"Recebemos um e-mail do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras com uma frase curta e seca a dizer que um cidadão nosso tinha morrido. Só isso.".A voz do cônsul da Ucrânia em Lisboa, Volodymyr Kamarchuk, reflete a estranheza da comunicação e da hora desta: o e-mail, conta ao DN, foi enviado no final da noite de 12 de março, quinta-feira, um dia depois de a embaixada ter recebido uma notificação sobre a recusa de entrada desse mesmo cidadão e da sua ordem de deportação. "No dia 13 de manhã ligámos para o inspetor que enviou o e-mail a perguntar o que sucedera. Disse-nos que ele tinha tido problemas epiléticos e tinha ido para o hospital por esse motivo e que já de regresso ao aeroporto tinha sido preciso chamar o INEM e morrera quando estavam a tentar salvá-lo. Quando quisemos saber por que motivo não nos tinham comunicado a ida ao hospital, não nos responderam.".O cônsul reconhece que a lei não obriga o SEF a informar a embaixada de que um cidadão naquelas circunstâncias teve necessidade de cuidados médicos, mas usualmente outras autoridades pedem a colaboração da embaixada..Em todo o caso, esta representação diplomática não desconfiou de que poderia haver alguma coisa de errado e a morte não se dever a causas naturais. Pediu informação sobre o cidadão para notificar a família, e a 14 de março recebeu carta desta a pedir para tratar da trasladação do corpo. Entrou em contacto com uma agência funerária para tratar do processo, que foi dificultado por causa da inexistência de voos diretos e das restrições existentes devido à pandemia..Foi pois com os restos mortais de Igor ainda em Portugal que a notícia dada neste domingo pela TVI - de que três inspetores do SEF eram suspeitos do seu homicídio - e, já nesta segunda-feira, confirmada por comunicado da PJ relativo à detenção dos inspetores, ao qual se juntaram uma nota à imprensa do SEF e outra do Ministério da Administração Interna, informando da demissão do diretor e do subdiretor daquela polícia, assim como da instauração de processos disciplinares a "todos os envolvidos nos factos relativos ao falecimento" surpreendeu a embaixada e a família.."Foi omitida a verdade por parte das autoridades do SEF", acusa a representação diplomática ucraniana numa carta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros publicada ao final da manhã desta segunda-feira no Facebook. Qualificando o caso como de "violação flagrante dos direitos humanos", diz "ter a esperança de que as autoridades competentes realizarão uma investigação objetiva, imparcial, independente e justa deste caso, com um posterior encaminhamento do processo para garantir que haja justiça, uma vez que se trata de uma vida humana, bem como solicitamos informar a embaixada sobre os seus resultados."."Queremos agradecer a coragem do médico que denunciou o caso".A surpresa e a revolta são partilhadas por Pavlo Sadokha, presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal. A associação, informa, sabia da morte "desde a semana passada", mas a informação que detinha era de que se devera a "ataque cardíaco": "Recebemos uma chamada de um amigo do Igor [a família não quer que o apelido ou outras informações pessoais sejam para já divulgados] a pedir ajuda para transportar o corpo para a Ucrânia e a dizer que ele tinha tido um ataque cardíaco no aeroporto. Dissemos-lhe que íamos tentar na comunidade arranjar dinheiro - ainda é caro, são 3500 euros.".Pavlo sabe que o amigo de Igor já ligara para o cônsul, que como referido tinha a mesma informação: fora uma morte devida a causas naturais, ataque cardíaco ou epilético. E assim ficaria, crê o representante da comunidade ucraniana, se não fosse o médico-legista que ao fazer a autópsia se deu conta de que a morte não se devia às tais "causas naturais": "Queríamos agradecer a esse médico do Instituto de Medicina Legal que avisou a Polícia Judiciária (PJ), porque sem este aviso não saberíamos o que aconteceu. Como comunidade queremos agradecer-lhe a coragem.".Vendo a situação como contrastante com o anúncio de que o governo decidiu, no âmbito das medidas de contingência devidas à pandemia, legalizar todos os imigrantes que aguardavam regularização, Pavlo