à imigração ilegal, as pessoas são aliciadas com promessas de entrada na Europa, também viajam através das redes criminosas, mas quando chegam não estão sujeitas a uma situação de servidão ou exploração. Podem trabalhar e circular livremente, mas ficam em situação de ilegalidade.

Esta situação também se torna, posteriormente, num contexto de violação de direitos. As pessoas têm medo de ir ao hospital, a recorrer à justiça (por exemplo, se o empregador não pagar salários) ou mesmo à polícia.

Por exemplo, uma mulher vítima de violência doméstica que esteja com a sua família em situação ilegal, não vai denunciar a situação à polícia, senão denuncia a sua situação de ilegalidade.

Nas situações que refere, dos timorenses e de Odemira, qualificaria esses casos - claro que depois os tribunais classificarão como entenderem -, de auxílio à imigração ilegal, pois parece que as pessoas não estavam a ser escravizadas por empregadores.

Aparentemente, tinham acesso aos seus documentos, não eram forçadas a trabalhar, mas viviam em condições degradantes.

Já no caso de desmantelamento das redes criminosas de exploração de pessoas para trabalhos agrícolas em Beja, a descrição que é feita cumpre os requisitos para ser qualificada como uma rede de tráfico.

As pessoas estavam praticamente privadas de liberdade de movimentos, retiraram-lhes os documentos e ficaram reféns de empregadores.

Se olharmos para isto a nível de gravidade da situação, o tráfico de pessoas tem um nível de gravidade superior.

Mas como chegámos a esta situação, uma vez que não era comum, pelo menos com esta dimensão? Quando se soube de Odemira, em 2021, chegou a publicar um texto no Facebook, no qual escrevia que era o resultado de "alterações legislativas irresponsáveis e populistas"...
Acredito que várias alterações legislativas influenciaram o fenómeno do auxílio à imigração ilegal.

No que toca ao tráfico de pessoas, independentemente de alterações legislativas, infelizmente vai sempre existir, enquanto houver pessoas necessitadas no país de origem, procura de mão-de-obra no país de destino, e pessoas sem escrúpulos. Infelizmente, é a escravatura dos tempos modernos.

Desde a década de 90 que começámos a ser um polo de atração para imigrantes, sobretudo do leste da Europa, de mulheres para efeitos de exploração sexual. Atualmente, o fenómeno é completamente diferente, centra-se mais na exploração de homens no trabalho na agricultura.

Já no que toca ao auxílio à imigração ilegal, o mesmo é mais sensível a alterações na legislação. De facto, o legislador tem de ter cuidado para não criar normas que potenciem um "efeito chamada".

No meu entender, foi isto que aconteceu sucessivamente com a nossa lei de imigração. As sucessivas alterações que têm sido feitas potenciaram o efeito chamada, potenciaram a imigração clandestina e a exploração laboral.

Importa dar conta que a União Europeia (UE) sempre deu uma clara nota negativa para regularizações em massa e a nossa lei teve sempre uma cláusula de regularização para efeitos de trabalho.

Importa dar conta que a União Europeia (UE) sempre deu uma clara nota negativa para regularizações em massa e a nossa lei teve sempre uma cláusula de regularização para efeitos de trabalho.

Portanto, pessoas que estivessem em situação ilegal arranjavam um trabalho, descontavam para a segurança social, e podiam regularizar-se através do seu contrato de trabalho.

Esta possibilidade de regularização foi sendo facilitada, até porque antes era muito difícil uma pessoa regularizar-se com base nesta norma, porque era proibido fazer um contrato de trabalho com uma pessoa que estivesse em situação ilegal.

A partir de determinada altura, em 2017, começou a ser possível a regularização com um contrato de promessa de trabalho.

