O SEF sequestrou e torturou Ihor Homeniuk?

A recusa de entrada do ucraniano que morreu no aeroporto de Lisboa sob custódia no SEF é reputada de ilegal pela Inspeção da Administração Interna. O que significa, dizem juristas ouvidos pelo DN, que Ihor esteve sequestrado. E que a acusação do MP "é deficitária": devia incluir outros crimes - como tortura, admitida pela diretora do SEF à RTP.
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"Padece de vício de violação da lei por falta de base legal", diz a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) sobre a decisão de recusa de entrada de Ihor Homeniuk em território nacional, tomada a 10 de março, o dia em que aquele chegou a Portugal num voo proveniente de Istambul. O motivo, explica esta entidade no relatório que fez sobre as circunstâncias da morte do cidadão ucraniano (ocorrida a 12 do mesmo mês), e ao qual o DN teve acesso, é que a competência para recusar a entrada a cidadãos estrangeiros é da direção nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), estando delegada no caso do aeroporto da capital no diretor de fronteiras de Lisboa. Sucede que este, segundo a IGAI, não delegou formalmente essa competência nos inspetores de turno, tendo sido um deles a decretar a interdição de entrada de Ihor.

Aquilo que o então diretor de Fronteiras, Sérgio Henriques, demitido a 30 de março, após ter sido noticiada a morte de Ihor e a suspeita de homicídio que impedia sobre três inspetores (desde 30 de setembro acusados do mesmo), parece ter tratado nas respostas à IGAI como uma mera questão burocrática - admitindo que não delegara a competência mas que os inspetores de turno podiam na mesma recusar entradas, ou que era esse o "costume" - transforma, na opinião de juristas ouvidos pelo DN, a detenção de Ihor no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, onde veio a morrer, no crime de sequestro.

"Mesmo sendo por forças da autoridade, a limitação da liberdade de movimento de alguém, se não há legalidade, constitui sequestro por si só. Ou seja, preenche o elemento objectivo típico de sequestro." Quem o diz é Paulo Saragoça da Matta, que presidiu à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de 2017 a 2019.

A mesma opinião tem a penalista Inês Ferreira Leite: "A situação tal como está caracterizada pela IGAI configura sem dúvida sequestro."

Previsto no artigo 158º do Código Penal, o ato de deter, prender, manter presa ou detida outra pessoa ou de algum modo a privar de liberdade, é agravado, com pena de dois a 10 anos, se a privação de liberdade durar mais de dois dias (o prazo existente para detenção sem ordem judicial); for acompanhada de ofensa à integridade físca grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano; for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. A pena é de três a 15 anos se da privação de liberdade resultar a morte.

No caso de Ihor, considera a professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro do Conselho Superior de Magistratura, "o que vão invocar com certeza é que estavam convencidos de que a decisão era legal e portanto, não havendo a figura de sequestro negligente, que não há dolo, porque não tinham a intenção de sequestrar." Teriam porém, prossegue a jurista, "de provar ser esse "o costume"" o que, conclui, "é gravíssimo." Mas que no caso poderá justificar que o MP não avance com essa acusação: "Há quem entenda e eu também entendo que se o MP crê que há exclusão da ilicitude não deve acusar."

Saragoça da Matta concorda: "Mesmo havendo sequestro pode não existir dolo."

Certo é que o MP, na acusação exarada a 30 de setembro, e na qual é imputado a três inspetores do SEF o homicídio de Ihor, apresenta dúvidas sobre a recusa de entrada, mas por um motivo distinto do apontado pela IGAI: "A entrevista foi efetuada por um inspetor que não domina a língua ucraniana e por uma inspetora do mesmo serviço, a qual dominará a língua ucraniana, mas que sendo funcionária não estava habilitada por razões de imparcialidade a efetuar qualquer tradução, existindo dúvidas sérias sobre se o referido cidadão pretendia trabalhar em Portugal." O documento resultante da inquirição, o qual Ihor terá assinado (há três documentos do SEF no processo criminal, ao qual o DN teve acesso, com assinaturas atribuídas a Ihor e todas diferentes), está em português: não podia pois perceber o que estava a assinar.

