"Ainda não tive coragem de contar aos meus filhos como o pai morreu"
Foi a 29 de março, o dia em que a TVI deu a notícia de que havia três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras suspeitos da morte de um cidadão ucraniano Ihor Homenyuk no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, que a mulher recebeu da agência funerária Servilusa uma foto do corpo do marido, que tinha já então sido cremado.
"Uma senhora ucraniana que trabalha na Servilusa e com quem eu tinha tratado de tudo mandou a foto a dizer que era para reconhecer o corpo", diz Oksana Homenyuk, que fala com o DN a partir da pequena cidade onde vive, Novoiavorivsk, numa chamada whatsapp em que Pavlo Sadokha, o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, traduz as perguntas e as respostas. "Tinham combinado comigo que iam enviar o corpo, e mandaram-me documentos mas não estava lá escrita a causa da morte. Depois disseram que ia ser muito difícil enviar por causa do coronavírus e que eu tinha de dar autorização para cremar senão podia nunca receber o corpo. Então dei autorização."
O corpo foi cremado a 27 de março, sexta-feira, 15 dias após a morte, sem que quer Oksana quer outra pessoa que conhecesse Ihor tivesse visto o cadáver presencialmente ou por foto. "Não me propuseram isso e quando perguntei ao cônsul da Ucrânia em Portugal se era possível ir aí para fazer o reconhecimento ele disse que era impossível por causa da pandemia." Ninguém, garante esta professora de 37 anos, nem um familiar que ela e Ihor têm em Portugal, foi autorizado a ver o cadáver. Também ninguém da embaixada o viu, confirmou ao DN o cônsul, Volodymyr Kamarchuk.
Na foto enviada pela Servilusa, o corpo está dentro de um caixão, envolto num saco branco. Mãos enluvadas de azul expõem-lhe o rosto, de olhos e boca abertos e extensas manchas escuras na pele que parecem sangue pisado. Uma imagem tão cruel como a notícia que nesse mesmo dia Oksana recebe do cônsul, alertado pela TVI: as autoridades portuguesas suspeitam que a morte do marido não se deveu afinal, como lhe tinha sido dito a 13 de março (pelo mesmo cônsul, que recebera essa informação de um inspetor do SEF), a um ataque epilético, mas a violência perpetrada por três inspetores da polícia de fronteiras que no dia seguinte, segunda-feira, seriam detidos e presentes a juiz, que lhes impôs prisão domiciliária.
"O cônsul quando me ligou a 13 de março disse que o Ihor tinha tido um ataque epilético e sido hospitalizado, e que quando voltou do hospital antes da entrada no avião teve novo ataque epilético e morreu." No meio do choque e da dor, Oksana estranhou a causa adiantada para a morte: "Faríamos 15 anos de casamento em novembro e nunca soube nada de epilepsia." Confrontada com a informação de que no hospital de Santa Maria, onde Ihor foi levado a 11 de março, está registado que ele disse que tinha tido um episódio epilético anterior, em França, é taxativa: "Ele nunca esteve em França sequer."
O marido, certifica, nunca fora à Europa ocidental antes de desembarcar em Portugal na manhã de 10 de março. Nomeadamente, nunca esteve na Bélgica, como um ucraniano que se apresentou como seu amigo transmitiu ao presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, que o disse a alguns jornalistas (o DN publicou essa informação). "Ihor só trabalhou na Federação Russa entre 2012 e 2014, até começar a guerra com a Ucrânia, e depois na Polónia [a cidade onde vivia com Oksana é muito perto da fronteira com aquele país]."
Pavlo Sadokha dá o contexto: há oficialmente um milhão e meio de ucranianos a trabalhar sazonalmente na Polónia, a convite de empresários locais. Oksana explica que o marido fez um curso superior, num instituto politécnico - tem dificuldade em explicar qual, vai buscar um documento e lê. Sadokha traduz: regulação e construção de movimentos rodoviários". Seja como for, conta a mulher, Ihor (diz-se Igor), após completar o curso, esteve uns anos na polícia mas percebeu que nunca iria ganhar bem ali e foi trabalhar com um familiar que está na construção civil. Começou por exercer esse mister no seu país, depois aventurou-se no estrangeiro. A Portugal, afiança Oksana, Ihor, que tinha terminado uma empreitada na Ucrânia um mês antes, veio "saber se era possível trabalhar, ver quais as condições. Só queria estar duas ou três semanas para saber como era."