Uma lei que até teve um parecer bastante negativo da direção do SEF da altura, contrariando a posição da chamada coligação da "geringonça"...
Sim, o SEF estava preocupado com o incremento do "efeito chamada", até porque, no seguimento desta alteração, surgiu todo um mecanismo de negócio de falsos contratos de promessa de trabalho, que eram "vendidos" para trazer pessoas para o território.

O SEF estava preocupado com o incremento do "efeito chamada", até porque, no seguimento desta alteração, surgiu todo um mecanismo de negócio de falsos contratos de promessa de trabalho, que eram "vendidos" para trazer pessoas para o território.

Por outro lado, esta alteração levou a um grande incremento dos pedidos de regularização e o SEF afundou-se. O problema é que se afundou nas regularizações e afundou-se noutro tipo de processos, ligados a direitos fundamentais de pessoas que já cá estavam - e isso é que é preocupante.

Desde logo, ficaram em atraso os reagrupamentos familiares, isto é, os pedidos de pessoas que estavam cá a residir legalmente e queriam pedir para as famílias virem juntar-se.

Além disso, também houve grandes atrasos com o estatuto de refugiado, ainda por cima em plena crise de 2015, no cume dos fluxos migratórios que vinham da Síria e do norte de África.

O Governo depois ainda ajudou mais regularizações...
Sim, em 2019, as possibilidades de regularização alargaram-se novamente. A lei exigia que o imigrante tivesse entrado legal no país: portanto, as pessoas tinham de entrar com visto de turista, por exemplo.

Então em 2019, vem dizer-se na lei que se "presume a entrada legal" - uma presunção que não faz sentido -, de quem já esteja a trabalhar em território português há 12 meses.

Ou seja, o que a lei vem dizer é: venham, independentemente de virem de forma legal ou através de redes criminosas, mas têm de estar um ano clandestinos, e só no final desse ano é que vos regularizamos.

Ou seja, o que a lei vem dizer é: venham, independentemente de virem de forma legal ou através de redes criminosas, mas têm de estar um ano clandestinos, e só no final desse ano é que vos regularizamos.

Foi a partir daqui que nos começámos a aperceber de três fenómenos complicados: um aumento de imigração clandestina, um aumento da exploração do trabalho e as pessoas sujeitarem-se a condições de vida verdadeiramente desumanas.

E, ao mesmo tempo, um aglomerar de milhares de pessoas à espera de regularização, de reagrupamento familiar, ou mesmo só de visto para vir estudar para Portugal.

Por exemplo, aqui na Faculdade, não imagina a quantidade de cidadãos brasileiros, nossos alunos, que querem vir fazer o mestrado e não conseguem visto a tempo.

Mas este tipo de abertura só acontece em Portugal?
Na União Europeia, com esta abertura assim tão grande, não há, de facto, equiparável a Portugal, mas depois temos alguns casos de regularização temporalmente limitada, como Espanha.

Este país abre ciclicamente processos de regularização, mas não há propriamente um direito à regularização aberto em permanência.

De forma geral, aceitam-se "medidas pontuais de regularização", que são temporalmente justificadas por motivos humanitários ou muito específicos.

Depois temos países completamente fechados nesta matéria, ou que possuem políticas de imigração muito seletivas, como é o caso dos países do Grupo de Visegrado.

No fundo, é um retrato negro num país que tem sido muito elogiado pela sua disponibilidade em receber imigrantes e refugiados. Como é que se equilibra esta questão?
Recebemos vários elogios para coisas diferentes. Por exemplo, fomos muito elogiados pela Alta-comissária das Nações Unidas para os direitos humanos durante a pandemia, quando tomámos medidas de regularização por motivos de saúde pública, para que todas as pessoas tivessem acesso aos cuidados básicos de saúde.

Nessa altura, aliás, outros países da União Europeia deixaram, pura e simplesmente, de aceitar pedidos de asilo, algo que viola o Direito Internacional. Nós nunca deixámos de registar pedidos de asilo.

Também somos muito elogiados face à Lei da nacionalidade, porque temos normas de naturalização bastante vantajosas, e, face às últimas alterações, quase um ius soli.

