Algo está muito podre no reino do Ministério Público

Não é pouco irónico que o detentor da ação penal, que tem, em nome da justiça e da procura da verdade, o poder da máxima intrusão, se queira acintosamente furtar à sindicância dos seus próprios atos, negando a Ivo Rosa acesso aos inquéritos de que foi alvo. Puro absolutismo ou tem mesmo algo a esconder?
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Imagine quem me lê que um belo dia descobre que esteve a ser investigado pelo Ministério Público (MP) em sucessivos inquéritos criminais, e que esses inquéritos foram, ao fim de anos de investigação, arquivados.

Passado o choque, o natural é que procure um advogado para que este lhe explique o que pode fazer para saber quais as suspeitas que foram contra si levantadas e de que tipo de investigação foi alvo — ou seja, até que ponto os seus direitos fundamentais foram comprimidos ou violados, e com que justificação ou justificações —, e quais as conclusões que levaram aos arquivamentos. O que o advogado lhe dirá é que pode requerer acesso aos inquéritos em causa, uma vez que, estando arquivados, não estão em segredo de justiça, e porque a principal razão que poderia determinar a recusa de quem os detém — a proteção da sua vida privada e dados pessoais — não se lhe aplica.

O advogado informá-lo-á também de que, exceptuando processos que  ponham em causa a segurança nacional, digam respeito a vítimas de crimes sexuais ou a menores de idade, o princípio que está consagrado num Estado de direito democrático é o da transparência. Motivo pelo qual, aliás, existe a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, a qual dispõe que qualquer cidadão pode pedir acesso a documentos da Administração Pública (incluindo governos e autarquias) e de empresas públicas, sendo os organismos requeridos obrigados a responder formalmente num prazo de 10 dias e, caso recusem acesso, explicar porquê, podendo o cidadão recorrer dessa decisão para uma comissão específica e para os tribunais administrativos. No caso do processo penal, e porque os documentos relativos a inquéritos criminais não são considerados documentos administrativos, esse princípio de transparência consubstancia-se não só na obrigatoriedade de, não estando imposto o segredo de justiça, conceder acesso aos sujeitos processuais (entre os quais, desde logo, os arguidos) a toda a prova, como também numa espécie de “via verde” para os jornalistas. Neste último caso, e guarde esta ideia, porque a lei lhes reconhece uma legitimidade “ontológica” no acesso às fontes de informação e à sindicância dos organismos públicos, legitimidade essa que lhes é conferida por representarem o “direito a saber” dos cidadãos em geral.

Agora imagine que, na sua categoria de investigado aparvalhado, faz o requerimento à entidade detentora do processo e ela lhe responde que, como nunca chegou a ser acusado de nada, não é “sujeito processual”, pelo que tem de explicar qual o seu “interesse legítimo” no assunto, para o detentor do processo decidir se o é. Está a rir, certo? Então a pessoa investigada não tem interesse legítimo em saber porque o foi, como, durante quanto tempo e que conclusões foram tiradas?

Pois para o procurador-geral adjunto José Paulo Ribeiro de Albuquerque, que está colocado no Supremo Tribunal de Justiça, não. É isso mesmo que diz no despacho de três páginas com que respondeu ao pedido de acesso do juiz desembargador Ivo Rosa a um dos oito — é o número que tem sido noticiado — inquéritos criminais de que terá sido alvo nos últimos anos. 

Se alguém efetivamente acusado tem direito de acesso a toda a investigação para que se possa defender e avaliar se tudo foi feito de acordo com a lei, como é que alguém que foi investigado e não foi acusado (por falta de provas) não terá o mesmo acesso, para ajuizar se os seus direitos foram postos em causa sem legítima justificação? A questão da legitimidade, sarcasticamente invocada pelo procurador, coloca-se ao contrário: que legitimidade tem o MP para recusar a alguém que foi alvo de um inquérito criminal o direito de saber como foi suscitado e conduzido esse inquérito?

Para este procurador, também  autor do despacho de arquivamento do inquérito em causa (querendo dizer que considerou não haver substância que permitisse acusação), a diretiva europeia 2012/13/UE, de 22 de maio de 2012, que o juiz cita no seu requerimento, não se aplica no caso, já que respeita à informação que as autoridades judiciárias têm de facultar a suspeitos ou acusados para estes poderem preparar a respetiva defesa. E como, argumenta o procurador, o juiz não foi constituído arguido nem existe um procedimento criminal em curso contra ele, não precisa de se defender, portanto não pode invocar a diretiva. É que, aduz triunfalmente o despacho, aquela protege o direito de acesso aos autos apenas no âmbito da defesa em processo penal, não estabelece um direito geral de qualquer pessoa a consultar um processo.

