Inspetores acusados de morte de Ihor atacam SEF e Ministério Público
A morte de Ihor Homeniuk "foi fruto das deploráveis condições em que os cidadãos estrangeiros são detidos" pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). A afirmação é de Bruno Sousa, um dos três inspetores desta polícia cujo julgamento pelo homicídio daquele cidadão ucraniano se inicia esta terça-feira, e demonstra que para se defenderem os acusados estão dispostos a pôr em causa todo o SEF, cuja extinção foi já anunciada pelo governo.
Tal como na contestação, bastante mais extensa e completa, do co-arguido Luís Silva (o terceiro acusado, Duarte Laja, nega apenas a prática dos factos e "oferece o merecimento dos autos"), Bruno Sousa, que como os colegas não prestou declarações até esta terça-feira e é defendido por Ricardo Sá Fernandes, nega ter agredido o detido ou que algum dos outros dois o tenha feito.
Tanto ele como Luís Silva sustentam ter usado "apenas a força necessária para o algemar". E procuram demonstrar que houve outros possíveis culpados pela morte de Ihor e outras causas pelo menos concomitantes - doenças prévias, alcoolismo e a falta de um medicamento para controlar a abstinência alcoólica - para a mesma, pondo em causa a autópsia feita pelo Instituto de Medicina Legal e a investigação levada a cabo pelo Ministério Público (MP) e assinada pelo procurador Óscar Ferreira.
Em contraste, ambos os arguidos enaltecem a investigação feita à morte de Ihor pela Inspeção Geral da Administração (IGAI) Interna, cujo relatório imputa responsabilidades disciplinares, por vários factos, incluindo encobrimento, a 12 funcionários do SEF - uma administrativa e 11 inspetores, entre os quais os arguidos.
"Com muito menos meios ao seu dispor, conseguiram [as inspetoras da IGAI] levar a cabo uma investigação muito mais completa e exaustiva - não podendo deixar de ser louvados a seriedade e empenho com que conduziram aquele processo (...)", lê-se na contestação de Luís Silva, assinada pela advogada Maria Manuel Candal.
Pelo contrário, a investigação do MP é reputada de "manifestamente parcial, insuficiente e incompleta", e de "desfecho precipitado." Essa precipitação, aventa a advogada, terá sido determinada "pela necessidade por parte daquela autoridade judiciária de deduzir uma acusação antes de esgotado o prazo das medidas de coação a que se encontravam - e encontram - submetidos os arguidos".
Tal constrangimento, considera a advogada, teria sido "facilmente ultrapassado" com a "declaração de especial complexidade" do processo, que seria no seu entender "mais do que justificada" pela "necessidade de apurar a eventual responsabilidade criminal de todos e cada um daqueles que, entre a chegada de Ihor Homeniuk ao nosso país, pelas 10h25 do dia 10 de março de 2020 e o seu óbito, pelas 18h40 do dia 12 de março de 2020, com o mesmo interagiram." Aliás, sublinha, se o MP tivesse aguardado apenas dois dias - a acusação tem a data de 29 de setembro -, poderia ter contado com a informação constante no relatório da IGAI.
Entre as falhas que encontra na investigação do MP, Maria Manuel Candal aponta a ausência de acusação de sequestro a dois dos seguranças da Prestibel - empresa contratada pelo SEF para fazer a gestão quotidiana dos centros de detenção de estrangeiros desta polícia, eufemisticamente denominados de "Centros de Instalação Temporária (CIT)" -, que a acusação descreve terem, "sem autorização e competência para tal", algemado Ihor "com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços".
Contesta Luís Silva: "Pese embora o Ministério Público descreva acertadamente, no artigo vigésimo da contestação, a atuação dos vigilantes (...), não extrai da mesma qualquer consequência, sendo certo que os mesmos não só podiam como deviam ter sido constituídos como arguidos pela prática de um crime de sequestro (...)."
Aliás, a contestação deste arguido sublinha que "por força das funções pelos mesmos cometida e efetivamente exercidas em consequência do contrato celebrado entre o SEF e a referida empresa, recai sobre os vigilantes contratados pela Prestibel um especial dever de garante - um dever jurídico que pessoalmente obriga cada um deles a evitar um resultado que constitua elemento de um qualquer tipo de crime."