Nega que o marido tivesse vindo já com um contrato de trabalho em vista, como foi dito ao DN por uma ucraniana, Maria, e como o próprio processo do ucraniano no SEF certifica: na entrevista/interrogatório de que foi alvo, Ihor teria dito que vinha trabalhar como tratorista numa empresa onde já estava o cunhado, e que teria contrato pronto para assinar, auferindo 1200 euros mensais. Oksana não nega a existência de um cunhado (assume que existe um familiar dos dois em Portugal, que vive cá há três anos, mas não quer dizer exatamente o grau de parentesco) porém garante que não era o caso: o marido vinha mesmo a Portugal só para ver como era.
Sobre a informação que foi publicada por vários jornais, incluindo o DN, com base no citado amigo de Ihor, de que este teria viajado com dois outros ucranianos para Portugal, Oksana nada adianta, não confirmando nem negando. Quanto ao facto de ele não ter voo de regresso marcado - que terá sido um dos motivos pelo qual foi barrado à entrada e inquirido - explica-o Pavlo Sadokha: "Muitas vezes sai mais barato não comprar ida e volta." A mulher não sabe quanto custou a viagem, mas Pavlo diz que um voo low cost via Istambul, que tem uma escala muito longa, não poderia custar mais de cento e tal euros.
Outra informação dada por Oksana que é contraditória com o que consta no processo de Ihor no SEF é a quantidade de dinheiro que ele traria consigo: o SEF diz 350 euros, a mulher 600. "Ele saiu da Ucrânia com 600 euros no bolso. E o familiar que temos em Portugal poderia emprestar ou mesmo dar-lhe mais se fosse preciso."
A diferença é relevante: a quantia de dinheiro que alguém que diz vir a Portugal em turismo - sem visto de trabalho, Ihor entrou em Portugal como turista (ao contrário do que afirmou o ministro da Administração Interna no parlamento, Ihor não tinha visto de turista; os ucranianos não precisam dele para estadas até 90 dias na UE) - traz consigo é um dos indicadores, para a polícia de fronteira, da veracidade ou não dessa pretensão. Mas, frisa Pavlo Sadokha, trazer pouco dinheiro não é forçosamente impedimento de entrada, como não é a inexistência de uma marcação num hotel: o estrangeiro pode indicar o nome e morada de alguém com quem vai ficar e que se responsabiliza por ele - e Oksana diz que ele vinha ficar em casa de uma pessoa conhecida, não ficando claro se se tratava do familiar mencionado ou de um amigo.
Há mais informações constantes no processo que espantam Oksana. Uma, atribuída ao hospital de Santa Maria, e é de que Ihor teria "hábitos alcoólicos crónicos". "Não percebo isso. Fico muito surpreendida. Ele não bebia muito. Era cristão praticante e quando fez a viagem estávamos na quaresma, não ia pôr-se a beber." Outra é a imputação, pelo SEF, de um comportamento tão agressivo ao marido que teria implicado algemarem-no. Esta imputação está quer na comunicação ao Ministério Público da sua morte quer no relatório interno feito por um dos dois inspetores que o encontraram com dificuldade em respirar na tarde de 12 de março e chamaram o INEM. "Ele nunca foi agressivo, nunca o vi comportar-se nas várias situações como agressivo. Mas se isso é verdade não há câmaras que tenham registado esse comportamento?"
É a vez de ser o DN a responder. De facto, não foi até agora divulgada qualquer informação sobre a existência de imagens de Ihor evidenciando o alegado comportamento agressivo, e na sala onde terá sido colocado no regresso do hospital, na qual alegadamente foi agredido na manhã de 12 de março e onde o seu óbito foi declarado, às 18h40 desse mesmo dia, denominada de "dos Médicos do Mundo" (por ser onde esta ONG vê as pessoas que estão detidas no CIT), não há câmaras de vigilância - algo que, anunciou o ministro da Administração Interna no parlamento, onde foi ouvido sobre o caso a pedido de BE e PAN, vai mudar: haverá câmaras em todos os espaços do CIT. Oksana agradece a explicação, e conclui: "Mesmo que ele tivesse sido agressivo, isso não justificava uma reação da polícia que o matasse."