Sadokha congratula-se, no entanto, com o facto de a PJ ter tomado já conta do caso e de terem sido demitidos os diretores do SEF de Lisboa. "Se há nas autoridades pessoas com este comportamento é gravíssimo. Para nós é muito importante levar este processo à justiça e segui-lo até ao fim, porque este tipo de coisa não pode acontecer.".A associação está já em contacto com advogados, assim como a embaixada; o cônsul certifica ao DN que a família de Igor, que deixa dois filhos, de 14 e 8 anos, a cargo da mulher, professora, quer constituir-se assistente no processo..Era "um homem muito bom" e vinha assinar contrato de trabalho.Para já, a família do morto declina falar aos media, apesar de, por intermédio do cônsul, a mulher responder à pergunta do DN sobre se na sua história médica existia diagnóstico prévio de epilepsia: não. .Também o amigo de Igor que ligou para a Associação dos Ucranianos em Portugal deixou de querer falar no assunto. Segundo Pavlo Sadokha, o homem estará agora na Bélgica a trabalhar. Uma informação que bate certo com a fornecida por Maria, uma ucraniana amiga da família de Igor em casa de quem este iria ficar e que acedeu a falar com o DN..Igor, conta Maria, "era muito boa pessoa, muito boa pessoa, para todos, para a família, não era agressivo, era bom trabalhador". Trabalhava, informa, na construção civil, era empreiteiro. E vinha a Portugal assinar um contrato para uma obra na Bélgica: "Nunca tinha vindo cá, era a primeira vez. Tinha os papéis do contrato na bolsa [supõe-se que quererá dizer mala].".De acordo com este relato, Igor, que teria tentado entrar em Portugal como turista, oriundo de Istambul num voo chegado a Lisboa dia 10 de março às 15.00, viu a entrada negada pelo SEF, não teria de facto como intenção fazer turismo, como terá afirmado - e que é a informação que a embaixada da Ucrânia detinha -, mas trabalhar na União Europeia..Tratava-se, prossegue Maria, de um grande amigo de um primo, ou prima - o português da entrevistada nem sempre é claro e a aflição a falar do assunto não ajuda - e foi por esse parente que soube da morte. "A mulher dele já sabia, não sei quem a avisou. Perguntei se era preciso ajudar mas disseram que já havia uma agência a tratar." É comovida que termina a conversa: "Disseram que ele tinha morrido do coração, e afinal mataram-no? Ninguém sabia desses problemas de saúde que dizem que ele tinha. Não é verdade. Não percebo isto, não percebo.".Chegou a 10 de março e foi dado como morto às 18.00 de 12.Há de facto muito por perceber neste caso. Em contraste com a ideia que Maria tem de Igor, o relato de uma fonte do SEF atribui-lhe um comportamento de tal modo errático e agressivo que teria obrigado a várias intervenções de seguranças e inspetores..Primeiro, à chegada, ainda quando estava a ser conduzido para o Centro de Instalação Temporária (CIT), onde ficam as pessoas à espera de deportação), teria caído ao chão com o que parecia um ataque epilético - o qual estará registado pelas câmaras do aeroporto -, sendo chamado o INEM para o socorrer. Conduzido ao hospital (não foi indicado qual), ficou lá na noite de 10 para 11, sendo trazido de volta à hora do almoço para o CIT, onde teria continuado "alterado", tentando invadir a zona feminina e "atirando-se contra as paredes". Terá sido preciso "dominá-lo" e foi chamada a assistência médica do aeroporto, que lhe terá ministrado um calmante: diazepam (cuja denominação comercial mais conhecida é Valium)..Terá passado a noite de 11 para 12 fora do CIT, no gabinete médico do aeroporto, sob vigilância, tendo regressado na manhã seguinte. Aí, ainda segundo este relato - que não coincide com o que por exemplo a TVI diz ter acontecido -, começou de novo a mostrar-se violento, tendo mesmo entrado em conflito com outra pessoa que ali se encontrava. É aí que os três inspetores do SEF detidos o levam de novo para a mencionada "sala médica", fazendo uso de "força muscular". O relato termina aqui: terão deixado Igor nesse espaço, não é dito se com ou sem vigilância - a sala não terá câmaras, embora estas existam à porta e nos corredores, registando entradas e saídas - e quando voltaram terão constatado que o homem não