SEF terá instaurado inspeção interna à morte mas não detetou suspeitas de crime
O ministro da Administração Interna revelou no parlamento que a direção SEF ordenou averiguação sobre morte logo no dia seguinte. Mas não terá encontrado indícios de crime. "Haverá coisas que estarão entre a negligência grosseira e o encobrimento gravíssimo", diz o governante sobre o caso.
A Direção Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras determinou logo a 13 de março (o dia seguinte ao da morte de Ihor Homenyuk sob custódia desta polícia) a intervenção da respetiva inspeção interna, informou esta quarta-feira no parlamento o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. Mas o governante admitiu só ter sabido das suspeitas de crime a 30 de março, quando três inspetores foram detidos, indiciados por homicídio qualificado. E apesar de considerar que "haverá no plano administrativo da responsabilidade disciplinar coisas que estarão entre a negligência grosseira e o encobrimento gravíssimo", não respondeu às perguntas dos deputados sobre quantos processos disciplinares foram abertos relativos ao caso, nem quantos funcionários estão suspensos.
Relacionados
A informação sobre a existência de uma inspeção interna do SEF é uma novidade, uma vez que no seu comunicado de 30 de março, quando dá conta da demissão dos diretores de Lisboa, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não fez referência a esta medida. Refira-se que o SEF é um órgão de polícia criminal e que o seu gabinete de inspeção é coordenado pelo inspetor coordenador superior João Ataíde, que está no topo da carreira daquela polícia. Mas quando o SEF comunica a morte do ucraniano à Inspeção Geral da Administração Interna, a 18 de março (e não 17 como Eduardo Cabrita referiu), não fez referência a quaisquer suspeitas de crime.
O que significa que quatro dias após o início da averiguação ordenada pela direção nacional a sua inspeção interna estaria ainda no ponto da morte por causas naturais. Isto quando já decorria uma investigação a cargo da Polícia Judiciária, alertada a 14 de março por uma denúncia anónima (descrevendo o que se passara com o ucraniano e acusando inspetores de o terem agredido, o que leva a crer tratar-se de alguém que presenciou os factos no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, onde são colocados quer os estrangeiros requerentes de asilo quer os que viram barrada a sua entrada no país) e pelo médico que autopsiou o corpo, o qual considerou existirem sinais claros de morte violenta. Investigação essa da PJ com a qual o SEF assegura, no referido comunicado de 30 de março, "ter colaborado desde o início".
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
De resto, só a 30 de março, por determinação do ministro e após a detenção dos três inspetores - que, como o DN já afirmou, estavam ao serviço aquando da detenção, o que significa que não tinham sido suspensos - a IGAI iniciou um inquérito disciplinar ao caso. Tal indicia que não recebeu qualquer outra informação do SEF no sentido de que a morte poderia ter ocorrido devido a causas não naturais. Fontes do SEF ouvidas pelo DN consideram que esta nova informação "ainda acrescenta mais dúvidas a todo este processo: como é que houve uma inspeção e não se descobriu nada?"
Declaração de óbito de médico do INEM deve ser investigada, diz ministro
Eduardo Cabrita não foi questionado sobre o resultado da inspeção mas justificou o facto de o SEF ter comunicado a morte como comunicou (recorde-se que quer ao MP quer à embaixada da Ucrânia foi dito que o homem morrera subitamente por complicações de um ataque epilético) "no contexto de uma certidão de óbito assinada, das 18h40, que diz que terá havido um paragem cardiorrespiratória presenciada após crise convulsiva. Portanto é a certidão do médico que foi chamado pelo centro de orientação de doentes urgentes [do INEM] que se deslocou ao local e emitiu a primeira certidão."
Frisando não conhecer o relatório da autópsia nem dever conhecê-lo, o ministro, que estava a ser ouvido na Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias por pedido do BE e PAN, considerou que "a diferença entre o que diz a certidão de óbito e o que dirá o relatório da autópsia é matéria que tem de ser investigada." Referiu também que antes do INEM tinham visto Ihor, chamados por inspetores do SEF, elementos do gabinete da Cruz Vermelha que existe no aeroporto, e que também essa intervenção merece investigação: "Espero que seja apurado o que as pessoas da Cruz Vermelha constataram quando chegaram ao espaço e que decisões tomaram."