Quer isto dizer que qualquer dos vigilantes que contactou com Ihor quando este, de acordo com a acusação, estava "num estado de grande prostração e algemado" (após o que é descrito pelo MP como as agressões perpetradas pelos arguidos, na manhã de 12 de março, dia em que viria a morrer) poderia, no entender da jurista que defende Luís Silva, ser acusado do crime de omissão de auxílio.
O mesmo, naturalmente, valerá para o extenso rol de inspetores do SEF que viram o arguido algemado na chamada "sala dos Médicos do Mundo", e partir de certa altura, de acordo com os testemunhos de várias pessoas, incluindo enfermeiros e a equipa do INEM que o assistiu no final da vida, com "hematomas por todo o corpo", com as calças descidas e urinado, exalando "um odor nauseabundo".
O crime de omissão de auxílio, previsto no artigo 200º do Código Penal e com pena até um ano, consiste na não ação de "quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa" deixar de lhe prestar o auxílio "necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro." A pena aumenta para o dobro se quem não auxilia tiver causado a situação referida.
A ausência de imputação deste crime num caso como o de Ihor foi já objeto de uma análise no DN por Paulo Saragoça da Matta, presidente da Comissão De Direitos Humanos da Ordem dos Advogados entre 2017 e 2019: "Não pode haver deixar de haver o crime de omissão de auxílio posterior aos atos materiais de execução do crime quando a vítima possa ser socorrida e não o seja. Num exame não deixaria de desvalorizar um aluno que não detetasse omissão de auxílio num caso desses. O que não aconteceu nas horas em que alguém esteve a agonizar sem auxílio é só por si um crime. Uma acusação que não o inclua é deficitária."
Na acusação, o MP justifica a inação dos seguranças da Prestibel e portanto a omissão de auxílio com um alegado "temor reverencial" que estes sentiriam face aos arguidos, escrevendo: "Estes bem sabiam que na qualidade de inspetores do SEF e, como tal, membros de um Órgão de Polícia Criminal, tinham o poder de impedir que os vigilantes atuassem e face ao temor reverencial denunciassem a terceiros o que se tinha passado na sala."
"Absurdo", comenta a defesa de Luís Silva sobre esta conclusão do MP. E frisa que a acusação pública é "totalmente omissa quanto ao que se passou entre as 08h55 do dia 12 de março de 2020 [quando os três arguidos abandonaram o local onde Ihor se encontrava] e as 16h43 do mesmo dia" - quando ali se deslocaram os dois inspetores que iam buscar o detido para o levar para o avião de repatriamento, e que pouco depois chamariam a Cruz Vermelha para o socorrer, já que este desfaleceu quando tentaram colocá-lo, ainda algemado de pés e mãos, numa cadeira de rodas para o transporte, vindo a ser declarado morto às 18h40.
Também a defesa de Bruno Sousa considera "incompreensível que a acusação passe "como cão por vinha vindimada" sobre tudo o que aconteceu à infeliz vítima destes autos antes das 8h32 do dia 12 de março (e pelo menos, desde o dia anterior) ou depois das 8h55 até ao momento em que o óbito foi declarado."
De facto, o MP salta do momento em que os três arguidos deixam o detido algemado para a chegada dos dois inspetores que iam conduzir Ihor ao avião, numa elipse de mais de oito horas.
Mas a contestação de Luís Silva não se limita a assegurar que deveria haver outros arguidos por sequestro e omissão de auxílio; cita testemunhas que atestam que Ihor ostentaria já sinais compatíveis com agressões antes de ser "visitado" pelos três acusados: "zona do nariz inchada"; "cara inchada"; "arranhões na cara". E frisa: "Lesões estas que, por razões óbvias, não poderão ser imputadas aos arguidos." Do mesmo modo, refere que "nessa altura já o ofendido - que se apresentava manietado pelo menos pelos tornozelos com fita cola castanha, com as calças descaídas, pela zona das coxas e uns boxers/calções à mostra - se tinha urinado, cheirando muito mal."
Tanto este arguido como Bruno Sousa relevam o facto de que o enfermeiro da Cruz Vermelha chamado, pela 1h30 de 12 de março, para observar Ihor, ter na inquirição da Polícia Judiciária dito que este dava sinais de que teria sido já agredido. Escreve Ricardo Sá Fernandes: "Significativamente, quando [o enfermeiro] se aproximou o indivíduo encolheu-se com os braços a proteger a face como se tivesse medo de algo - comportamento de autoproteção - e fê-lo por diversas vezes".
