Carta a Oren Rozenblat, embaixador de Israel

Israel, disse-me Amos Oz em 1992, existe para que nenhuma criança possa voltar a apanhar na escola por ser judia. Como chegámos, desse sonho justo de escorraçados, ao país criminoso para quem só os judeus são humanos?
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É, acredite, com muita tristeza que me dirijo a si neste segundo aniversário do massacre de 7 de Outubro. Suponho que às primeiras linhas deste texto — se sequer o ler — me desqualificará como “amiga de terroristas” ou “antissemita”, como há dois anos fui, pela minha reação ao 7 de Outubro, desqualificada como “sionista” e “cúmplice de genocidas”. Estou habituada, não se preocupe.

Antes de mais, quero dar-lhe os parabéns pela sua invulgar eficiência. Tenho-a apreciado na TV portuguesa, na qual, imperturbável, mantém a narrativa de um Israel justo, impoluto e sempre vítima, defletindo com habilidade as questões mais difíceis. 

Vi-o por exemplo na CNN a evitar fazer qualquer qualificação da atitude do ministro da Segurança Nacional Ben-Gvir quando este foi filmar e invectivar os membros detidos da flotilha humanitária Sumud, chamando-lhes terroristas e apoiantes de assassinos e difundido orgulhosamente o vídeo. Na sua qualidade de governante com a tutela das prisões, foi Gvir que decidiu colocar aquelas pessoas, que não eram suspeitas de cometer qualquer crime (quanto mais violento), num estabelecimento de alta segurança, e foi dele que partiu a ordem — que anunciou noutro vídeo de propaganda — para que os tratassem como terroristas e lhes dessem ‘o mínimo’. 

Disse o senhor embaixador: “O ministro Gvir não é porta-voz do governo de Israel, eu sou.” Assim, segundo Oren Rozenblat, o que diz e faz um ministro não representa nem quer dizer nada. Já o víramos dizer exatamente o mesmo quando o ministro Smotrich anunciou a 18 de setembro, impante, que após “a fase de demolição de Gaza”, havia “um plano de negócios, já nas mãos de Trump”, para transformar o território numa “mina de ouro imobiliária”

Perdoe-me, senhor Rozenblat; são as suas garantias que nada valem. Os vários membros da flotilha já libertados confirmam que as ordens de Gvir foram seguidas: passaram mais de um dia sem comida e água, quem tinha medicamentos ficou sem eles, algemaram-nos horas a fio, foram postos em jaulas ao sol no deserto, transportados sem saber para onde, impossibilitados de fazer sequer um telefonema

Ainda assim houve, no comentariado português, quem perguntasse: “Estavam à espera de quê, de um hotel de 5 estrelas?” Bom, da apregoada “única democracia do Médio Oriente” esperar-se-ia, para começar, que não detivesse pessoas ilegalmente, e que, fazendo-o (enfim), tratasse os detidos com a dignidade que se exige para qualquer detido num país civilizado. Porque — dá ideia de que muita gente desconhece este facto — as exigências mínimas de um Estado de direito democrático determinam que mesmo os detidos em flagrante delito, até os detidos por terrorismo, sejam tratados com dignidade, sendo qualificado como crime qualquer tratamento desumano e degradante a que sejam submetidos. É essa a lei, é esse o standard do direito internacional.

Se não servisse para mais nada, a ação da Sumud teria pelo menos comprovado, a quem não esteja cego de sectarismo e de ódio, o quão Israel se afastou desses conceitos e práticas civilizacionais. Tanto mais quando se sabe, como disse Mariana Mortágua este domingo, que o tratamento de que os ativistas foram alvo é uma pálida amostra daquilo a que as autoridades israelitas se permitem com os detidos palestinianos. 

Porque, convenhamos, senhor Rozenblat, que só quem não lê notícias e nunca ouviu falar dos relatórios das organizações de defesa dos direitos humanos que reportam sobre o seu país — a começar pelas israelitas, como a velhinha B’Tselem —, pode continuar com o estribilho da democracia admirável que Israel é. Só quem não segue o percurso destes 77 anos vê Israel como “um país civilizado”.

A civilização é um processo, um caminho, e não há países perfeitos, longe disso. Israel, como outros (Portugal por exemplo), nasceu de forma particularmente violenta. Não falo do que sucedeu antes da fundação (incluindo terrorismo, e brutal, de organizações judaicas), mas das expulsões em massa e dos massacres documentados da população palestiniana que vivia nas zonas alocadas ao novo país. Ao longo destes quase 80 anos, Israel podia ter reconhecido oficialmente esses crimes e procurado, assim que possível (porque passou muitos anos em guerras sucessivas com os países vizinhos) a via da pacificação. 

Houve, sem dúvida, quem desse passos nesse sentido — e até quem fosse por isso crismado de traidor e assassinado (Yitzhak Rabin). E houve quem, precisamente tendo apelidado Rabin de traidor (Netanyahu) quisesse o inverso: ir o mais longe possível na selvajaria.

