"Uma maneira de tentar imaginar a dificuldade de resolução do conflito israelo-palestiniano é observar o tribalismo que causa em pessoas por aqui que não pensavam nele há meses e não sabem bem onde fica Gaza. Se entre estes é assim, imaginem para quem lá vive.".A observação é do politólogo Pedro Magalhães, no Twitter (agora chama-se X, mas para mim será sempre, enquanto durar, o Twitter), às 23.13 de 7 de outubro..Tinham passado muitas horas sobre as primeiras notícias do massacre perpetrado pelo Hamas no sul de Israel e tinham passado poucas horas..Muitas horas porque já víramos imagens terríveis - a jovem mulher nua na caixa da furgoneta, membros torcidos e rosto escondido, talvez morta, talvez ainda viva, sob os pés de homens que a festejavam como peça de caça - e já sabíamos da rave onde miúdos que dançavam ao raiar da manhã tinham sido caçados a tiro e granada como em 2011 o terrorista de extrema-direita antifeminista e anti-islâmico Anders Breivik caçou, metódico, 69 miúdos da juventude trabalhista norueguesa na ilha de Utoya por, segundo ele, serem cúmplices da "grande substituição" (a ideia de que os europeus, que nesta visão são obviamente brancos, e de preferência louros de olhos azuis, estão a ser "substituídos" por gente de outras origens continentais, nomeadamente muçulmanos)..Já sabíamos que várias comunidades, vários kibbutz, tinham sido atacadas e famílias inteiras dizimadas. Já sabíamos que, tendo havido ataque a soldados e quartéis, fora essencialmente um ataque a civis, e que não poupara ninguém - nem idosos, nem crianças, nem bebés. Nem sequer - respirar fundo aqui, porque para qualquer pessoa com o mínimo dos mínimos de quê, coração? (seja isso o que for), isto é o cúmulo da barbaridade, o máximo indizível do ódio - bebés..Mas ainda não se sabia tudo - mais de uma semana depois ainda não se sabe tudo..Porque ainda estão a encontrar corpos e a autopsiá-los e a descobrir as formas inimaginavelmente horrendas como morreram, e como antes de morrerem foram torturados, violados, martirizados. Ainda não se sabe tudo e já se sabe de mais - quem anda na rede Telegram a pesquisar imagens e vídeos dos chamados "first responders" (os primeiros a chegar, o primeiro auxílio) vem de lá a dizer "não vás, não vejas", o oposto do título desse filme extraordinário que é Idi i Smotri/Vem e vê, de Elem Klimov, sobre um adolescente bielorrusso nos horrores da ocupação nazi e dos massacres de mais de 600 aldeias conduzidos pelos alemães no seu ensejo de substituição (aqui a palavra é usada com precisão) e colonização do leste europeu, um adolescente cujo olhar assombrado pelos cumes de maldade e horror desse mergulho nas trevas nos assombra para a vida..As mesmas trevas aqui, o mesmo mergulho no olhar do homem que uma destas noites vi na Sic-N a ser entrevistado no kibbutz Be'eri, um desses "primeiros a responder" que descrevia o que vira e, em lágrimas, dizia: "Não podem ter sido pessoas a fazer isto, têm de ter sido animais ferozes. Só podem ter sido tigres ferozes. Mas os tigres fazem-no para comer. Eles não o fizeram para comer. Não percebo, não consigo perceber. Porquê?".Não há animais tão maus como nós, as pessoas, e devemos por esta altura saber isso, todos, porque existe humanidade há muito e a nossa história é uma infâmia. Há mais massacres horríveis do que aqueles que conseguimos lembrar, mais crueldades deliberadas, degustadas, requintadas - bastar-me-ia ver os instrumentos de tortura reproduzidos numa exposição sobre a inquisição que visitei em Évora, o talento empregado no infligir da máxima dor, a obviedade do prazer sádico de quem atormentava e assistia, para saber da enormidade da maldade humana.."Somos todos maus animais", escreveu a jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho a 13 de outubro no Público, precisamente. Mas o ponto, e a Alexandra, de