A acusação não se interessa sequer, diz Luís Silva, pelo motivo que levou à chamada da Cruz Vermelha - a alegação constante dos documentos internos do SEF é de que o detido estaria a "bater com a cabeça nas paredes" - nem pelo facto de o enfermeiro citado ter alertado "quer os inspetores do SEF, quer os vigilantes da Prestibel" para a falta de um medicamento da prescrição que fora feita a Ihor no Hospital de Santa Maria, quando aí foi conduzido na noite de 10 de março (o dia em que chegou a Portugal) por ter caído, acometido de convulsões, quando ia ser levado para o CIT.
Quando inquirido, o enfermeiro garantiu que terá insistido, junto dos inspetores, na necessidade de esse medicamento - a Tiaprida, com a função de controlar estados de abstinência alcoólica - ser ministrado a Ihor, e de este ser conduzido ao hospital para receber tratamento adequado.
Também aqui, lê-se na contestação assinada por Maria Manuel Candal, se está, por parte dos inspetores em causa, perante um comportamento "passível de integrar pelo menos o crime de omissão de auxílio". Um comportamento, como aponta o relatório da IGAI, imputável ao próprio enfermeiro, que está a ser alvo de um processo na respetiva Ordem por não ter diligenciado no sentido de Ihor ser levado ao hospital e de lhe serem retiradas as fitas adesivas que o manietavam, apesar de ter dito que era perigoso ficar assim.
Na acusação, porém, só são referidos dois dos três medicamentos prescritos a Ihor (Paracetamol e Diazepam); a Tiaprida e portanto a sua falta (não existia na farmácia do aeroporto e ninguém se preocupou com isso, o que a contestação de Luís Silva frisa ser uma falha do SEF) não são mencionadas. O MP nem sequer, prossegue a defensora de Luís Silva, solicitou ao hospital "quer a nota de alta quer a prescrição médica - o receituário - que, nessa altura, foi entregue ao passageiro ou aos Inspetores do SEF que o acompanharam no regresso ao Aeroporto de Lisboa." Documentos esses que "estariam na posse dos vigilantes, mas que, inexplicavelmente, até ao encerramento da fase de inquérito, não haviam sido juntos aos autos", acusa Maria Manuel Candal, o que "mal se compreende".
Neste elenco de falhas apontadas ao MP pelos dois arguidos há igualmente a tentativa de demonstrar que este ignorou provas constantes nos vídeos das câmaras de vigilância do CIT (que "apanham" o corredor de acesso à sala onde Ihor foi colocado - esta, referida na planta oficial do CIT como "sala de isolamento", era o único espaço do centro, além das casas de banho, sem câmaras). Com referência fotograma a fotograma, ambos assinalam empurrões e gestos de ameaça por parte dos dois vigilantes para com o cidadão ucraniano, quando este, por duas vezes, saiu da sala, no final da noite de 11 de março e no início da madrugada de 12.
Luís Silva chama inclusive a atenção para o facto de um dos seguranças calçar botas - o relatório da autópsia refere uma marca de agressão no torso do cadáver compatível com a sola de uma bota (ou seja, um pontapé tão forte que deixou essa marca). Releve-se, a propósito, que não consta do processo qualquer apreensão de calçado dos arguidos.
Este arguido também evidencia que um desses seguranças - o que calça ténis - aparece a coxear nas primeiras horas da manhã de 12 de março. Os relatórios internos do EECIT e do SEF dizem que tal se deveu a um sofá arremessado por Ihor. O episódio, cujo relato ao diretor de Fronteiras de Lisboa terá determinado o envio dos três acusados ao CIT para "acalmar" o detido, foi no entanto negado pelo segurança em sede de inquérito criminal. Aí, este sustentou ter-se magoado no pé mas sem qualquer relação com Ihor.
Fica até por perceber que sofá poderia ter sido usado na agressão: tendo em conta o momento, a meio da madrugada de 12 de março, no qual o segurança começa a coxear, esta peça de mobília teria de estar na sala onde Ihor morreu. Mas desta, todas as testemunhas afiançam, foram, logo a 11 de março, retirados todos os móveis; nas imagens da reconstituição, constantes do processo criminal, não há na sala, muito pequena, qualquer móvel.