Da acusação, que inclui a imputação do crime de posse de arma proibida a dois dos inspetores responsabilizados pela morte de Ihor - respeitante aos bastões extensíveis que detinham, um dos quais pelo menos foi levado na "visita" ao ucraniano -, foi extraída certidão para investigação dos crimes de falsificação de documentos que o MP julgou encontrar na investigação. Essa investigação está em curso e em segredo de justiça, e poderá vir a incidir em vários dos inspetores - 12, incluindo os dois ex membros da direção de Fronteiras de Lisboa - sujeitos a processo disciplinar pela IGAI.

Há porém nos factos indiciados no processo criminal, e apontados no relatório da IGAI, aparência do cometimento de crimes que não foram incluídos na acusação principal.

Desde logo, tortura ou tratamento desumano ou degradante - um crime com pena de um a cinco anos descrito no artigo 243º do CP ("Considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave (...) com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima"), que a acusação descreve mas não imputa.

"Aos arguidos (...) foi ministrada a disciplina de aspetos práticos de controlo de fronteiras, que inclui entre outros, o módulo de aplicação de algemas, bem sabendo os mesmos que ao algemarem o ofendido com os braços atrás das costas e deitado em posição de decúbito ventral provocaram naquele dores físicas e elevado sofrimento psicológico e dificuldades respiratórias, como aconteceu e que por essa razão poderiam causar-lhe a morte", lê-se na acusação, que mais à frente estabelece que "agiram os arguidos (...) no exercício de funções policiais, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito de causarem graves lesões corporais no ofendido (...), sujeitando-o a um tratamento desumano (...)".

A expressão "tortura" foi de resto usada pela embaixadora da Ucrânia, Inna Ohnivets, numa comunicação com o MP a 29 de setembro (o dia em que a TVI revela que há suspeitas de que Ihor foi assassinado por ação de três inspetores do SEF), na qual pede "uma investigação imparcial", e é referida no relatório da IGAI. Esta fala em "tratamento desumano" e afirma: "A postura e conduta dos inspetores do SEF por ação (tratamento degradante, tortura e atentado à dignidade humana, pondo em perigo a vida e integridade física do cidadão)." E a própria diretora nacional do SEF admitiu, em entrevista à RTP transmitida este domingo - na qual pela primeira vez se refere publicamente ao caso - que Ihor Homeniuk foi submetido a tortura: "O que se passou aqui - não tenho grandes dúvidas sobre uma situação de tortura evidente."

Outro crime que quer Saragoça da Matta quer Inês Ferreira Leite referem é o de omissão de auxílio. Previsto no artigo 200º do CP e com pena até um ano, trata-se da não ação de "quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa" deixar de lhe prestar o auxílio "necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro." A pena aumenta para o dobro se quem não auxilia tiver causado a situação referida.

"Não pode haver deixar de haver o crime de omissão de auxílio posterior aos atos materiais de execução do crime quando a vítima possa ser socorrida e não o seja", considera Saragoça da Matta. "Num exame não deixaria de desvalorizar um aluno que não detetasse omissão de auxílio num caso desses. O que não aconteceu nas horas em que alguém esteve a agonizar sem auxílio é só por si um crime. Uma acusação que não o inclua é deficitária."

Mais, quando ocorra a morte por ausência desse auxílio, explica Inês Ferreira Leite, pode-se estar perante o crime de "homicídio por omissão" - que tem duas formas, a dolosa e a negligente. "Imagine-se que numa escola os professores se apercebem de que um miúdo está doente e não fazem nada, deixam-no numa sala sozinho até que morre", exemplifica a professora de Direito Penal. "Todos os professores que passaram pela sala e tinham o dever de intervir - desde que soubessem dos factos, ou seja de que ele estava doente - basta terem-no visto para serem autores de homicídio negligente por omissão."

Saragoça da Matta concorre: "Homicídio por omissão é quando alguém mata outrem por relaxe, incompetência e incúria." Sendo o dever de garante genericamente de todos, há quem pelas suas funções o tenha em termos acrescidos - os professores no exemplo dado por Ferreira Leite ou agentes de autoridade, como no caso de Ihor, estes com mais responsabilidade pelo facto de terem a função de fazer cumprir a lei. Se se trata de homicídio por omissão com dolo ou por negligência depende das circunstâncias concretas, de se poder provar ou não se havia consciência do perigo de vida.

E o advogado lembra que mesmo num caso em que alguém agride alguém não deixa de se colocar a possibilidade desse crime: "As pessoas que cometeram os atos que não podem deixar de objetiva e causalmente resultar na morte têm também elas o dever de auxiliar. Por exemplo num caso em que no regulamento ou treino de uma força policial seja claro que não se podem deixar pessoas com as mãos algemadas atrás das costas e barriga para baixo por risco de asfixia, por exemplo, e algum membro dessa força o faça, está a conformar-se com essa possibilidade que não podia ter deixado de representar."