No aeroporto, adianta, estava alguém à espera de Ihor. Foi esse alguém - de quem não quer dizer o nome, não esclarecendo se é o seu familiar, se um dos amigos que teriam chegado com Ihor ou outra pessoa - que a avisou de que o marido fora impedido de entrar em Portugal e ia ser obrigado a regressar.
"É uma pessoa da nossa confiança. Telefonou-me no dia 11 a dizer que o Ihor foi parado na fronteira e ia ser deportado. Disse-me que ele não podia ligar-me porque lhe tiraram o telemóvel mas que estava bem e que ia em breve regressar à Ucrânia."
Oksana sabia que o marido, além de ucraniano, falava apenas inglês básico - não sabe se conseguiria explicar bem as coisas perante os inspetores portugueses - mas não ficou muito preocupada, apesar de não conseguir falar com o marido, porque essa pessoa lhe disse que perguntara por Ihor aos inspetores do SEF e tinham dito que ele estava bem. Essa pessoa, porém, não terá visto Ihor nem pedido para o ver. E ninguém, decerto, providenciou a Ihor qualquer tipo de assistência jurídica, apesar de a lei lho garantir.
Não se sabe se lhe foi oferecida, mas a prática habitual é entregar aos estrangeiros retidos no CIT um documento que os informa dos seus direitos apenas em quatro línguas - português, espanhol, francês e inglês. E não há, ao contrário do que a Provedoria de Justiça e Ordem dos Advogados têm aconselhado e várias organizações de defesa dos direitos humanos exigido, uma escala de advogados no aeroporto para prestar apoio aos estrangeiros que pedem asilo ou que veem a entrada interditada e ficam detidos no CIT.
Quando Oksana voltou a saber do marido, a 13 de março, foi para ouvir que este estava morto.
Durante quase toda a conversa a voz de viúva de Ihor é calma, ponderada. Há palavras que se percebem, quase iguais em ucraniano e português: deportação, cônsul, universidade. Professora numa escola pública, aufere mensalmente 5000 grívnias (correspondente a menos de quatro cêntimos), cerca de 170 euros. O custo de vida na Ucrânia é bastante mais baixo que em Portugal - será cerca de 40% do português - mas mesmo assim, garante Pavlo Sadokha, o ordenado dela não é o suficiente para a sustentar e aos dois filhos - uma rapariga de 13 e um rapaz de oito.
"Não tenho nenhuma ideia de como vai ser, como vou fazer para viver e alimentar os meus filhos. Vivo com os meus pais, mas recebem pensões muito baixas", diz Oksana.
De quarentena como grande parte dos europeus, até agora não recebeu a certidão de óbito nem qualquer documentação das autoridades portuguesas. Não sabe se poderá receber alguma pensão na Ucrânia pela morte do marido, ainda não se informou.
Mas acha que "após a descoberta do crime alguém de Portugal me devia ter contactado oficialmente. Estou pronta para falar com a polícia, claro, não tenho nada a esconder. E queria saber toda a verdade. Por que é que o meu marido foi morto."
O DN pergunta se ao menos o seu familiar em Portugal já falou com a polícia; Oksana, cujo advogado, José Gaspar Schwalbach, requereu já a sua constituição como assistente no processo, diz que não sabe. Também não sabe quando poderá receber as cinzas do marido.
É quase no final da conversa, quando perguntada sobre como estão os filhos, que a voz lhe falha. "Ainda não lhes disse a verdade, que ele morreu por ter sido agredido. Eles ainda acham que foi doença. Ela [a filha, de 13 anos] viu umas coisas no Facebook, porque os jornais daqui falaram do assunto, e veio perguntar-me o que se passava. Disse-lhe que era invenção dos jornalistas, para não os magoar mais. Já é tão difícil para eles assim. Nem querem acreditar que nunca mais vão poder dizer a palavra pai."
De Portugal espera que "leve o caso à justiça e que os culpados tenham as penas previstas na lei. Vou também exigir uma compensação para os meus filhos porque sozinha não vou poder sustentá-los e dar-lhes educação." Faz uma pausa, prossegue. "Achava que era um dos países do espaço europeu, civilizado, onde os direitos das pessoas estão em primeiro lugar. Nunca imaginei que algo assim poderia acontecer aí. Quero agradecer aos jornalistas que estão a tentar descobrir a verdade."