Luís Silva releva igualmente que Ihor foi algemado uma primeira vez, na madrugada de 12 de março - antes da mencionada chamada da Cruz Vermelha - por dois inspetores, no pátio do CIT, e que isso implicou violência. "É, assim, atirado para o chão, ficando deitado lateralmente, sendo pressionado contra o mesmo por estes Inspetores, mormente pelo Inspetor Ricardo Diogo, com os seus joelhos nas costelas daquele."
O mesmo inspetor, que faz parte da lista daqueles que a IGAI propôs para processo disciplinar, é mencionado na acusação do MP como tendo, juntamente com outro, "um comportamento anómalo" ao manietar Ihor com lençóis. Dessa forma o "impedindo", escreve o procurador Óscar Ferreira, "de se movimentar, agravando o seu suposto estado de ansiedade, o que constitui procedimento anómalo dado que os passageiros com ordem de retorno não podem nem devem ser privados da liberdade como era o caso." Mas desta afirmação o magistrado, malgrado reconhecer a "ilicitude da conduta", não retira consequências criminais - quando, crê o arguido, estará mais uma vez em causa um crime de sequestro.
De resto, de acordo com o relatório da IGAI e as normas daquele centro de detenção, Ihor não podia ter sido isolado dos outros detidos sem autorização superior, do diretor de Fronteiras de Lisboa, que não existiu; o mesmo relatório considera ilegal a recusa de entrada deste cidadão ucraniano no país, o que transforma em sequestro a sua detenção no CIT. Assim, as ações dos que - seguranças e inspetores - o colocaram em isolamento e manietaram, assim o mantendo durante largas horas (o que seria sempre ilegal e poderá também ser considerado crime de tortura, como a IGAI admite), constituirão sequestros dentro do sequestro inicial.
Outra linha de "ataque" dos arguidos Luís Silva e Bruno Sousa é a descredibilização da autópsia, na qual se fundamenta toda a acusação, já que é esta que certifica ter Ihor morrido na consequência de agressões brutais. As quais, diz o relatório do exame post mortem, lhe terão fraturado os arcos costais, causando "asfixia mecânica" (ou seja, impossibilidade de respirar), agravada pelo facto de ter sido deixado algemado de mãos atrás das costas e em decúbito ventral, o que só por si poderia causar-lhe a morte.
Ambas as contestações põem também em causa a capacidade técnica de Carlos Durão, o médico que examinou o cadáver de Ihor: alegam que não tem a especialidade de medicina forense, e culpam-no por ter permitido a cremação do corpo, impossibilitando uma contra-perícia.
A cremação, esclareça-se, foi solicitada pela família - a quem fora transmitido, de acordo com a versão oficial do SEF, que Ihor morrera de morte natural - e que num contexto de pandemia estava com dificuldade em obter o repatriamento, e autorizada pelo MP. Quanto ao facto de Durão não ter a especialidade de medicina forense - como grande parte dos médicos contratados pelo Instituto de Medicina Legal para realizar perícias - é o próprio instituto que, em resposta ao tribunal, garante que está ao serviço como perito forense desde 2007, tendo realizado mais de mil autópsias. O médico luso-brasileiro, que tem especialidade de tanatologia reconhecida no Brasil, aguarda aliás em Portugal o mesmo reconhecimento pelo Colégio da Especialidade respetiva na Ordem dos Médicos. O DN procurou saber junto da Ordem e da presidente do Colégio em que estado está o processo mas não obteve resposta.
Os arguidos entram até em contradição, já que tentam contrariar as conclusões da autópsia mas baseiam-se nela para tentar provar, ao mencionar o fígado "gordo" e aterosclerose de Ihor, que ele não era uma pessoa saudável. Por outro lado, este exame post mortem, cuja qualidade técnica foi já elogiada por Duarte Nuno Vieira (perito forense do Alto-Comissariado de Direitos Humanos da ONU, há 16 anos a acompanhar o relator especial para Tortura nas suas missões internacionais), foi registado fotograficamente. A defesa pediu que as imagens todas e as notas do médico sejam juntas ao processo, tendo o IML respondido que as notas foram destruídas depois de elaborado o relatório.