Mas as falhas do Ministério Público neste caso antecederão a acusação e têm a ver com aquilo a que Saragoça da Matta caracteriza com "uma justiça baseada em papéis e não na vida real". Ao ser contactado pelo SEF reportando a ocorrência de uma morte em custódia, o MP teria, crê este advogado, de se deslocar ao local e ajuizar por si se o corpo podia ser removido ou tinha de haver investigação. "Se alguém tivesse ido lá perceberia logo que algo estava errado. Tem de existir controlo - não pode haver presunção de legalidade e verdade porque se trata da polícia."Outra situação em que a "justiça dos papéis" se manifestou, e funestamente, no caso de Ihor foi o despachar "por fax" da extensão da detenção do ucraniano. Uma vez que a lei prevê que ninguém possa estar detido mais de 48 horas sem ser presente a um juiz, o SEF tem o hábito de enviar os pedidos de extensão por escrito para os magistrados de plantão - e estes, no que aos detidos pelo SEF respeita, o hábito de os autorizarem sem os ver, terem a certeza de que estes estão bem e tiveram, como a lei prevê, direito a apoio legal e possibilidade de comunicar com as respetivas embaixadas ou apoios consulares. Algo que quer a Provedoria de Justiça quer várias organizações de defesa dos direitos humanos, incluindo o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura (MNPT) têm reiterado não ser facilitado aos detidos nos CIT - até porque em muitos casos nem saberão quais os seus direitos: como o MNPT apontou, a informação que sobre isso existe apenas em quatro línguas (português, espanhol, francês e inglês).

Quando Ihor foi dado como morto, às 18.40 de 12 de março, depois de alegadamente ser, entre as oito e nove horas desse dia, vítima de agressões por parte dos três inspetores acusados do seu homicídio, estava prestes a entrar na hora final das 48 iniciais de detenção (só foi formalmente detido a partir da recusa de entrada, que ocorreu às 19.50 de 10 de março).

Acresce que o magistrado que autorizou a extensão da sua detenção por mais cinco dias recebeu uma informação falsa por parte do SEF: no documento que lhe foi enviado pouco antes das seis da manhã de 12 dizia-se que Ihor não fora embarcado de regresso à Ucrânia porque a companhia aérea não providenciara voo, o que não corresponde à verdade - o ucraniano é que não acedera a regressar. Tão-pouco foi comunicado ao tribunal que o detido tivera de ser assistido no hospital, estava a ser medicado e não se encontrava bem (são inúmeros os testemunhos de que estava muito agitado e incoerente).

Apesar da prevalência, diagnosticada por Saragoça da Matta, de uma "justiça de papéis", haveria sempre a possibilidade de um juiz mais preocupado com a vida real e com as pessoas ter, na posse dessa informação, exigido ver Ihor.

Magistrados mais voluntariosos e menos manga-de-alpaca, mais preocupados com a justiça e direitos humanos e menos burocratas. Polícias mais observantes da lei e das suas obrigações de garante, menos corporativos e menos indiferentes ao sofrimento. Uma organização policial menos empenhada a fazer crer que fez tudo bem e mais empenhada em efetivamente fazê-lo, capaz de quando isso não sucede agir em conformidade.

Garantes reais de que o que a lei prevê para defender os estrangeiros a quem é recusada entrada no país não é verbo-de-encher - desde logo, existência de intérpretes (Ihor nunca teve acesso a um intérprete de ucraniano desde que chegou até que morreu), de observadores externos e de apoio legal in loco, em regime de escala, como a Ordem dos Advogados sugere há muito., assim como a Provedoria de Justiça e o MNPT.

Mas o que se retira da fita do tempo do caso de Ihor Homeniuk e que a Inspeção Geral da Administração Interna diagnostica é o falhanço de toda a estrutura do SEF do aeroporto de Lisboa, num misto de incompetência, negligência e dolo - como o DN já noticiou.

Afinal, a falta daquilo que a denúncia anónima enviada à Polícia Judiciária invoca antes de elencar os factos que vem denunciar: ética. "Por código ético", lê-se na comunicação enviada às 17.58 horas do sábado 14 de março para o piquete da Polícia Judiciária.

