A equipa Biden

As recentes nomeações para o núcleo duro de Joe Biden não causam surpresa. São experientes, competentes e representativos das tendências que estão a marcar a política externa americana. Mas é preciso ir um pouco mais fundo e tentar perceber que condições existem para transformar qualidade em eficácia.
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A transição demora, mas vai-se fazendo. Há dias, Joe Biden apresentou a sua equipa de Política Externa e Segurança Nacional, o segredo mais mal guardado em Washington. Longas lealdades ao presidente eleito, muita experiência acumulada em altos cargos de anteriores administrações, conhecimento dos departamentos, participação em crises passadas e em importantes decisões, representatividade de género e etnia e sinais emitidos para fora: competência, previsibilidade, entrosamento, qualidade diplomática. Quatro atributos caídos em desgraça nos últimos quatro anos, com efeitos na descapitalização e desmotivação departamental, a começar no Departamento de Estado e a acabar na Casa Branca, no apagamento da memória histórica na consolidação das decisões e no caótico entra e sai de posições-chave sem critérios mínimos de aptidão para as funções desempenhadas, um rodopio de nomeações voluntaristas e embaraçosas para os pergaminhos da Casa Branca.

Esta é a leitura mais ampla e comparativa que se pode fazer a quente. No entanto, parece-me curto ficarmos por aqui. Proponho olhar com mais detalhe para quatro das recentes nomeações. Primeiro, Anthony Blinken, o mais que previsível secretário de Estado. Diplomata de carreira, trabalha há vinte anos com Biden (Senado e Casa Branca), foi número dois de John Kerry no Foggy Bottom e de Obama no Conselho de Segurança Nacional. É um firme defensor das alianças com Europa e Ásia, mas também da intervenção na Líbia, do apoio militar às milícias sírias e de sanções económicas à oligarquia ucraniana e russa. É, se quisermos, uma síntese do internacionalismo liberal do establishment americano: ponderado, multilateralista, confortável com uso da força por razões morais.

Se as duas primeiras qualidades são muito bem-vindas, já a terceira dificilmente encontra conforto no ambiente de fadiga militar que as duas últimas décadas provocaram. Além disso, ambos os partidos no Congresso estão hoje mais vinculados a fortes restrições no empenhamento militar, com a ala esquerda democrata a exigir cortes profundos no orçamento do Pentágono e os republicanos alinhados com umbiguismo trumpiano. Ou seja, também Blinken vai ter de se adaptar a 2021 e assumir que não é, de todo, igual a 2001, 2009 ou mesmo a 2016. É, sobretudo, menos democrático e menos cooperativo.

Ora, isto exige mais das três outras nomeações: conselheiro de Segurança Nacional, entregue a Jake Sullivan; embaixadora na ONU, assumida por Linda Thomas-Greenfield; e chefe de gabinete do presidente Biden, nas mãos de Ron Klain. Sullivan trabalhou com Hillary Clinton no Departamento de Estado e com Biden na vice-presidência, tendo estado envolvido na formulação da estratégia do pivô para a Ásia e nas negociações para o acordo com o Irão. Nos últimos anos tem escrito sobre a relação entre a política externa e interna, os limites da globalização desregulada e a forma de lidar com o poder da China. Desde as primárias democratas, estabeleceu pontes com as equipas de segurança nacional de Elizabeth Warren e Bernie Sanders, sendo de todas as nomeações conhecidas aquele que mais tem tentado acomodar as sensibilidades do partido.

O cargo não precisa da aprovação no Senado (assumindo que os republicanos mantêm uma maioria curta), o que lhe dá esta margem de manobra. O que é mais relevante sublinhar é que o contexto pode obrigar a mudar a função, tal como a estrutura do Conselho de Segurança Nacional, entrosando de forma mais nítida fatores securitários, comerciais, sanitários, climáticos e diplomáticos numa mesma estratégia nacional. E é assim que deve ser, em Washington ou em Lisboa: ultrapassar a dicotomia entre o interno e o externo e ser capaz de produzir pensamento estratégico de curto, médio e longo prazos que defenda o interesse nacional e o interesse das alianças, e melhore substancialmente a cadeia de decisões em tempos de relativa normalidade ou de crise inusitada.

É aqui que o sinal dado para a ONU tem relevância. Greenfield é uma diplomata veterana com muita experiência em África mas também no topo político do Departamento de Estado. Pela primeira vez, terá lugar formal no núcleo duro do presidente americano, o que significa que Biden quis dotar o regresso à agenda multilateral com o máximo músculo possível, um passo fundamental para restaurar alguma cooperação num bloqueado Conselho de Segurança, e refazer a partir do topo a centralidade da OMS na fase da pandemia que se cruzará com a vacinação a uma escala global. António Guterres deve, certamente, ser o primeiro a estar agradecido.

Para que a coordenação administrativa e política ultrapasse rapidamente as feridas deixadas pelo caos dos últimos anos, é preciso que o cargo de chefe de gabinete do presidente tenha experiência acumulada e um sentido apurado da comunicação. Ron Klain chefiou as equipas de Al Gore e Joe Biden nas respetivas vice-presidências, o que simultaneamente lhe deu a tarimba necessária de Casa Branca, junto de duas figuras próximas dos respetivos presidentes (Bill Clinton e Barack Obama), sem o desgaste da função presidencial. A sua escolha é, aliás, uma forma de o motivar a fazer melhor numa posição-chave que nunca ocupou, num momento de afirmação de uma agenda holística em contexto crítico, e de imperativa reemergência da liturgia política na narrativa presidencial, face ao nível apresentado por Trump, mas também perante a hiperpolarização que se vive, sendo Klain um dos estrategas comunicacionais mais conhecidos em Washington. Tal como acontece com Jack Sullivan, a nomeação de Ron Klain não carece de aprovação pelo Senado.

Os nomes apresentados nesta semana mostram, ainda, duas necessidades fundamentais, para além da experiência profissional nos respetivos departamentos da administração. Por um lado, mostra aos adversários externos que a transição deu total prioridade à segurança nacional, num momento em que as suas vulnerabilidades podem ficar expostas pela irresponsabilidade política do ainda presidente Trump em bloquear a alocação de recursos e a informação classificada ao presidente eleito. Por outro, revela uma equipa mais aprovável nas indispensáveis audições do Senado do que se fosse pautada por extrema novidade ou alinhamento com a ala esquerda democrata. Será também nesses momentos que Biden perceberá com que senadores republicanos pode negociar daí em diante. Mas para fazê-lo de forma mais constante do que intermitente, evitando ficar refém de bloqueios financeiros e políticos nesta altura, terá de conseguir dar alguma coisa em troca desde já. Uma cartada que será a forma de lidar com a China, o tema internacional mais presente na política interna. Mas, sobre isso, conversaremos para a semana.

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