Desmentindo a ex-diretora do SEF, Cristina Gatões (demitida no início de dezembro), Bruno Sousa e Luís Silva sustentam que os bastões encontrados na posse do segundo e do outro arguido, Duarte Laja, considerados "arma proibida" pelo MP, crime do qual estão ambos acusados, eram, pelo contrário, usados pela maioria dos colegas, tendo sido até distribuídos pelo SEF pelo menos numa ocasião.
E garantem que não deixaram Ihor algemado de barriga para baixo, mas sim de lado.
Sucede que as normas existentes para o algemamento impõem, como se lê numa decisão europeia de 2004 - surgida na sequência da morte do nigeriano Marcus Omofuma, por asfixia, em 1999, às mãos da polícia de estrangeiros austríaca -, que "em caso de utilização de força como meio de coerção deve-se assegurar que o tronco da pessoa se mantenha em posição vertical e que a sua caixa torácica não seja comprimida, a fim de este manter as funções respiratórias normais." É também imposto que "os imobilizados devem ser mantidos sob vigilância constante" - outra coisa que não sucedeu com Ihor, que esteve como se sabe horas a fio algemado na sala onde viria a morrer, sem ninguém querer saber dele.
E entre os que o abandonaram à sua sorte estão precisamente os três arguidos - eis outra notória contradição que ressalta das respetivas contestações. Se, como sustentam, Ihor apresentava já, quando o viram pela primeira vez na manhã de 12 de março, sinais de agressão, e estava já de calças em baixo e urinado, assim como manietado ilegalmente com fita adesiva, por que não fizeram nada em relação a isso, antes procedendo ao seu algemamento forçado (já que afirmam que resistiu), abandonando-o de seguida aos cuidados - à falta deles, portanto - dos seguranças do EECIT?
Mesmo assumindo que os três não agrediram Ihor, pode-se estar, como argumenta em abstrato a penalista Inês Ferreira Leite, ante um homicídio por omissão: "Imagine-se que numa escola os professores se apercebem de que um miúdo está doente e não fazem nada, deixam-no numa sala sozinho até que more. Todos os professores que passaram pela sala e tinham o dever de intervir - desde que soubessem dos factos, ou seja de que ele estava doente - basta terem-no visto para serem autores de homicídio negligente por omissão."
Realce-se que o relatório da IGAI, tão elogiado pelos arguidos, não só atribui, sem sombra de dúvida, a causa da morte de Ihor a agressões pelos três perpetradas, como afirma que houve uma "postura generalizada de desinteresse pela condição humana" em "todos os intervenientes" - o que os inclui, naturalmente.
Um generalizado desinteresse pela condição humana em quem trabalhava e mandava no EECIT do aeroporto de Lisboa que os testemunhos de várias pessoas que ali estiveram no início de 2020 atestaram ao DN. Entre elas, uma cidadã brasileira que lá esteve muitos dias, tendo convivido com Ihor. Esta, que prefere não ser identificada, corrobora o facto de este ter sido alvo de agressões e não ser o único a ter merecido esse tratamento - "Não foi só o ucraniano que apanhou ali. Muita gente teve problemas. Vi surras que muitos apanharam. Levam para aquela salinha que nós chamávamos dos remédios e batem. Várias pessoas foram postas naquela sala e saíam roxas e rebentadas, a coxear" - no que é secundada por duas outras pessoas ouvidas pelo DN.
Uma delas é Ranilda Lucas, 44 anos, santomense. Chegou a Portugal no final de fevereiro e foi colocada no centro de detenção, aguardando repatriamento. Conta que "havia lá um jovem a quem metiam naquele quarto em que davam medicamentos, e davam-lhe socos". Houve outro, garante, que foi "levado de cadeira de rodas" - é a terceira pessoa ouvida pelo DN a referir esse facto de os agredidos serem depois levados em cadeira de rodas para fora do EECIT (como aconteceria com Ihor caso não tivesse morrido). "Vi dois casos de violência", afiança. Mas não sabe dizer qual a nacionalidade dos homens em causa, nem "o nome das pessoas que batiam." Perguntada sobre se se tratava dos seguranças ou dos inspetores, responde: "Eram os guardas que batiam. Os homens do SEF lá de baixo vinham para acima [o EECIT está num plano superior] e batiam."
