Vladimir Putin.
Vladimir Putin.EPA/VYACHESLAV PROKOFYEV/SPUTNIK/KREMLIN POOL

Elites económicas russas em revolta: economia de guerra de Putin revela-se um castelo de cartas

Entre juros recorde e a dependência de Pequim, as pressões das elites russas e a fuga de talentos expõem as fissuras de um regime que hipoteca o futuro em nome de um sonho sobre o passado.
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A Rússia de Vladimir Putin atravessa um dos momentos mais paradoxais e tensos da sua história moderna. E não é apenas por o que começou como uma "operação militar especial", para mercado interno, se ter transformado numa guerra de desgaste. É que o conflito que se trava nas trincheiras da Ucrânia chegou já definitivamente aos corredores do Banco Central e às contas bancárias de milhões de russos.

De tal forma que, pela primeira vez em décadas, o descontentamento não vem das ruas, mas do próprio coração do sistema: a elite industrial e os oligarcas.

A revolta dos barões

O sinal de alarme soou quando figuras como Sergey Chemezov, líder do gigante da defesa Rostec e amigo pessoal de Putin, e o magnata do alumínio Oleg Deripaska, vieram a público classificar a política monetária do país como "loucura".

O alvo das críticas é a taxa de juro recorde, que atingiu os 21% durante grande parte do ano de 2025, asfixiando o investimento civil.

Para estes industriais, o custo do dinheiro tornou-se tão elevado que o lucro das exportações é consumido pelos juros, ameaçando levar fábricas históricas à falência.

Vladimir Putin.
Quando patrão de fábrica de tanques se imolou na Praça Vermelha. Indústria de Defesa russa cede sob pressão

O paradoxo da liquidez

A economia russa vive hoje a duas velocidades. No setor militar, a liquidez é abundante, alimentada pela máquina de impressão estatal. No setor civil, o cenário é de deserto financeiro. Esta falta de liquidez é uma ferramenta deliberada do Banco Central para tentar travar uma inflação galopante que corrói o poder de compra. No entanto, o resultado é uma economia "congelada" onde a recente descida da taxa de referência para 16%, já em dezembro de 2025, é vista como um alívio tardio para um setor privado já exausto.

As críticas de Sergey Chemezov -- que apesar de ser a voz mais conhecida não é a única a fazer-se ouvir no Kremlin, segundo a imprensa internacional -- chegam ao Ocidente não por espionagem clandestina, mas por canais surpreendentemente públicos: são divulgadas em discursos no Conselho da Federação, entrevistas estratégicas a meios estrangeiros e o campo de batalha informativo do Telegram, onde a elite russa sinaliza o seu desespero perante o isolamento económico.

O "bunker técnico" e o abismo social

No centro deste furacão está Elvira Nabiullina. A governadora do Banco Central russo mantém uma independência técnica cada vez mais precária, servindo de "para-raios" para as críticas que ninguém ousa dirigir diretamente a Putin.

Enquanto os bancos estatais, como o Sberbank, celebram lucros recorde devido às margens de juro brutais, o cidadão comum vê-se excluído do mercado imobiliário e do consumo, com créditos pessoais a ultrapassarem os 27% ao ano. Desta forma, comprar bens a prestações, como um automóvel ou até um eletrodoméstico é uma virtual impossibilidade para o que resta da classe média.

O "cavalo de Troia" chinês

Perante o corte de laços com o Ocidente, a Rússia entregou-se aos braços de Pequim. A China é hoje o "grande substituto", controlando 62% do mercado automóvel russo e dominando o setor tecnológico.

Mas esta ajuda não é gratuita. A China lucra com descontos energéticos massivos -- comprando gás russo 10% abaixo do preço de mercado -- e utiliza o Yuan para amarrar a soberania financeira russa aos seus interesses. A Rússia, outrora uma superpotência, corre atualmente o risco de se tornar um "parceiro júnior" ou mesmo um estado vassalo da China independentemente de quando a guerra na Ucrânia terminar (e do resultado do seu desfecho).

Mais do que um apoio conjuntural, esta dependência está a tornar-se estrutural e dificilmente reversível. A Rússia destruiu as suas "pontes" com a Europa, perdendo a capacidade de jogar com a concorrência entre clientes. Ao redirecionar toda a sua infraestrutura energética e sistemas de pagamento exclusivamente para o Leste, Moscovo deixou de ser um fornecedor global para se tornar um "fornecedor cativo". Sem acesso a tecnologia ocidental, as normas industriais russas -- do 5G à aviação civil, passando pela IA... -- passarão a ser ditadas por Pequim, garantindo que qualquer futuro crescimento russo ocorra apenas dentro dos parâmetros definidos pelo interesse nacional chinês.

Fissuras e fantasmas do passado

Dentro do Kremlin, fações lideradas por nomes como Dmitry Kozak alertam para o risco de um atraso tecnológico irreversível. Contudo, Putin parece hipnotizado pela sobrevivência imediata.

A comparação com o declínio da União Soviética dos anos 80 é inevitável: os mesmos gastos militares excessivos e a mesma dependência do petróleo. Mas há um fator agravante em 2025: a "hemorragia de cérebros".

Quase um milhão de russos, na sua maioria jovens e especialistas de tecnologia informática, abandonaram o país entre 2022 e o final deste ano, deixando para trás uma estrutura demográfica envelhecida e menos inovadora.

Mesmo perante este cenário, a possibilidade de uma mudança de regime na Rússia permanece bloqueada pelo medo e pelo controlo das agências de segurança. Mas certo é que a erosão é contínua.

Aconteça o que acontecer na Ucrânia, com crescente pressão interna pelo menos do lado económico, com vizinhos cuja ajuda de hoje se transformará amanhã numa potencial ameaça e perante fuga de talentos sem fim à vista, o sonho imperial de Putin afigura-se cada vez mais uma forma de hipotecar qualquer possibilidade de o povo russo viver de forma desenvolvida e feliz.

É difícil não encontrar alguma ironia no evidente paralelismo com o que acabaram por fazer, há pouco mais de um século, os seus compatriotas bolcheviques, ainda que por outros métodos, mas com os mesmos resultados.

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