SEF disse ao MP que Ihor fora "acometido de doença súbita". Juiz validou detenção de ucraniano por e-mail

Centro de detenção onde Ihor morreu estava sem chefia desde janeiro. Mecanismo de Prevenção contra Tortura identificou ali vários riscos em 2018, incluindo não garantia de defesa, e considerou tão grave que juízes validassem detenções por <em>mail</em> que anunciou inspeção só sobre isso. Não veio a tempo.
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Foi às 19.29 de 12 de março, 49 minutos após a declaração do óbito de Ihor Homenyuk por um médico do INEM, que o inspetor coordenador de turno do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do aeroporto de Lisboa recebeu formalmente, por escrito, a informação de que o ucraniano morrera. Mas é só às 21.59 que, com conhecimento para o mesmo inspetor de turno, Francisco Anjos, o óbito é comunicado formalmente ao Departamento de Investigação e Ação Penal do Ministério Público, referindo que o cidadão fora "acometido de doença súbita" e solicitando autorização para a remoção do cadáver, apesar de se referir que essa autorização fora já dada por telefone - não se diz quando - pela procuradora Alexandra Catatau.

Como é já sabido, o corpo (que de acordo com o relatório preliminar da autópsia, efetuada a 14 de março, apresentaria vários sinais de violência, levando o médico-legista a notificar a Polícia Judiciária de que suspeitava de crime) só daria entrada no Instituto de Medicina Legal às 22.32, e o formulário de entrada, normalmente preenchido pela autoridade que entrega o cadáver - no caso, um inspetor do SEF -, diz que era "proveniente da via pública".

Por que motivo o corpo do ucraniano esteve em poder do SEF pelo menos três horas e meia, se não aguardava a chegada de qualquer autoridade judiciária ou polícia de investigação? Que sucedeu durante esse tempo, quem esteve presente e a fazer o quê, quem mais, além do coordenador de turno, foi avisado na cadeia hierárquica do SEF e com que consequências?

Por que razão, perante a morte de um cidadão, que, de acordo com os relatórios desta polícia, tinha estado muitas horas algemado depois de ter sido levado ao hospital e a quem não davam de comer há muitas horas - o único registo que existe de alimentação naquele dia é de "leite e bolachas", às 09.00, acompanhados de medicamentos (que lhe teriam sido prescritos), levados por seguranças -, não foi chamada uma autoridade judiciária e preservado o local para investigação, como prevê a lei no caso de óbito fora de instituições de saúde? E que justificação há para que o SEF não tenha de imediato instaurado um inquérito interno e comunicado o óbito à Inspeção-Geral da Administração Interna (a IGAI disse ao DN que só foi notificada a 18 de março)? Quem tomou estas decisões?

Estas são algumas das principais questões até agora sem resposta num caso que levou, na segunda-feira 30 de março, à detenção de três inspetores do SEF, indiciados pelo homicídio qualificado do ucraniano, e à demissão do diretor e do subdiretor do SEF Lisboa. E que o ministro da Administração Interna - chamado ao Parlamento nesta quarta-feira, a pedido de BE e PAN, para ser ouvido sobre ele - já reputou de "inaceitável e uma vergonha para Portugal".

Quem mandava no centro de detenção onde Ihor morreu?

"Haverá mudanças profundas daquilo que é o funcionamento dessa estrutura para pessoas que são impedidas de entrar no país", anunciou também o ministro Eduardo Cabrita à Rádio Renascença, nesta segunda-feira, o mesmo dia em que garantiu à TSF que a "organização do modelo de funcionamento do aeroporto de Lisboa não será a mesma depois disto".

O governante ainda não esclareceu o que vai mudar na "organização do modelo de funcionamento" - a sua assessoria de imprensa disse ao DN que tenciona fazê-lo proximamente. Mas o próprio modelo de funcionamento existente à data da morte de Ihor não estava garantido; o cargo de inspetor coordenador do Centro de Instalação Temporária de Lisboa estava vago.

As funções de inspetor coordenador do CIT pressupõem a permanência no CIT, onde tem gabinete, e implicam que este seria o primeiro responsável por tudo o que ali se passa. Mas a inspetora que desempenhava essas funções desde 2013, quando o cargo foi criado, meteu baixa e desde janeiro que ninguém o ocupa - pelo menos formalmente. Na ausência deste coordenador, e uma vez que os inspetores do SEF de plantão no aeroporto, divididos por três turnos (manhã, tarde e noite), estão noutras instalações, quem tinha a responsabilidade de dirigir o CIT e de certificar que o que ali se passava estava de acordo com as regras e a lei?