Ranilda Lucas, como a maioria das detidas no EECIT ouvidas pelo DN, manifestou a sua disponibilidade para relatar às autoridades portuguesas o que viu, aceitando que o seu nome fosse publicado e o seu contacto comunicado pelo jornal à Inspeção Geral da Administração Interna, para que esta proceda ao inquérito que o ministro Eduardo Cabrita mandou instaurar após a publicação destes testemunhos.
No processo criminal, porém, nenhum detido no EECIT foi ouvido. Quando a PJ iniciou a investigação, a 16 de março - após alertada, a 14, pelo médico que autopsiou Ihor e por uma denúncia anónima, para o facto de aquela morte ocorrida sob custódia do SEF estar longe de ser "natural", como esta polícia comunicara ao MP e à Embaixada da Ucrânia -, seria possível encontrar no EECIT vários detidos que teriam convivido com o cidadão ucraniano. Mas não houve da parte da investigação criminal qualquer tentativa nesse sentido - nem tão-pouco da parte do SEF, que também tinha a obrigação de inquirir sobre as circunstâncias da morte, ou da IGAI. É como se aquelas testemunhas oculares nunca tivessem existido.
De resto, não houve igualmente qualquer tentativa por parte das autoridades de contactar os dois cidadãos ucranianos que, segundo Ihor terá dito aos inspetores do SEF que o inquiriram à chegada a Lisboa, viajavam com ele. Os nomes estão nos documentos do SEF juntos ao processo e numa simples busca no Google é possível identificá-los como oriundos da cidade ucraniana onde Ihor vivia.
Estes dois ucranianos terão estado em Lisboa apenas de passagem, seguindo para a Bélgica. De acordo com o que foi transmitido logo nos primeiros dias de abril ao DN por uma mulher da mesma nacionalidade que reside em Lisboa e em casa de quem Ihor iria, segundo ela, ficar, esse seria também o destino do malogrado viajante.
Mas nada de concreto se sabe sobre os objetivos de Ihor na sua vinda a Portugal, para além das respostas registadas como suas pelo SEF (não falava outra língua além do ucraniano e não foi assistido por intérprete), e nas quais se lê que vinha trabalhar no país, na agricultura ou construção civil. Também não se sabe por que motivo, se estava acompanhado, os outros passaram no controlo do SEF e ele foi barrado. Ou quem eram os seus contactos em Portugal, além da já mencionada ucraniana ouvida pelo DN ou sequer quem telefonou à mulher, Oksana Homeniuk, para a avisar de que ele ia ser repatriado, como esta relatou a este jornal.
A falta destas testemunhas no processo, ou pelo menos da tentativa de as encontrar - nem a PJ nem o MP alguma vez falaram com a viúva, por exemplo, ou pediram à Embaixada para localizar os dois homens que alegadamente viajavam com Ihor - não deixa de se estranhar.
Na verdade só depois de a 9 de abril um dos arguidos - Duarte Laja - fazer um requerimento no sentido de uma ex-detida, de nacionalidade brasileira, "que esteve pelo menos 60 dias no CIT", fosse ouvida no processo por ter "presenciado diversos episódios de violência entre o falecido e outros cidadãos ali presentes" a PJ pede ao SEF "cópia certificada dos processos dos cidadãos estrangeiros que estiveram no EECIT entre 10 e 12 de março".
Esta cidadã brasileira, porém, nunca seria ouvida. De acordo com o que o DN conseguiu saber, o MP nunca a conseguiu encontrar. Ainda assim, está arrolada como testemunha pelo menos por Bruno Sousa.
Se não aparecer entretanto, o julgamento só poderá contar, como testemunhas presenciais ou oculares dos últimos três dias da vida de Ihor, e à exceção das equipas da Cruz Vermelha e do INEM, com pessoas que trabalhavam ou trabalham ainda, direta ou indiretamente, para o SEF. A generalidade das quais sob suspeita de ter contribuído para o seu fim, ou pelo menos de nada ter feito para o evitar.
Um fim que Bruno Sousa, pela voz do seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, proclama "uma responsabilidade do Estado Português e da sociedade portuguesa, que tem de olhar com mais respeito e humanidade para aqueles que entram em Portugal em condições equivalentes àquelas em que se encontrava Ihor."