O DN questionou o INEM, a 2 de abril, sobre qual o protocolo de atuação das suas equipas perante uma morte em que há sinais de violência no corpo e se é suposto que numa situação desse tipo haja comunicação às autoridades policiais ou ao MP de suspeita de morte violenta, mas até agora não houve resposta. Contactado telefonicamente esta segunda-feira, o gabinete de imprensa do INEM adiantou estarem a tentar perceber, junto do médico que assinou a declaração o que se passara - sendo que as perguntas do DN não versam o caso concreto.
Já quanto ao tempo que o SEF teve, a partir da declaração de óbito, o corpo na sua posse - mais de três horas - até o entregar ao Instituto de Medicina Legal (onde no formulário de entrada está escrito que o cadáver era proveniente "da via pública"), Eduardo Cabrita considera não merecer particular relevância: "Entre as 18.40 e a saída do cadáver às 22 horas há duas comunicações com o MP e uma primeira comunicação feita pelo SEF à embaixada da Ucrânia que é completada no dia seguinte. Quem tiver de investigar investigará tudo, mas não é este facto a que eu dê particular relevância neste contexto. Todos nós nos lembramos de remoções de cadáveres muito mais longas."
De facto há remoções de cadáveres que levam muito mais tempo. Mas uma vez que o corpo não ficou a aguardar a chegada de nenhuma autoridade, que a comunicação formal ao MP foi enviada às 21.59 (anteriormente existira um telefonema, não se sabendo a que horas, no qual a procuradora Alexandra Catatau dera autorização verbal para a remoção e envio para o IML) e que ao contrário do que diz o ministro a embaixada foi informada apenas às 23.43, por email, e quando o corpo já dera entrada na morgue, fica por explicar a demora, que um procurador do MP consultado pelo DN considerou muito estranha.
O ex ministro e ex militante socialista Paulo Pedroso, no Twitter, fez-se eco dessa estranheza: "Pode o SEF partilhar a linha do tempo dessas três horas por parte de quem estava a averiguar? Seria um serviço à transparência da administração."
"Se foi usado um bastão é ilegal" - mas há muitos inspetores com bastão
Também em nome da transparência, e uma vez que tem sido noticiado que nas imagens de videovigilância apreendidas pela PJ se vê um dos inspetores agora indiciados por homicídio a dirigir-se à sala onde estava Ihor, pelas 8h15 da manhã de 12 de março (quando terão ocorrido as agressões), com um bastão extensível na mão, um dos deputados - o socialista José Magalhães, que foi secretário de Estado da Administração Interna no governo Sócrates - perguntou se aquela arma "classe A" faz parte do equipamento dos inspetores do SEF e para que efeito.
A resposta do ministro foi clara: "Bastões extensíveis não integram o equipamento de pessoal do SEF, designadamente no aeroporto. Caso se prove a utilização de qualquer bastão extensível isso é totalmente ilegal. Totalmente ilegal. Não integra o equipamento atribuído aos inspetores do SEF, nem no aeroporto nem noutras ações."
Esta questão, sobre se os bastões fazem parte do equipamento do SEF, já tinha sido colocada pelo DN ao MAI na semana passada, mas sem obter resposta. No entanto pelo menos dois inspetores do SEF que pediram para não ser identificados garantiram ao jornal que, apesar de não ser uma arma distribuída e de eles próprio não a usarem, está longe de ser incomum o porte de bastões por aquela polícia.
"A maior parte dos inspetores tem um bastão", disse um desses entrevistados ao DN, enquanto o outro admitiu: "Já vi inspetores com bastões à cintura. Não vou dizer que nunca vi." Nenhum dos dois sabia dizer se o uso seria legal ou ilegal, mas consideravam que se era notório - o bastão à cintura não é uma coisa que passe despercebida - não deveria ser proibido, e que faria parte do equipamento que os inspetores poderiam comprar e usar ao serviço.
