O PAÍS 'KAMIKAZE'

O lugar fundado para que os judeus possam apanhar na escola por tudo menos por serem judeus, para que os judeus pudessem enfim ter paz, é um lugar feroz. Entrincheirado na determinação de nunca (mais) ser humilhado, de nunca (mais) perder, é um país kamikaze.
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O que é ser judeu? "Essa é uma questão metafísica. Qualquer ser humano que seja maluco o suficiente para se chamar judeu é um judeu." E Israel, o que é? "Para mim, representa uma data: 29 de Novembro de 1947, quando as Nações Unidas decidiram dividir a terra entre israelitas e árabes. Só havia um rádio na zona [Jerusalém]. Eram duas da manhã e estavam 2000 pessoas na rua para ouvir a transmissão, em silêncio. Devia ter visto a alegria. Não era o Carnaval do Rio. As pessoas choravam como crianças. As lojas abriram-se, distribuíram-se bebidas. Às quatro da manhã, o meu pai meteu-me na cama e deitou-se ao meu lado. Percebi que ele estava a chorar. E disse-me: 'Filho, quando tinha a tua idade, na Rússia, apanhava na escola por ser judeu. E o meu pai, e o meu avô. Tu podes apanhar na escola, mas não por seres judeu.' Até hoje, estas palavras são para mim a raison d'être de Israel."

O judeu israelita do parágrafo acima é o escritor Amos Oz. A conversa teve lugar 1992, na cave cheia de livros da sua casa de Arad. Oz disse-me muito mais - sobre Israel ("Grandes esperanças é a alcunha do Estado de Israel") -, sobre os palestinianos ("O primeiro passo é reconhecer que o outro é quem ele pensa que é. É irrelevante dizer que os palestinianos não eram uma nação há 100 anos. Não eram. Ou que foi Israel que os fez pensar em si próprios como tal. Não vamos pedir-lhes direitos de autor") e sobre o que pensava dever ser feito ("Os colonatos não deviam nunca ter sido construídos. E devem parar agora. No caso de Gaza, se eu fosse o primeiro-ministro de Israel, saía já de lá e entregava a zona à ONU. Não temos nada que fazer ali" ).

Muito aconteceu desde essa conversa: o governo de Israel falou com Arafat (em 1992 isso ainda não sucedera); Rabin foi eleito; Rabin foi assassinado (1995); Barak fez (em 2000) a melhor de todas as propostas até agora feitas a Arafat e ele recusou; Arafat morreu; o Hamas tomou conta de Gaza; aconteceu a Al-Qaeda e o 11 de Setembro. E Israel fez 60 anos - ontem. Está tudo diferente mas está, mais ou menos, tudo na mesma.

Nunca mais voltei a Israel - porque não se proporcionou, mas também porque me deixou o travo de um dos lugares mais amargos da terra, pela sua confluência de ódios e proclamações de direito divino, um lugar preso de uma esquizofrenia talvez incurável, dividido entre a sua condição de refúgio dos excluídos e de nação guerreira. Este lugar fundado para que os judeus possam apanhar na escola por tudo menos por serem judeus, este lugar fundado para que os judeus pudessem enfim ter paz, é um lugar feroz. Entrincheirado na determinação de nunca (mais) ser humilhado, de nunca (mais) perder, é um país kamikaze. Tão bem definido no gesto do soldado adolescente que, na viagem de autocarro entre Jerusalém e Arad, se sentou ao meu lado e pousou a metralhadora sobre as nossas pernas, as minhas e as dele, sem um pedido de licença ou de desculpa. Um gesto que diz: estás aqui, e seja qual for a tua opinião fazes parte disto; mas também um gesto que diz: seja qual for a tua opinião, estou aqui para te defender e morrer por ti - e contigo. Um país insolente e selvagem, sim, mas magnífico. Brutal - mas com um Amos Oz. Tão bipolar que faz bipolar do nosso olhar.

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