Netanyahu, o rei da morte

Os seus fãs chamam-lhe, desde os anos 1990, "rei de Israel", ou "rei Bibi", em eco messiânico do rei David. Mas o homem que mais tempo governou o país, o autonomeado "protetor de Israel", conduziu-o, impudente e criminosamente, ao seu momento mais negro. Como um rei louco, crê-se apto para o liderar na guerra total para a qual o empurrou - e ninguém, pelos vistos, consegue impedi-lo.
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Este domingo, Benjamin Netanyahu foi filmado a visitar as tropas israelitas que se preparam para a anunciada invasão terrestre de Gaza. Filmado a apertar a mão a jovens - tão jovens, deus - em farda de combate, o primeiro-ministro perguntava: "Prontos para a próxima etapa?" A seguir, fez um discurso às tropas: "Só há uma saída: matar ou morrer".

Matar ou morrer. Eis algo que não soa como saída a ninguém, porque não é, e que este homem nunca deveria ter a coragem, a impudência ou sequer a possibilidade, depois do que fez - depois do desastre a que conduziu o país, depois das mortes horríveis que permitiu, que fomentou, com as suas escolhas, com a sua incompetência e a sua criminosa conduta de apego desmesurado e egótico ao poder, o seu fascismo e o seu racismo repugnantes, a sua metódica destruição da democracia israelita - de dizer aos soldados que se preparam para um assalto que só pode correr muito mal. Porque mesmo que saiam vitoriosos - e o que será tal vitória? - o número de baixas expectável é imenso.

O Hamas não quis, com o ataque bárbaro de 7 de outubro, provocar outra coisa senão essa invasão (ou melhor, quis a invasão tanto quanto os bombardeamentos que matam civis palestinianos indiscriminadamente, porque viram uma opinião pública internacional - sempre, como se tem notado, tão pronta para resvalar para o antissemitismo - contra Israel), o que significa que se preparou bem para ela. E tendo-se preparado bem, como tão bem preparou o 7 de outubro, a possibilidade de que haja surpresas não antecipadas pelos, constatou-se com surpresa, tão incrivelmente pouco eficazes serviços secretos israelitas, é muitíssimo grande.

Israel está então a fazer tudo de acordo com o plano do Hamas, e é impossível que até Netanyahu, o irresponsável, o sem-vergonha, o sangrento, não o saiba. É impossível que o homem que desguarneceu de tropas a zona sul do país, junto a Gaza e ao seu governo de terroristas, para garantir a segurança dos colonatos ilegais, ocupados pelos seus apoiantes de extrema-direita, na Cisjordânia - a ponto de não só permitir um ataque como o de 7 de outubro mas também de não haver, durante horas, socorro para as comunidades martirizadas -, não saiba que está a fazer tudo segundo a cartilha dos atacantes.

É impossível que não o saiba ele e todos os que com ele compõem o governo de crise. Como é impossível compreender que mesmo no seu partido, o Likud, e nos outros que sustentam este executivo, não haja noção de que Netanyahu deveria, como exigiu por exemplo o diplomata Alon Pinkas no diário israelita Haaretz, ter-se demitido há duas semanas - até para os líderes internacionais não terem de passar pelo tormento de assegurar solidariedade a Israel apertando-lhe a mão.

"O país está em guerra", disse-me uma amiga com família judia que execra Bibi ainda mais que eu. "Não pode sair agora". Está em guerra porque a causou, respondi. Está em guerra porque desde sempre lutou contra a paz; porque desde sempre desejou e alimentou o extremismo do Hamas para cortar as pernas à Fatah e à Autoridade Palestiniana (no governo na Cisjordânia, depois de ter perdido as eleições em Gaza para o Hamas, em 2006 - e de nunca mais ter ali havido eleições), que ao contrário do Hamas aceitam falar com Israel e reconhecem a sua existência; porque perante os acordos de Oslo, o momento mais próximo de um acordo pacífico entre israelitas e palestinianos, nada mais fez que atacá-los e ao então primeiro-ministro trabalhista Yitzhak Rabin, que propunha trocar terra por paz, chegando a, em outubro de 1995, discursar a uma multidão onde se viam cartazes com o PM vestido de nazi, e se gritava "morte a Rabin". Um mês depois, este era assassinado por um radical religioso de extrema-direita durante um comício pela paz.

Após o homicídio, Netanyahu disse que não tinha reparado nos cartazes e nos cânticos, mas a viúva de Rabin não perdoou, recusando apertar-lhe a mão no enterro. Tinha aliás sobejos motivos para tal: ainda que o atual primeiro-ministro de Israel não tivesse, como alegou, reparado em nada do que estava à frente do seu nariz, tinha feito tudo o que podia para retratar Rabin como um traidor aos judeus e a Israel.