estava bem e chamaram o INEM. Igor ainda estaria vivo quando o socorro chegou, mas às 18.00 era dado como morto..Como já referido, a família nega que Igor tivesse qualquer historial de epilepsia. Não é porém impossível, assegura um médico ao DN, que um homem de 40 anos tenha um ataque epilético sem nunca ter tido qualquer sinal prévio disso, e é crível que a investigação permitirá descobrir se foi realmente epilepsia que levou Igor a precisar de ir ao hospital: haverá registos clínicos desse facto, como do tipo de situação com que o INEM se deparou quando confirmou a morte (e a que horas) e ainda do ministrar de medicamentos no aeroporto..Inspetores não foram suspensos: estavam ao serviço quando foram detidos.Sucede, como já vimos, que a autópsia aponta para uma morte por intervenção de terceiros, com asfixia devido a compressão - algo que, de acordo com uma fonte da ligada à investigação, poderá ter ocorrido no ato de algemar, ao usar da força para empurrar o homem contra a parede ou contra o chão: quando se é algemado, pela posição de braços para trás, há dificuldade em respirar, pelo que uma compressão, se muito forte, pode causar asfixia..Sucede também que a mesma fonte confirma ao DN a informação já adiantada no domingo pela TVI: não foi via SEF mas sim "no âmbito da autópsia" - ou seja, via médicos legistas - que a Polícia Judiciária foi alertada para o caso. O que parece contradizer o comunicado do SEF exarado nesta segunda-feira..Neste, lê-se que "o SEF confirma que, no dia 12 de março, ocorreu no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do Aeroporto de Lisboa o óbito de um cidadão estrangeiro, tendo sido de imediato, no próprio dia, comunicado ao Exmo. Procurador Adjunto de turno junto do DIAP de Lisboa.".Na verdade, não tem de haver contradição: a morte pode ter sido comunicada ao Ministério Público como foi à Embaixada da Ucrânia, atribuindo-a a causas naturais. O que explica que a PJ não tenha sido chamada a acompanhar a autópsia, como é costume em caso de suspeita de crime. Mais difícil de coadunar com o que se sabe neste momento é a afirmação, também constante no referido comunicado do SEF, de que "o SEF está desde o início a colaborar com as autoridades envolvidas na investigação e tomou de imediato as medidas previstas em sede disciplinar.".Que "início" será esse, se se sabe que o SEF não tomou a iniciativa de, perante uma morte sob a sua jurisdição, chamar as autoridades de investigação criminal?.Fica também a dúvida sobre que medidas disciplinares foram tomadas, já que o comunicado nada diz quanto ao facto de os três inspetores agora detidos estarem ou não suspensos aquando da detenção - o que seria inevitável caso estivessem "desde o início", ou seja, desta a constatação do óbito, a ser investigados em relação com ele..A fórmula utilizada no primeiro parágrafo do comunicado do SEF é, aliás, dúbia - "foram hoje detidos três Inspetores em funções no Aeroporto de Lisboa por suspeita da prática do crime de homicídio". Mas na verdade, de acordo com o que o DN conseguiu saber, os inspetores não estavam suspensos. Terão sido notificados para prestar declarações nesta segunda-feira e quando se apresentaram para tal foram detidos para serem apresentados a tribunal - o que sucedeu nesta segunda-feira, sendo-lhes decretada prisão domiciliária e mantida a indiciação por homicídio qualificado (esta qualificação advém no caso desde logo do facto de os suspeitos serem funcionários e da especial vulnerabilidade da vítima, que estaria detida e algemada)..O DN questionou o MAI sobre várias das dúvidas que ficam quanto à atuação do SEF e do próprio ministério - quando exatamente foi ordenada pelo ministro a investigação pela IGAI ao CIT e por que motivo só nesta segunda-feira, após o noticiado pela TVI, foi demitida a direção do SEF e decretada a abertura de processos disciplinares a "todos os envolvidos" - mas até ao fecho deste texto não obteve resposta..Nota: artigo alterado às 23.56 para retificar uma informação incorretamente atribuída à embaixada da Ucrânia: ao contrário do que o DN escreveu, nunca aconteceu a embaixada ser avisada pelo SEF de que este ia conduzir um cidadão ucraniano ao hospital.