Aliás se efetivamente um dos inspetores indiciados pela morte de Ihor tinha consigo o dito bastão, sabendo que existem câmaras de videovigilância em todo o lado no aeroporto e no CIT e estando perante outros colegas - há entre 20 e 30 inspetores em cada turno no aeroporto - e os seguranças daquele espaço (funcionários da empresa 2045) decerto considerava que se tratava de uma arma permitida. Se o uso de bastões é assim tão comum, aliás, só pode ocorrer com o beneplácito das chefias - que assim, a crer no pronunciamento do ministro, serão coniventes com uma ilegalidade.
Certo é que apesar de ter usado várias vezes as palavras "negligência" e "encobrimento" - "haverá coisas que estão entre a negligência grosseira e o encobrimento gravíssimo" - o ministro asseverou também que "não há ações orquestradas pelo SEF nem isto [referindo-se à morte de Ihor e as circunstâncias que a rodearam" é o padrão de atuação do SEF ou de qualquer outra entidade pública."
E declarou: "Jamais estive numa situação que mais contrariasse aquilo que são os valores fundamentais do Estado democrático e aquilo que são os princípios que o MAI e SEF seguem em matéria de política de fronteiras e política de migrações, política de acolhimento de cidadãos de outras nacionalidades que por qualquer razão procuram o nosso país."
Vai haver videovigilância na sala onde morreu Ihor
Apesar destas certificações, Eduardo Cabrita disse "não ter dúvidas" de que o Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa "não tem condições físicas", lembrando que determinou como prioridade a construção de outro centro em Almoçageme (cuja abertura foi anunciada para a primeira metade de 2019, mas não se efetivou).
E se assegurou que "não é verdade que não se tenha atendido às recomendações da Provedoria de Justiça, houve várias reuniões com a provedora e foram tomadas diversas decisões nos últimos anos", acabou por anunciar agora várias medidas que vão, precisamente, ao encontro das recomendações quer da Provedoria e do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, que funciona na Provedoria sob a égide das Nações Unidas, quer de outras organizações de defesa dos direitos humanos.

A vítima numa foto partilhada nas redes sociais
"O que tem de mudar a partir daqui? Para já este centro está fechado até 30 de abril. E não voltarão a entrar requerentes de proteção naquela estrutura [pessoas que se colocam sob a proteção do Estado português].Vão ser reforçados os mecanismos quer de auditoria de segurança por entidades externas quer de reforço da vigilância. E esta sala [onde morreu Ihor], que era uma sala destinada à privacidade do acesso dos Médicos do Mundo, vai ter videovigilância, os mecanismo de videovigilância vão ser alargados a todos os espaços deste centro." Diga-se que este facto poderá implicar questões de proteção da intimidade, já que estará em causa colocar videovigilância em locais onde serão ministrados cuidados médicos.
Por outro lado, prosseguiu o ministro, "as audições de segunda linha, que são registadas por escrito, passarão a ser gravadas, permitindo o acompanhamento quer por defensor jurídico quer por quem invoque legitimidade relativamente à matéria." De acordo com o que fontes do SEF garantiram ao DN, já houve gravação, áudio e vídeo, destes interrogatórios (porque de interrogatórios se trata na verdade) mas terá deixado de haver.
Novo regulamento dos CIT e novo protocolo com Ordem dos Advogados
Outra mudança anunciada é da proposta de "um novo protocolo de cooperação" à Ordem dos Advogados, que deverá ocorrer já "na próxima semana" e entrar em funcionamento a partir de maio.
Que tipo de proposta será essa e se vai ao encontro daquilo por que pugna o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura no seu relatório de 2018 (a existência de uma escala de advogados no aeroporto) o governante não esclareceu. O que se sabe é que o acesso dos detidos nos CIT a assistência jurídica ou direito de defesa, se bem que garantidos na lei, é bastante dificultado, como quer a Provedoria quer o MNP e a própria Ordem já frisaram. Não só por não terem acesso fácil a advogados (estrangeiros acabados de chegar a Portugal e que não conheçam ninguém terão a maior dificuldade em contactar um) mas também porque em muitos casos nem saberão quais os seus direitos: como o MNP apontou, a informação que sobre isso existe apenas em quatro línguas (português, espanhol, francês e inglês).