Outro motivo dos elogios, é possuirmos um alto-comissariado para as migrações, um órgão governamental dedicado exclusivamente à integração de migrantes.

Isto lá fora é algo que não é normal, geralmente são as ONG que tratam da integração, e o governo apenas tem a polícia das fronteiras.

Temos estas normas sobre regularização que, no meu entender não tiveram em conta a capacidade de acolhimento do país e a capacidade de processamento dos serviços.

Estes são motivos de elogios, sim. Mas depois temos estas normas sobre regularização que, no meu entender não tiveram em conta a capacidade de acolhimento do país e a capacidade de processamento dos serviços.

Não temos um plano desenhado que permita prever que é preciso X de mão-de-obra no Algarve, X no Alentejo, etc.. e admitir imigrantes conforma as necessidades e condições...
Não, as pessoas vêm no abstrato. Esta nova lei do visto de procura de trabalho prevê que se publique a necessidade de trabalho, mas resta saber até que ponto esta valência será efetiva.

Como acha que vai ser a tendência futura?
Se se mantiver assim, sem dúvida que vamos ter um grande aumento de imigração para efeitos de procura de trabalho e se mantivermos a regularização, o que vai acontecer é que o visto permite a entrada legal, mas as pessoas vão ficar além desse tempo e pedem a regularização.

Se o empregador tiver de escolher entre uma pessoa que não vai reivindicar um horário máximo de trabalho, salários, segurança social, subsídios, ou um português reivindicativo que conhece os seus direitos, vai optar sempre pelo imigrante em situação ilegal.

Isto é mau, porque tudo o que é trabalho ilegal distorce o mercado de trabalho. Se o empregador tiver de escolher entre uma pessoa que não vai reivindicar um horário máximo de trabalho, salários, segurança social, subsídios, ou um português reivindicativo que conhece os seus direitos, vai optar sempre pelo imigrante em situação ilegal.

Isto permite aos empresários contratar mão-de-obra barata, mas também não reivindicativa e não informada sobre os seus direitos. É uma mão-de-obra dócil. E isto para os senhorios e para a especulação imobiliária também é espetacular.

Mas depois vai levar a inúmeros problemas de coesão social, porque os portugueses vão sentir os efeitos de tudo isso. Desde a subida dos preços das casas à falta de trabalho.

O Estado tem de garantir um mínimo de subsistência a todos os que residem no território: deriva do art. 1.º da nossa Constituição. Ora, isso implica custos, e alojamentos dignos... mas as capacidades de acolhimento são limitadas. Um Estado social não consegue ter uma política migratória de portas abertas.

Por outro lado, o Estado tem de garantir um mínimo de subsistência a todos os que residem no território: deriva do art. 1.º da nossa Constituição. Ora, isso implica custos, e alojamentos dignos... mas as capacidades de acolhimento são limitadas. Um Estado social não consegue ter uma política migratória de portas abertas.

Perante todo este cenário de um potencial aumento do "efeito de chamada", de um potencial aumento do fluxo migratório, o SEF está a ser extinto. Como é que vê esta extinção?
Mal. Tive a oportunidade de trabalhar com o SEF quando estive na Provedoria de Justiça e estive muito ligada a estas questões. O SEF, sem dúvida que tinha problemas estruturais profundos, começando pela formação a nível de Direitos Humanos, e muita falta de pessoas. Temo o pior.

Sou completamente contra a dissolução do SEF, sobretudo nas condições e pelo motivo que foi. Parece-me uma decisão a quente, tomada como resposta para acalmar os ânimos da população porque houve uma morte hedionda no Aeroporto de Lisboa.

A questão é que todos os outros países têm polícia de fronteira, não é a polícia de segurança pública interna que também controla a imigração.

