Durante dias, faltou-me a voz sempre que tentava falar dela, a miúda de 22 anos seminua sob os pés dos torcionários do Hamas, um deles a segurar-lhe o longo cabelo como a um troféu de caça, enquanto gritavam vitória..Ontem soubemos que estaria já ali morta, que, ao contrário do que a família acreditou, quis acreditar, durante todo este tempo, morreu logo a 7/10, provavelmente no festival de música onde foi apanhada e onde pelo menos 260 outros participantes, como ela na maioria jovens nos vinte anos, como ela muitos pacifistas (a família diz que recusou servir nas forças armadas israelitas), foram mortos. Shani Louk, a germano-israelita em cujas sorridentes fotos de Instagram reconhecemos os dreadlocks e as tatuagens nas pernas do corpo levado pelo Hamas, era um cadáver quando a vimos pela primeira vez..A notícia chega 23 dias depois do massacre de 1400 pessoas pelo Hamas, quando há semanas se discute se o que está a acontecer em Gaza, a horrível mortandade de civis, tantos deles crianças, sob as bombas do contra-ataque israelita, é ou não um genocídio. Chega quando há semanas se assiste a uma coisa extraordinária, que confesso não esperava ver acontecer: a acusação, a quem condena como bárbaro o ataque do Hamas, de que está, ao condenar o massacre, ou sequer ao falar dele, a "justificar o genocídio dos palestinianos"..Já aqui falei (A vossa mão será a primeira, 17 de outubro), da forma como uma parte do campo que se reivindica de esquerda, em Portugal como no resto do mundo, decidiu ignorar, escamotear ou até celebrar o horror do 7 de outubro. E dizer esta coisa extraordinária, quando nem uma semana, quando nem um mês decorreu sobre o dia: "Ainda estás aí?".Peço desculpa mas sim, ainda estou ali. Ainda estou ali, e estarei, por muitas razões - por respeito e dever, porque não se passa à frente sobre um tão absoluto horror, quando ainda nem sequer se sabe tudo sobre o que aconteceu; quando ainda, como o caso de Shani demonstra, não se conhece o destino de todos os desaparecidos nem como morreram todos os mortos; quando há mais de duas centenas de reféns em poder dos mesmos torcionários que procederam à carnificina. E quando, como a pergunta nos prova, tanta gente faz questão de esquecer, de não querer saber, de negar um tão evidente crime contra a humanidade por achar que se o reconhecer está a contribuir para a "justificação" daquilo que vê como o genocídio perpetrado pelos israelitas sobre os palestinianos de Gaza - como se as pessoas que foram mortas a 7 de outubro não existissem como indivíduos, cada uma com a sua individualidade e até nacionalidade concreta (é sabido que nem todos os mortos eram judeus e israelitas), mas apenas numa categoria, a de cidadãos de Israel, e como tal, como alguém disse, "colonos"; e como "colonos", criminosos, usurpadores, herdeiros e colaboradores de um crime sem perdão, o da ocupação da terra dos palestinianos, e assim, concluímos, merecendo o que lhes sucedeu..É como se houvesse duas equipas adversárias: a que vê no 7 de outubro um pogrom selvático, deliberado nessa selvajaria pela determinação de provocar a pior reação possível de Israel (e a pior reação possível de Israel é matar indiscriminadamente a população de Gaza - o resultado que o Hamas desejou, a armadilha que laboriosamente criou), e a que vê no bombardeamento brutal de Gaza, com os seus milhares de vítimas civis, uma mortandade sem justificação possível. É como se não fosse normal, desejável, ético (não uso a palavra "humano"; humanos são, por pertencerem à humanidade, também os que perpetram os crimes mais hediondos) condenar o pogrom do Hamas como as mortes de civis palestinianos sob as bombas de Israel. É como se quem apelida de genocídio a reação militar israelita fosse incapaz de ver que nada há mais claramente genocida no seu intuito que a ação do Hamas no 7 de outubro..Vejamos: esta segunda-feira no Twitter/X a partilha de um texto do historiador britânico de origem judaica Simon Sega