Como denúncia anónima que é, não se sabe quem através dela alertou a justiça para o que descreve como um homicídio seguido de tentativa de encobrimento - "Foi registado óbito por causas naturais, quando era óbvio que o homem estava todo amassado na cara e com escoriações nos braços", depois de ter sido agredido "a murro, pontapé e bastão", "deitado no chão e algemado com as mãos atrás das costas até ficarem roxas (...) colocado de barriga para baixo e em posição inclinada, com a cabeça para baixo", posto o que "teve convulsões e urinou-se", vindo "a falecer".

Precisamente, então, a invocação de um "código ético" pelo anónimo autor da denúncia não só vinca a ideia de que respeita um, ao contrário daqueles que acusa (três inspetores daquela polícia, dois dos quais identifica enquanto de outro diz não saber o nome, "mais número indeterminado de cúmplices", incluindo seguranças do CIT que teriam atuado "em conluio") como que se vê obrigado a fazê-lo anonimamente - insinuando a possibilidade de que fazê-lo de outra forma poderia acarretar-lhe consequências indesejáveis.

A possibilidade, por exemplo, de se sentir isolado numa organização em que seguir um código ético - talvez até o código ético formal da mesma, ou seja, o seu regulamento e estatuto legal - é uma exceção e até talvez malvista.

"O que eu soube foi que me foi comunicado foi que tinha havido um cidadão estrangeiro que tinha morrido num CIT na sequência de uma paragem cardiorrespiratória na sequência de uma crise convulsiva." Após sete meses de silêncio e na sua primeira declaração pública sobre o caso, em entrevista à RTP transmitida este domingo, a diretora nacional Cristina Gatões assumiu que lhe "esconderam a verdade".

Não esclareceu porém quando nem por quem soube da morte naqueles termos e portanto quem a enganou, mesmo se resulta do relatório da Inspeção Geral da Administração Interna que o então diretor de Fronteiras de Lisboa, por si nomeado e que lhe reportava diretamente, e que disse à PJ ter sabido da morte mal ocorreu, não só foi ao CIT e esteve junto ao cadáver como "comandou" a escrita do relatório dos últimos dois dias de Ihor no SEF, em branco aquando do óbito.

A diretora do SEF também não esclareceu por que motivo, perante uma morte em custódia, não ordenou a abertura de um processo de averiguações - como, asseguram fontes daquela polícia consultadas pelo DN, seria obrigatório.

Tão-pouco explica como foi possível que, após a Polícia Judiciária iniciar a investigação de um possível homicídio, logo a 16 de março, e o SEF ser solicitado a fornecer a lista de todas as pessoas que tinham estado no CIT de 10 a 12 de março, assim como dos inspetores ao serviço nesses dias, a comunicação feita a 18 de março à Inspeção Geral da Administração Interna em relação à morte de Ihor não tivesse dado conta das suspeitas de crime.

Por fim, não explicou o porquê de só ter instaurado um inquérito disciplinar interno a 30 de março, no mesmo dia da demissão do diretor e diretor adjunto de Fronteiras de Lisboa, e depois de a TVI noticiar a morte, assim como as suspeitas de que se devera a um homicídio praticado por três inspetores.

Garante no entanto que "a acontecer o que aconteceu jamais haveria qualquer branqueamento, qualquer ação por parte da direção nacional que não fosse de condenação severíssima e intransigente."

Trata-se, diz, da "pior situação que o SEF alguma vez viveu. A descrição que é feita em relatórios policiais é medonha, hedionda. É inqualificável. Aquilo nunca mais pode voltar a acontecer."

Revela porém que nunca ponderou demitir-se ou pôr o lugar à disposição: "É uma responsabilidade à qual eu não podia fugir. Por muito duro que seja o momento com que tive de lidar, abandonar não adiantaria nada e não iria introduzir nenhuma mudança positiva que seria possível introduzir para que este trágico e hediondo acontecimento não seja nunca esquecido e nos catapulte para garantir que nenhum Ihor volta a sofrer o que este cidadão ucraniano sofreu as instalações do SEF."

Apesar de dar como assente que Ihor foi torturado e sofreu horrores, disse à RTP que não falou com a família porque não quer "de todo branquear mais uma vez as responsabilidades que o SEF possa ter também perante essa família. E o processo ainda está em julgamento."

NOTA: Texto alterado às 23.23H para colocar as declarações da diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, sobre o caso.

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