"A minha primeira cama na América foi numa esquadra no Texas"

O algarvio Fernando Gomes é dono de um restaurante em Cambridge. Mas se hoje o Casa Portugal lhe garante uma vida confortável, o sonho americano começou atribulado. Neste verão o DN republica algumas das reportagens integradas na rubrica sobre portugueses e luso-americanos de sucesso Pela América do Tio Silva. Este artigo foi publicado originalmente a 23 de junho de 2017.

Sento-me com Fernando Gomes numa mesa junto à janela, com vista para Cambridge Street, a longa rua que sai de Harvard e pouco a pouco, à medida que caminhamos para sul, parece transformar-se em território português, tantas são as coletividades ou os restaurantes com as cores de Portugal pintadas na fachada. Chove neste subúrbio de Boston e por isso não passa quase ninguém. No Casa Portugal, o restaurante deste algarvio de 53 anos, também os últimos clientes já saíram. Combinámos a conversa às três mesmo para não atrapalhar o serviço.

"Foi um dia normal. Nem muita gente nem pouca para o almoço. Alguns estudantes", diz Gomes, depois de ter trazido duas garrafas de Sagres para a mesa e me perguntar se quero uns pastelinhos de bacalhau, uma das especialidades de uma casa que, como o nome indica, quer ser de todo o Portugal. "Eu sou algarvio, a minha mulher é minhota, aqui à volta a maior parte das pessoas são das ilhas. Tenho obrigação de oferecer diversidade", acrescenta, entre dois goles de cerveja portuguesa. Na parede, pratos de cerâmica de todo o país servem de decoração. Elogio, porque é típico sem ser kitsch. "Acha mesmo? Eu vou comprando à medida que vou visitando as terras. Conheço bem Portugal. Mas já me disseram que isto agora quase parecia mais uma loja de loiça do que um restaurante", sublinha, por entre risos.

A vida tem sido de muito trabalho mas tem corrido bem, admite Gomes. Porém, a aventura nos Estados Unidos começou atribulada: "Entrei cá como os mexicanos, a pé pela fronteira. Nada fácil. E a primeira cama que conheci na América foi numa esquadra da polícia no Texas. Apanharam-me."

Fico surpreendido. Tenho conversado com muitos luso-americanos, na Califórnia e também aqui na Nova Inglaterra, e se há diferentes histórias de imigração ilegal, nenhuma que me relataram se parece com a deste homem de Alcoutim. Gomes conta-me que desde os 14 anos começou a trabalhar como cozinheiro em grandes hotéis do Algarve e que depois de ter estado na Marinha, também como cozinheiro, começou a magicar uma outra vida. "Um português aqui da América, o Sr. Fernando Castanheira - uma bela pessoa, que já morreu -, precisava de um cozinheiro para o seu Sunset Café, que fica aqui perto, nesta rua, e arranjou-me o emprego. Eu na altura era um rapaz solteiro e aceitei. Mas na embaixada americana não me davam visto. Perceberam logo que eu não vinha para turismo, faziam muitas perguntas e no fim recusavam o visto. Até que me cansei de esperar e fiz uns contactos. Consegui mesmo chegar à América."

A aventura aconteceu em 1988. Deixou o Algarve e foi ter com uma pessoa a Aveiro. Depois passou para Espanha pela fronteira de Vilar Formoso. Entrou em França e em Paris apanhou um avião para a Cidade do México com escala em Miami. "Em Miami, sim. Entrei na América para sair horas depois", ri-se o português, quase 30 anos depois. Da Cidade do México até à fronteira com os Estados Unidos foram ainda uns bons mil quilómetros, até ao objetivo final. "Andei a trabalhar seis meses para pagar esta viagem", sublinha.

No Texas foi apanhado pela polícia. Teve direito a cama e comida de graça durante 15 dias mas só saiu da esquadra depois de o futuro patrão em Cambridge pagar uma fiança de três mil dólares. Comprometeu-se a apresentar-se num tribunal texano para definir o destino, mas nunca mais apareceu.