Montefiore, publicado na revista The Atlantic a 27 de outubro, no qual aquele tenta demonstrar, como diz o título, que "A narrativa da decolonização é perigosa e falsa" ("não descreve com rigor nem a fundação de Israel nem a tragédia dos palestinianos"), referindo, no início, o ataque do Hamas como semelhante a um raide medieval mongol para carnificina e conquista de troféus humanos, suscitou várias reações no mesmo sentido: o de que falar do ataque do Hamas como algo especialmente horrífico é não valorizar os horrores cometidos pelos israelitas..Isto apesar de Montefiore ser claro na sua condenação da repressão exercida por Israel; contabilizar os palestinianos mortos pelos colonos israelitas (esses sim colonos, por ocuparem ilegalmente a terra palestiniana) na Cisjordânia nos últimos anos; mencionar o facto de cerca de 700 mil palestinianos terem perdido as suas casas devido à criação de Israel e aos conflitos e guerras que se seguiram; e dizer: "Enquanto escrevo isto, o bombardeamento de Gaza está a matar crianças palestinianas todos os dias, e isso é insuportável.".Uma das reações de um tuiteiro à partilha do texto foi especialmente interessante: falou do massacre de refugiados palestinianos em Sabra e Chatila, no Líbano, por milícias libanesas, com o beneplácito do exército israelita, para demonstrar que não é preciso ir buscar os raides medievais mongóis para encontrar um acontecimento igualmente horrífico..O horror de Sabra e Chatila, ocorrido em setembro de 1982, cujas imagens de bebés assassinados e relatos de barbaridade me vieram à memória nos primeiros dias após o 7 de outubro, e cujo número de vítimas parece até hoje incerto - entre as muitas centenas e três milhares -, tem descrições de facto muito semelhantes às que nos vão chegando dos pavores perpetrados pelo Hamas. A violação das mulheres, a mutilação das vítimas em vida (há descrições de castrações de jovens e de corpos escalpados), as crianças executadas das formas mais cruéis. Em fevereiro de 1983, uma comissão independente dirigida pelo então assistente do secretário-geral das Nações Unidas (ONU) concluiu que as forças armadas israelitas, como força ocupante da zona, tinham responsabilidade pelo massacre, e que este constituíra "uma forma de genocídio"..Também a Assembleia Geral da ONU, em votação ocorrida em 16 de dezembro de 1982 (Resolução 37/123, secção D), condenou o massacre, declarando-o, por 123 votos a favor e 22 abstenções, "um ato de genocídio"..Houve países que reputaram essa classificação de inexata, enquanto outros, como a então URSS, demonstraram não ter qualquer dúvida: "A palavra para o que Israel está a fazer em solo libanês é genocídio. O seu propósito é destruir a Palestina como nação.".Se as intenções de Israel como país, e não como governo (referindo o atual e outros), em relação aos palestinianos permitem várias leituras - não esquecer nunca que uma parte muito considerável dos israelitas defende a paz e a solução dos dois estados - ninguém poderá ter dúvidas sobre qual o objetivo do Hamas em relação a Israel: destruição total (do rio ao mar, como se repete nas manifestações, sem se perceber - ou percebendo? - o que se está a dizer)..Quem olha para Sabra e Chatila como um ato de genocídio não pode não ver o 7 de outubro exatamente como tal. E a imagem do corpo de Shani, tratada como troféu de guerra, espólio de caçada, cuspida como representação do povo que se quer arrasar, símbolo exato e insuportável desse que é o mais grave dos crimes contra a humanidade. .Alguém que pergunte a quem a lembra e chora, quem não seja capaz de avançar dali, "ainda estás aí" só prova que não é com crimes contra a humanidade ou atos ou anseios genocidas que se preocupa. Na verdade, quem é capaz de fazer tal pergunta parte da mesma ideia de certo e errado, de nós e eles, que justifica e suscita esses crimes..A vossa mão será a primeira.Netanyahu, o rei da morte.A guerra civil na alma de Israel.E tu, já não condenaste hoje o Hamas?