quem gosto muito e cujo trabalho (muito dele no chamado Médio Oriente) muito admiro, vai-me desculpar, é precisamente que não somos todos maus na mesma medida. Não somos todos maus sequer - aliás há gente que nem parece deste mundo e desta raça, a nossa, de tão boa que é..E sobretudo perante uma dimensão de mal como a do festim de raiva e extermínio do Hamas, esse festim que tão bem Francisco Louçã caracterizou na SIC-N a 14 de outubro como "um ato de selvajaria fundado na ideia de culpa coletiva", sublinhando, em clara resposta a tanta gente que nestes dias tem invocado, imagine-se, Nelson Mandela e as lutas anticoloniais africanas para dizer que o que o Hamas fez se inscreve na mesma tradição e no mesmo nível de violência, que um líder do movimento de libertação das colónias portuguesas como o guineense Amílcar Cabral fez questão de dizer, em 1966: "O povo português é nosso aliado, o nosso inimigo é o governo fascista e colonialista.".Não há culpa coletiva de um povo, repetiu Louçã. Porque uma coisa tão evidente para qualquer não racista, para qualquer não xenófobo, para qualquer defensor, qualquer militante, dos direitos humanos, tem pelos vistos de ser dita e redita..Porque ante as defesas da "legitimidade" da ação genocida - que é matar civis de todas as idades a eito por serem de um país ou apenas estarem ali, como os trabalhadores imigrantes tailandeses chacinados, diz-se, à pazada, senão uma ação que se inscreve na ideia, no desejo, no anseio, de genocídio? - do Hamas que se anotaram estes dias por exemplo no Twitter, vindas ainda por cima de pessoas assumidas como de esquerda antirracista, é preciso repetir o básico..E o básico é que, tal como não existe culpa coletiva dos palestinianos que justifique que lhes seja cortada a eletricidade e a água e o abastecimento de alimentos, que torne legítimo bombardear prédios de habitação e arrasar uma cidade, dando ordem aos civis para sair como puderem para onde puderem como se fossem um rebanho qualquer que em vez de pastar ali fosse para outro pasto, tal como não há um rosto coletivo dos palestinianos, tal como não se pode achar que o Hamas os representa - o Hamas que os oprime, tortura, mata, o Hamas que fez o que fez como fez com o objetivo de provocar a mais violenta e desumana resposta possível de um governo fascista, criminoso e incompetente, uma resposta que vitimize o máximo desse povo tão vitimizado para que nunca haja paz, nunca haja nada senão raiva e ódio e sangue para vingar para todo o sempre, como até aqui -, não há uma culpa coletiva dos israelitas, não há um rosto coletivo dos israelitas. Há pessoas. Há rostos. Há indivíduos. Há crianças, e idosos, e adolescentes, e mulheres e homens e toda a diversidade possível, como aqui..Mas desta semana trouxe, para além de um coração estilhaçado por tanto horror, o horror sucedido, o horror a suceder e o horror que, temo, se sucederá, a conclusão de que para muita gente, incluindo alguma que até considerava, nada há de óbvio na ideia de que não há culpa de povos..Como no bíblico Deuteronómio, sob o comando de um deus inclemente, vingador e exclusivo, um deus dos infernos, não aceitam nem ouvem, não levantam olhos de compaixão. Nem ajudarão a esconder o seu irmão, o filho da sua mãe, a companheira ou o amigo, o vizinho - pelo contrário, as suas mãos serão as primeiras a levantar-se contra eles, como se levantaram em fúria, em insulto e calúnia, como turba linchadora, cega e surda, contra quem consideram não estar do lado certo..É desse fanatismo, exatamente esse, dessa ausência de empatia, dessa incapacidade de pensar, que nascem os massacres, os genocídios, os extermínios. Sabíamos, é sabido, é da história - o que não sabíamos, ou não queríamos acreditar, era que estavam aqui tão perto..A guerra civil na alma de Israel.Voltar a Shani Louk.Netanyahu, o rei da morte