Vale bem a pena recuperar as suas - de Netanyahu - palavras de há quase 30 anos: "Esta minoria está a arrastar a nação para a beira de um terrível precipício, sem perguntar ao povo, sem ser autorizada por ele, sem sequer procurar obter um mandato para tal. (...) Você, senhor primeiro-ministro, vai ficar na história como o primeiro-ministro que estabeleceu um exército de terroristas palestinianos."

Também vale a pena lembrar o que disse Rabin em resposta aos que o acusavam de traição: "A extrema-direita em Israel celebra o sangue derramado pelos assassinos terroristas do radicalismo islâmico, tentando usar as vítimas israelitas como um instrumento contra o acordo. Os homicidas extremistas da guerra santa islâmica e o Hamas são o instrumento da extrema-direita em Israel."

Poderiam ser ditas hoje, estas palavras - as de Netanyahu a Netanyahu e, claro, as de Rabin a Netanyahu, ainda que o Likud não fosse ainda então o partido de extrema-direita em que se tornou, nem o partido de um PM desde 2019 acusado de corrupção que, seguindo o manual de todos os autocratas, quer colocar os tribunais sob a alçada do poder político.

Um PM que dividiu o país entre os que o apoiam e os que defendem a democracia, ocasionando desde o final de 2022 manifestações massivas contra a alteração do estatuto do Supremo Tribunal no sentido de que este não possa mais fiscalizar a atividade legislativa (como o nosso Tribunal Constitucional, o Supremo israelita pode decidir que leis aprovadas no parlamento não estão de acordo com as "leis básicas do país - Israel não tem constituição - e "chumbá-las"), numa rebelião generalizada que atingiu as forças armadas, com reservistas a recusar-se ao serviço. Uma rebelião de uma tal gravidade e dimensão que o próprio ministro da Defesa, Yoav Gallant, afirmou, em março, estar preocupado com o facto de membros das Forças de Defesa de Israel estarem "zangados e desapontados com uma intensidade como nunca tinha visto", sugerindo uma inflexão na reforma judicial em curso. Em reação, Netanyahu anunciou no dia seguinte a demissão de Gallant; no Twitter, este (que continuou, até hoje, no cargo; o primeiro-ministro decidiu afinal mantê-lo) disse apenas: "A segurança do Estado de Israel sempre foi e será sempre a minha missão na vida".

Menos de seis meses depois, Israel sofria o ataque mais brutal da sua existência - é verdade que foi muitas vezes atacado, e por exércitos variados (desde logo no momento da sua fundação, na noite de 14 de maio de 1948, por uma coligação de países árabes que incluía o Egipto, a Síria, Jordânia e até forças iraquianas; depois em 1967 na "guerra dos seis dias", também por uma coligação de estados árabes, guerra que resultou na ocupação israelita de Gaza, até então possessão egípcia; e há exatamente 50 anos, na chamada guerra do Yom Kippur, quando o Egipto e a Síria atacaram simultaneamente), mas nunca se assistira a um massacre de civis destas dimensões e com tal deliberada crueldade. Nunca tinha havido um pogrom em Israel.

Israel existe, existia, para nunca mais haver pogroms. Como me disse em 1992, numa entrevista no seu escritório cheio de livros numa cave em Arad, o escritor Amos Oz, Israel foi criado para nunca mais uma criança judia apanhar na escola por ser judia. Foi isso, contou-me, que o pai lhe disse na noite de 14 de maio de 1948, depois de nas ruas de Jerusalém, com os rádios no máximo, soarem as palavras que garantiam que os judeus passavam a ter um país: "Filho, podes apanhar na escola, mas não por ser judeu."

"Até hoje, essa é para mim a raison d´être [a razão de ser] do Estado de Israel", concluiu Oz.

Oz já não está para lhe perguntar da imensa mágoa que, sei, sentiria ante o atraiçoar tão brutal da razão de ser do seu país. Mas suponho que, como o deputado árabe israelita Ayman Odeh, ouviria Netanyahu citar, na sua declaração de guerra ao Hamas, um poema do escritor judeu Bialik - "A vingança pelo sangue de uma criança ainda está para ser imaginada por Satanás" - e lembraria, como Odeh fez no New York Times, que antes dessa linha o poeta tinha dito "e amaldiçoado o que grita: Vingança". E na seguinte: "Deixai o sangue encher o abismo / deixai-o atingir as profundidades mais negras."

Estou segura de que Oz, que me garantiu "sou pela paz, mas não sou um pacifista, se é preciso lutar, luto", e estaria disposto a lutar agora, como lutou sempre que necessário, pelo seu país e pelo seu povo, concordaria com o médico palestiniano a quem Odeh conta no NYT ter ligado. Um médico que, malgrado ter perdido vários familiares nos bombardeamentos israelitas das últimas semanas, lhe disse: "A única verdadeira vingança pela morte é conseguir a paz."

E isso é algo que nunca acontecerá com Netanyahu - um PM que, recorde-se, quis aprovar uma lei que impede os primeiros-ministros de serem removidos do cargo por incapacidade - no poder. Com ele, só haverá sangue e morte. Porque é esse o seu reino.

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