Também no que respeita à questão das línguas há novidades: "O SEF dispõe de intérpretes para apoio aos migrantes em mais de duas dezenas de línguas", disse o ministro, mas "vai-se criar uma estrutura de bolsa de intérpretes especificamente para o aeroporto."
Tudo isto, concluiu, será contemplado num novo regulamento daqueles espaços, que deverá estar pronto até ao final do mês e será apresentado à Provedoria e à OA para apreciação. Não ficou claro se se refere a uma nova lei sobre os CIT (a que vigora é de 1994, e remete, no que respeita ao estatuto das pessoas "retidas", para um diploma de 1979 já revogado) ou a outra coisa.
Sem resposta sobre reparação à família
Cabrita, que anunciou que receberia a embaixadora da Ucrânia esta quarta-feira, não respondeu a uma pergunta sobre se foram dados alguns passos para a compensação da família.
O DN sabe que a mulher de Ihor, professora do ensino básico com dois filhos menores que de acordo com o presidente da Associação dos Ucraniano em Portugal, Pavlo Sadokha, auferirá cerca de 250 euros mensais, já despendeu 2200 euros com a cremação e a trasladação das cinzas do marido, que ainda permanecem em Portugal (devido à pandemia), mas diz querer do Estado português sobretudo que "os culpados sejam levados à justiça com penas máximas" embora admita também pedir uma indemnização.
O DN perguntou ao advogado que a representa, José Gaspar Schwalbach, se está ponderar a possibilidade de solicitar uma indemnização no âmbito da compensação prevista para as vítimas de crimes violentos, e que permite que estas ou as suas famílias possam ser compensadas antes do final dos processos judiciais. "É algo que está em cima da mesa", adianta o causídico. "Sem falar do caso concreto, mas genericamente, numa situação destas seria possível, seria uma das situações em que seria possível." O procedimento, explica, "passa por um requerimento ao MP para ativação do fundo. A concessão de indemnização depende de requerimento apresentado à Comissão de Proteção de Vítimas de Crimes [um organismo independente na égide do ministério da Justiça] e o prazo para efetuar o pedido é de um ano."
No entanto, as indemnizações através desta Comissão destinam-se apenas aos casos em que não é possível identificar os autores dos crimes. Quando estes são conhecidos, como pode ser este o caso, essa compensação deve ser dos próprios ou, no caso de se tratarem de funcionários do Estado, do próprio serviço.
Da audição parlamentar de Eduardo Cabrita constou ainda a justificação da recusa de entrada de Ihor (lê-se Igor), mas com uma informação errada. O ministro disse que o ucraniano tinha um visto de turista - o que não é consistente quer com os documentos a que o DN teve acesso, que especificam que o passaporte de Ihor não tinha qualquer "visto Schengen", quer com a informação que o cônsul da Ucrânia, Volodymyr Kamarchuk, deu ao jornal: "Os ucranianos, no contexto de Schengen, não precisam de visto para entrar, têm direito a ficar até 90 dias nos países da UE. Aliás a embaixada portuguesa na Ucrânia não pode dar vistos de turismo a nacionais ucranianos, porque não existem. Se Ihor queria trabalhar em Portugal, teria de pedir um visto D."
No entanto o ministro repetiu essa mesma informação várias vezes. "Estamos a falar de um cidadão que entrou em Portugal no dia 10 de março com um visto de turista"; "Perante um visto de turista de alguém que diz - isso está registado no relato da audição que foi feita - que não tem hotel onde ficar, que não tem voo de regresso comprado nem data prevista de regresso e à segunda ou terceira pergunta diz o que quer é trabalhar, não corresponde à natureza do visto e a recusa de entrada é legítima face àquilo que são as regras de fronteira Schengen. O que não é legítimo é o que aconteceu depois, designadamente aquilo que leva à morte deste cidadão."
O ministro, que tinha várias vezes dado conta do seu choque com o caso, afirmando "isto não pode acontecer em estruturas de Estado", terminou a audição garantindo aos deputados: "Partilho da vossa indignação e da vossa angústia e garanto-lhes que naquilo que no que são as minhas competências legais e administrativas não deixarei de fazer tudo para que algo similar jamais se volte a repetir."
Atualizada às 12h27 com informação sobre o possível processo de indemnização à família.