É verdade que a diretiva versa sobre aquilo que o procurador diz. Mas será verdade que um investigado em inquérito criminal é “uma pessoa qualquer” no que respeita ao direito de acesso? Não será que a diretiva visa antes de mais certificar que os organismos judiciários europeus não funcionam como a Santa Inquisição e outros dispositivos acusatórios típicos do absolutismo, nos quais os indivíduos se veem destituídos de todo e qualquer direito, incluindo o de saber de que são ou foram suspeitos/acusados, como e por quem foram denunciados, e em que consiste ou consistiu a investigação e a produção de prova?

Sendo esse o objetivo da diretiva, talvez seja absurda a resposta do procurador — é que, se alguém efetivamente acusado tem direito de acesso a toda a investigação para que se possa defender e avaliar se tudo foi feito de acordo com a lei, como é que alguém que foi investigado e não foi acusado (por falta de provas) não terá o mesmo acesso, para ajuizar se os seus direitos foram postos em causa sem legítima justificação?

Afinal, a questão da legitimidade, sarcasticamente invocada pelo procurador, coloca-se ao contrário: que legitimidade tem o MP para recusar a alguém que foi alvo de um inquérito criminal o direito de saber como foi suscitado e conduzido esse inquérito?

E, óbvio, não basta alegar, como já foi alegado, que quaisquer atos investigatórios intrusivos, a existir, foram validados por um ou mais juízes: se isso bastasse para provar legalidade a citada diretiva europeia não era necessária; nem seria preciso haver defesa. Nem haveria, já agora, investigações criminais a juízes.

Mas o despacho de José Ribeiro de Albuquerque, que enquanto secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do MP publicou dois artigos de opinião no Observador exprimindo a sua preocupação com aquilo que via como uma tentativa de afetar a independência da sua corporação e a própria democracia (a proposta de Rio no sentido de que no respetivo órgão fiscalizador, o Conselho Superior do MP, passasse a haver, como é o caso do Conselho Superior de Magistratura, uma maioria de membros nomeados pelas instância democráticas, ao invés de uma maioria eleita pelos procuradores), tem mais um requinte: o de fazer ver ao requerente que, além de ser “uma pessoa qualquer”, não é jornalista. Sendo que, como é público, já houve jornalistas a solicitar acesso aos inquéritos que tiveram Ivo Rosa como objeto e esse acesso foi negado, alegando-se a proteção da vida privada e dados pessoais do juiz.

Temos pois uma soberba pescadinha de rabo na boca: o juiz não pode aceder, para determinar se os seus direitos foram violados, porque não é nada com ele; os jornalistas não podem aceder porque é preciso proteger os direitos do juiz.  

Temos pois uma soberba pescadinha de rabo na boca: o juiz não pode aceder, para determinar se os seus direitos foram violados, porque não é nada com ele; os jornalistas não podem aceder porque é preciso proteger os direitos do juiz. Poder-se-á ter encontrado uma forma de, num Estado de direito democrático, pôr pessoas sob investigação e vigilância, usando os meios de intrusão típicos do processo penal, pelos vistos durante anos, sem que as decisões que consubstanciaram tais atos, e os atos sem si, possam ser escrutinados pelo investigado/vigiado ou pelo jornalismo

Talvez seja aqui de frisar que isto não diz respeito só à “pessoa qualquer” em causa no despacho, que por acaso é juiz, e com a qual não temos sequer de simpatizar. O que isto significa é que se poderá ter encontrado uma forma de, num Estado de direito democrático, pôr pessoas sob investigação e vigilância, usando os meios de intrusão típicos do processo penal, pelos vistos durante anos, sem que as decisões que consubstanciaram tais atos, e os atos sem si, possam ser escrutinados pelo investigado/vigiado ou pelo jornalismo. Mais: sendo a “pessoa qualquer” um juiz cujas decisões têm não raro conflituado com as atuações e pretensões do MP, a suspeita de que as investigações de que foi alvo consistiram em algo entre a vingança e a espionagem a la Stasi é de uma tal gravidade que deveria determinar o deferimento de todos os pedidos de acesso do magistrado — até para comprovar que o MP não tem nada a esconder. E se tiver, mais um motivo para que tudo se saiba: ao contrário dos cidadãos, o Ministério Público não tem direito a vida privada.  

“O espectro que assombra a Europa não precisa dos métodos de Erdogan, Orban ou Kaczyńk”, escrevia em 2018 (no Observador) o procurador Albuquerque. “Pode chegar de surpresa e em pezinhos de lã”.  Ou sem lã nenhuma. 

Jornalista

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