"Quando cheguei à América não falava quase nada de inglês. Nem fazia ideia do que isto era. Mas vim para trabalhar duro e foi o que fiz. Ganhava dez dólares à hora. E ganhava bem porque trabalhava muito. Cheguei a trabalhar 90 horas por semana", conta. Além de ganhar, Gomes poupou. E uns anos depois comprou este Casa Portugal, que tem fama de ser o mais antigo restaurante português de Cambridge. Terá sido fundado na década de 1970. "Paguei uns valentes dólares, mas o valor mais do que triplicou", acrescenta. A decoração do restaurante mudou, mas ficou numa das paredes uma pintura de Amália, que um dia terá chegado a vir aqui cantar fados para quem quisesse ouvir e matar as saudades.

Com o prestígio de Harvard, uma das melhores universidades americanas, e a proximidade a Boston, na margem sul do rio Charles, os preços das casas em Cambridge não param de subir. E boa parte da comunidade luso-americana foi-se mudando para outras zonas. O próprio dono do Casa Portugal vive hoje em Metford, "a uns 20 minutos daqui", diz. De carro, claro, que essa é a medida para a relação tempo/distância nos Estados Unidos. Gomes é casado com Manuela Almeida e tem uma filha de 18 anos, Karina, que quer ser enfermeira e enche de orgulho o pai porque ganhou uma bolsa de estudos que "vai ajudar e muito a pagar as propinas".

Estamos agora sentados ao balcão. Vêm mais duas Sagres. Na televisão, sintonizada na Benfica TV, reconheço o historiador João Paulo Oliveira e Costa, especialista em Descobrimentos e conhecido adepto das águias. Também Gomes é benfiquista e ainda há pouco, numa ida a Portugal, foi à Luz ver um Benfica-Porto. "Vou todos os anos a Portugal com a família. Tenho casa no Algarve. A Karina também gosta muito de Portugal mas ao fim de um mês começa a perguntar-nos quando é que regressamos", conta. A filha fala português mas sente-se mais à vontade no inglês, admite. "E um dia eu e a mãe começámos a falar de ir para Portugal a sério e ela não gostou nada da ideia", acrescenta, admitindo que a filha se sente americana e a própria mulher já é cidadã dos Estados Unidos.

Foi na altura de casar, quando quis pôr os papéis para a naturalização, que Gomes foi relembrado da tal estada de 15 dias numa esquadra no Texas. "Como não me apresentei no tribunal na época queriam deportar-me. Tive de pagar a um bom advogado para evitar mais problemas", relata. Tudo resolvido a bem, mas quando viaja tem sempre direito a um interrogatório antes de reentrar nos Estados Unidos, enquanto a mulher e a filha passam à vontade.

Pergunto o que se pode comer aqui de típico de Portugal. "Bacalhau cozido, polvo à lagareiro, amêijoas à Bulhão Pato", responde. E vinhos portugueses? "Tenho de tudo, desde o Pera Manca, que vendo a 270 dólares, até ao Monte Velho, com uma garrafa a custar 19 dólares". Fico a saber que muitos chineses frequentam o restaurante por causa do marisco e que os clientes americanos, habituados só a filetes, de início estranhavam ver a cabeça do peixe no prato, mas agora "até a chupam".

José Santos, um dos empregados, ri-se. É açoriano e está desde 1975 nos Estados Unidos. Pergunto se viram Portugal ganhar no ano passado a final do Europeu de Futebol. "Então não vimos?", responde Gomes. Foi uma loucura. Os portugueses sentem muito a bandeira", sublinha o algarvio.

Despeço-me de Santos e de Gomes. E continuo a caminhar pela Cambridge Street, aproveitando que a chuva parou. Passo junto ao tal Sunset Café e noto uma placa a dizer Fernando Castanheira Corner. Uma homenagem do mayor ao português que trouxe o meu anfitrião algarvio para a América.

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