Precisamente quantas pessoas estão a trabalhar no CIT do aeroporto de Lisboa num dia normal e quais as respetivas funções foram duas das perguntas que o DN fez ao SEF e ao MAI ao longo da semana passada, após serem conhecidos os contornos do caso. O SEF declinou responder, invocando a existência de um processo em segredo de justiça, e o MAI até agora também não esclareceu.

"Quando a responsabilidade é difusa, propiciam-se situações como a que ocorreu", comenta uma fonte ligada ao SEF que prefere não ser identificada, referindo-se ao facto de o cargo de coordenador do CIT ter estado vago. Estranha também que não tenha sido acionada a inspeção interna daquela polícia: "No caso de uma morte sob custódia, deveria ter sido chamada de imediato a inspeção."

Relatos de maus-tratos e abusos não são de agora

"Foi um murro no estômago." É como o ministro da Administração Interna descreve à TSF a sua receção à notícia sobre a morte de Ihor Homenyuk, que caracteriza como "horrível". À Rádio Renascença, reputou-a de "inaceitável e uma vergonha para um país que é um exemplo de como bem tratar migrantes, bem acolher".

O ministro não adiantou a nenhuma das rádios qual o momento desse murro no estômago, ou seja, quando soube da morte ou, o que não é o mesmo, das suspeitas de que se deveu a crime. Do mesmo modo, não se sabe quando quer a direção demitida do SEF Lisboa quer a Direção Nacional desta polícia, dirigida por Cristina Gatões, souberam da morte e da possibilidade de os seus responsáveis serem seus funcionários.

De certo sabe-se que a Polícia Judiciária só foi alertada para o caso no dia 14 de março, pelo médico-legista que realizou a autópsia e por uma denúncia anónima - por coincidência recebida no mesmo dia da autópsia pelo piquete da PJ - que descrevia a atuação dos três inspetores agora detidos atribuindo-lhes agressões a Ihor na manhã de 12 de março.

Mas há anos - muito antes de o ucraniano pensar sequer em viajar para Portugal - que organizações humanitárias, a Ordem dos Advogados, a Provedoria de Justiça e até a Inspeção-Geral da Administração Interna manifestam preocupação com as condições em que são detidos os estrangeiros nos denominados Centros de Instalação Temporária. Essas preocupações incluem, além das deficientes condições dos centros em termos de acomodação, alimentação e até de acesso a roupa e aos bens pessoais - os detidos queixam-se de que não têm as bagagens com eles -, o isolamento (são-lhes retirados os telemóveis por alegadas razões de segurança), a dificuldade de acesso à representação jurídica que a lei lhes garante e à informação sobre os seus deveres e direitos, e até suspeitas e denúncias de maus-tratos e agressões.

É o caso do relatório de 2018 do Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura (MNP), um organismo de visitas para a prevenção da tortura que existe em Portugal desde 2013, decorrendo da ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Degradantes ou Desumanos, e cuja materialização foi confiado à Provedoria de Justiça. Neste relatório, entregue à Assembleia da República, descreve-se o resultado de visitas a locais onde se encontram pessoas privadas de liberdade, incluindo os CIT.

Em relação a estes são várias as preocupações e recomendações expressas pelo MNP, com relevo para a necessidade de "um apoio jurídico eficaz" que deve ocorrer "desde o início do procedimento", e que se considera estar longe de garantido (quer porque os detidos não são informados convenientemente dos seus direitos e da possibilidade de pedirem um advogado e de terem assistência jurídica gratuita, quer porque não lhes é facultado acesso a contactos de causídicos; quando mesmo assim conseguem contactar um, muitas vezes este tem enorme dificuldade de aceder ao CIT - sendo cobrados 11 euros, no aeroporto de Lisboa, para acesso ao centro - e as comunicações entre ele e o detido carecem de condições de confidencialidade). Tal ganha importância acrescida, lê-se no documento, "pelo facto de a equipa do MNP ter recebido, numa das visitas que realizou, relatos de maus-tratos alegadamente levados a cabo pelos oficiais do SEF durante o controlo à entrada em território nacional".

São referidas conversações com a direção do SEF e o ministro da Administração Interna no sentido de transmitir o resultado das observações das equipas do MNP. Nessas conversações terá sido comunicado que se previa a construção de um CIT em Almoçageme, que, esperava o MNP, poderia "evitar muitos dos problemas" apontados ao CIT de Lisboa. "Foi dito ao MNP que este CIT, que seria o segundo verdadeiro centro de instalação temporária em Portugal, abrirá ainda na primeira metade de 2019", lê-se no relatório. Um ano após a prospetiva data de abertura, nada se sabe sobre o CIT de Almoçageme. Como nada se sabe da proposta do MNP de que seja ativada a possibilidade, inscrita na Lei de Estrangeiros, de se efetuar um protocolo com a Ordem dos Advogados para existência de uma escala de advogados em permanência para apoio aos detidos nos CIT.