Não me pareceu, de todo, uma decisão elaborada, estudada, não foram feitas comparações com outros países. A questão é que todos os outros países têm polícia de fronteira, não é a polícia de segurança pública interna que também controla a imigração.

A especialização de polícias é necessária, pois lida-se com questões muito complexas e específicas, como os vistos, a existência de pedidos de asilo...

Mas agora, sempre me fez alguma confusão que a autoridade responsável pela parte do policiamento fosse a mesma que dá proteção internacional.

Uma coisa é a troca de informações, outra é a mesma entidade tomar as mesmas decisões quando falamos de critérios decisórios tão diferentes.

Uns estão baseados na salvaguarda da ordem pública e os outros na proteção internacional. Assim, concordaria em que a decisão de pedidos de asilo fosse levada a cabo por uma entidade própria.

O Governo tem argumentado que esta separação das funções é uma imposição da União Europeia.
Não, não há uma imposição da União Europeia. A União Europeia não interfere na organização interna das polícias dos Estados, isso é competência exclusiva de cada um.

O que a União Europeia pede é que as polícias de fronteira colaborem com as missões da UE de patrulhamento de fronteiras, etc. O que a UE diz é que a entidade que decide o pedido de asilo tem de dar determinadas garantias às pessoas que o pedem, e que tenha uma formação especializada nessa matéria, mas a UE não obriga ao desmantelamento de uma polícia para integrar noutra.

As questões de imigração e controlo de fronteiras são extremamente sensíveis, lidam com direitos humanos que não temos noutro tipo de contraordenações, portanto, entregar o controlo das migrações a polícias com competências gerais é péssimo.

Aliás, o problema do SEF era precisamente a necessidade de mais formação específica, pelo que - com todo o respeito pela PSP e pela GNR - não me parece que a solução seja entregar a polícia de fronteiras a entidades que têm competências genéricas.

Aliás, o problema do SEF era precisamente a necessidade de mais formação específica, pelo que - com todo o respeito pela PSP e pela GNR - não me parece que a solução seja entregar a polícia de fronteiras a entidades que têm competências genéricas.

Receia que este descontrolo quebre a coesão social e venha a alimentar argumentos xenófobos à direita radical e populista?
Exatamente, por isso é que é preciso ter muito cuidado. E mesmo a nível de segurança interna também há riscos. Todas as leis de imigração têm exceções, tais como pessoas que não podem entrar porque representam uma ameaça à segurança pública.

Mas para isto temos de ter um sistema de informação muito desenvolvido que permita detetar à entrada os indivíduos potencialmente perigosos.

Nestas situações, a coesão e segurança nacional tem de prevalecer. Porque também não queremos ser uma porta de entrada para situações que possam causar ameaças a nível europeu.

Portugal não é apenas uma porta de entrada, até porque muitos dos imigrantes não tencionam cá ficar, querem ir para outros países da Europa?
Por acaso discordo, acho que foi uma narrativa que se generalizou quando tivemos as medidas de recolocação de requerentes de asilo na chamada crise de refugiados de 2015, e em que as pessoas depois não ficavam em Portugal porque não tinham cá comunidades.

Mas temos comunidades cimentadas de cidadãos ucranianos, da CPLP, e agora de pessoas do sudeste asiático, por exemplo, que ficam cá. E as nossas aquisições de nacionalidade - que podem ser feitas passadas cinco anos por quem saiba falar português -, aumentaram exponencialmente.

Portanto, esta ideia de que as pessoas não querem cá ficar não é verdade. Portugal é visto como um país que recebe bem, onde as pessoas não são xenófobas, e as pessoas gostam de cá estar.

Portanto, esta ideia de que as pessoas não querem cá ficar não é verdade. Portugal é visto como um país que recebe bem, onde as pessoas não são xenófobas, e as pessoas gostam de cá estar.

Mas, paralelamente a isto, podemos ser uma porta de entrada para pessoas apenas interessadas na cidadania da UE, pois quem é cidadão português é cidadão europeu.

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