É essa escolha da selvajaria que explica que Ben-Gvir faça gala de humilhar detidos que incluem representantes eleitos de nações “amigas”, nações que há décadas se calam ante os desmandos de Israel, que há décadas fingem que não reparam que o país ignora acintosamente todas as deliberações da ONU, continuando a ocupar território palestiniano e a permitir que colonos aterrorizem e matem palestinianos, que as forças armadas israelitas façam tiro ao alvo com jornalistas, que os seus serviços secretos perpetrem homicídios e sequestros noutros países sem dizer água-vai. É essa escolha da selvajaria que explica a sua atitude, senhor embaixador, de nem sequer fingir que está envergonhado pelo tratamento dado por Gvir aos cidadãos portugueses.

É que, justamente, o senhor embaixador, como tantos portugueses que se manifestam nas redes sociais (e até no comentário político), acha que aquelas pessoas, apenas por protestarem contra as ações do seu país, apenas por desafiarem o bloqueio a Gaza, tiveram o que mereciam, ou, quiçá, mereceriam até pior. 

A sua tristeza, senhor Rosenblat, reserva-a para o facto de Portugal ter reconhecido o Estado da Palestina; isso sim vê como trágico. Porque para o seu governo não há, claro, lugar para um Estado de palestinianos — não há sequer lugar para os palestinianos.

E por favor, senhor embaixador, não me diga que tudo se deve ao 7 de Outubro. Antes do 7 de Outubro já Israel cometia barbaridades em catadupa. 

Repare que saber disso não me impediu de achar que após o 7 de Outubro o seu país tinha o direito de se defender, de perseguir o Hamas e demais organizações implicadas, de usar tudo ao seu alcance para tentar recuperar os reféns (cujo regresso a casa aguardo ansiosamente). Mesmo sabendo da natureza do vosso primeiro-ministro, e do seu historial de apoio ao Hamas para enfraquecer a Autoridade Palestiniana e o sonho dos dois estados (sonho que o Hamas, em espelho com Netanyahu, e demais extrema-direita, nunca subscreveu), considerei justo — como não consideraria? — que Israel ripostasse.

Tornou-se porém dolorosamente claro que Israel decidiu usar esse direito com intuitos genocidas, vendo no 7 de Outubro uma oportunidade de solução final, de aniquilar/expulsar os palestinianos e anexar a terra que lhes resta

Contra os pedidos desesperados das famílias dos reféns, bem cientes do que daí adviria, o seu governo não parou, ao longo destes dois anos, de bombardear Gaza, arrasando todo e qualquer edifício. Não parou de matar civis à bomba, à bala, à fome — usando inclusive, como contou no Expresso da Meia-Noite desta sexta-feira o social-democrata Jorge Moreira da Silva, a partir da sua experiência na ONU, os pontos de entrega de comida para fazer tiro ao alvo aos palestinianos

Decerto outro antissemita amigo de terroristas, este Moreira da Silva. Pode lá ser outra coisa, não é, senhor embaixador?  

Peço-lhe paciência, estou quase a terminar. Há 33 anos, quando estive na sua terra (note que digo a sua terra), o escritor Amos Oz contou-me o que na noite de 29 de novembro de 1947, quando a ONU decidiu dividir a terra entre judeus e árabes, o pai lhe disse, a chorar: “Filho, quando tinha a tua idade, na Rússia, apanhava na escola por ser judeu. E o meu pai, e o meu avô. Tu podes apanhar na escola, mas não por seres judeu.” Para Oz, esta era a ideia fundacional de Israel — a de um lugar onde as crianças judias pudessem enfim ser crianças. Onde os judeus pudessem enfim ser pessoas.

É uma ideia magnífica, comovente, justa. Durante muito tempo, esta ideia tão bela, a da determinação de nunca mais sofrer humilhações, de nunca mais perder — porque há isso, não é? —  levou-me a perdoar muito ao seu país. Havia uma admiração em mim pelo lado selvagem que surgira de um povo tão massacrado. Era um pouco a minha culpa de europeia nascida menos de 20 anos depois de Auschwitz, senhor Rozenblat. A minha culpa de saber que tinha sido possível.

Na mesma viagem a Israel, ouvi um homem, num colonato, dizer-me que os palestinianos “são sub-humanos” e que se os filhos dele (eram quase bebés ainda) tivessem de morrer pelo Grande Israel, então morreriam. Pensei na altura que estava a falar com um extremista que não representava o país. Agora, sei, são pessoas como ele — e como o senhor e o seu primeiro-ministro — que mandam em Israel (e em grande parte do mundo, diga-se). Que, malgrado gente magnífica como Amos Oz, e como tantos dos mortos e reféns de 7 de outubro, o seu país se transformou num lugar onde só os judeus são vistos como pessoas inteiras, com todos os direitos do catálogo — e mesmo assim se calhar só se apoiarem o intuito genocida e fascizante do seu governo. 

O seu país, senhor Rozenblat, é agora a perversão mais absoluta da ideia de Oz. Tenho dificuldade em imaginar uma maior traição aos mortos de Auschwitz, a todos os mortos de todos os pogroms antissemitas, a todos os judeus que lutaram, ao longo de uma tão trágica história, contra a crueldade, o racismo e o ódio.

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