Juíza decidiu extensão da detenção de Ihor por mail

Mas tão ou mais preocupante do que a denúncia de maus-tratos e de deficiências no acesso a apoio jurídico, a ponto de o MNP considerar que impõe uma inspeção própria, é a informação, dada pelo próprio SEF, de que a autorização judicial para a permanência de detidos nos CIT para além de 48 horas é obtida por e-mail.

Ou seja, os juízes deferem a extensão da detenção sem verem e ouvirem os detidos, sem sequer saberem se estes têm a representação legal a que têm direito, se estão detidos com "justa causa" ou se estão bem de saúde. Diz o relatório do MNP: "A ser assim, os problemas que se abrem são tão complexos - nomeadamente, quanto à garantia do contraditório e à ponderação de necessidade de aplicação da medida - que justificariam, por si só, uma investigação autónoma, a realizar em 2019. Por falta de tempo e de recursos, não conseguimos efetuá-la no decurso deste ano."

Aquilo que tanto preocupa o MNP foi exatamente o que sucedeu com Ihor: às 05.55 de 12 de março saiu do SEF para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa um mail no qual se explica que se prevê que o ucraniano, ao qual fora recusada a entrada, não tinha voo de regresso marcado pela companhia aérea e era portanto previsível que ficasse mais de 48 horas detido. Foi o juiz 2 do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, Armandina Silva Lopes, que validou a extensão da detenção até cinco dias. Foi durante o período da extensão da detenção que Ihor terá sofrido as agressões que lhe terão causado a morte.

José Gaspar Schwalbach, advogado da mulher de Ihor, Oksana Homenyuk, que já pediu constituição de assistente no processo, está impedido de falar do caso concreto. Mas fala sobre o princípio: "Na nossa lei diz-se que ninguém pode estar preso mais de 48 horas sem ser presente a juiz. Mas o universo do SEF diz que só tem de haver notificação a juiz. Temos uma Constituição que diz que são reconhecidos os mesmos direitos a estrangeiros e a cidadãos nacionais, mas chega ao SEF e para."

Inês Ferreira Leite, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, partilha a indignação: "Nem nos EUA eles fazem isto, não chegaram ao ponto de fazer isto. Nem sempre os detidos por tentativa de entrada ilegal no país são presentes fisicamente a juiz, mas ouvem-nos por videoconferência, não fazem por e-mail."

Ferreira Leite diz até compreender que o SEF, "cujo interesse é poupar custos e aumentar a eficácia dos processos administrativos de afastamento coercivo, tenha decidido fazer por e-mail". Mas, prossegue, "não consigo compreender como magistrados no exercício de funções, conhecendo a lei e a Constituição, aceitam validar detenções por e-mail sem garantirem o direito de contraditório. Porque por e-mail não se garante nada - se há intérprete, se estava defensor presente, se a pessoa está bem - e abre-se todo o espaço para permitir violações materiais da lei". E reflete: "Este caso demonstra que não se pode validar detenções por e-mail. Não era preciso que alguém tivesse morrido para se perceber que não se podem validar detenções por e-mail, mas se calhar agora os magistrados podem concluir que não podem fazê-lo."

Os CIT, disse a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, em entrevista ao Público em 2018 a propósito do relatório do MNP, "são o verdadeiro no man's land [terra de ninguém] contemporâneo". E explica: "É um universo impenetrável. Nas prisões a família visita regularmente, há advogados. Estas pessoas não têm ninguém, é um domínio de grande obscuridade e é isso que faz com que a preocupação seja grande."

Sem dúvida que o ministro Eduardo Cabrita tem toda a razão em apelidar o caso de Ihor como "inaceitável", "horrível" e "uma vergonha para Portugal". Já é mais difícil considerar que tem motivos para dizer que o país "é um exemplo de como bem tratar migrantes, bem acolher" - não é que faltassem alertas sobre o que se passa nos CIT e sobre os atropelos de todo o tipo que ali se observam. Assim como sobre a necessidade de alterar a lei que regula aqueles espaços, e que data de 1994, remetendo, no que respeita ao estatuto das pessoas ali "instaladas", para um diploma revogado.

Parece, disse ao DN Timóteo Macedo, presidente da ONG Solidariedade Imigrante, há muito a pugnar pela existência de advogados e observadores nos CIT como forma de garantir que a lei e os direitos humanos são ali respeitados, "que é preciso haver sangue para as pessoas acordarem - talvez agora avancem com soluções".

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