"Salazar reconheceu ser preciso a propaganda cinematográfica como faziam Hitler e Mussolini"
Em mais de quatrocentas páginas, Maria do Carmo Piçarra refaz grande parte da história do cinema português do século passado. Uma narrativa que se se fixa principalmente entre os anos 1935 e 1954, quando a propaganda salazarista se apropria da forte influência das imagens em movimento e sonoras sobre a sociedade e cria o Cinema do Povo, levando a terras que nunca tinham assistido à magia do cinema a mensagem do regime através de veículos equipados para a projeção dos filmes e com os quais se pretendia modelar em muito a opinião nacional.
Após terminar o livro Projectar a Ordem, a investigadora confirmou "a noção de que o cinema é um dispositivo muito poderoso". Um levantamento que a convenceu de que o cinema "teve um papel importante na definição de um imaginário" e "numa certa conceção do modo como os portugueses se pensam e definem em termos de representações identitárias e de memórias coletivas".
A sua investigação autoriza a seguinte conclusão: o nascimento do cinema português deve-se à necessidade de projetar os feitos do Estado Novo ou de outra forma só se estabeleceria enquanto atividade continuada muito mais tarde?
O nascimento do cinema português é, felizmente, anterior ao Estado Novo. O esforço para fazer filmes portugueses da Invicta Film, durante os anos 1920, é extraordinário e até recorre a realizadores estrangeiros para fazer o que Tiago Baptista chamou "filmes tipicamente portugueses". No que o Estado Novo é pioneiro, através da "política do espírito" de António Ferro, é no esforço de instrumentalizar o cinema para propagandear a ideologia.
Com que objetivos?
Principalmente, incluiu doutrinação anticomunista e a apologia do corporativismo, bem como uma ideia de portugalidade desenhada por António Ferro. Neste contexto, realizadores talentosos, como Leitão de Barros, assinam obras de cinema português. No entanto, quando se cria o Fundo do Cinema Nacional, em 1948 - e note-se a morosidade do processo, dado que o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) foi criado em 1933 -, não é porque lhe esteja subjacente uma política pensada para estimular a produção de cinema. Legisla-se, isso sim, sobre a dotação de meios de financiamento para uma produção cinematográfica nacionalista. Não há espaço para uma produção que não seja nacionalista, segundo a definição que a lei do cinema estabelece. O cinema português, se existe antes e persiste durante o Estado Novo - o caso de Manoel de Oliveira é sintomático, mas não é único -, desenvolve-se, neste período, sobretudo por iniciativa particular, e mais tarde, com o novo cinema, para o que muito contribuem os cineclubes que emergem na década de 1950.
Interessava a António Ferro, além de criar um tipo de divulgação cinematográfica propagandística, também o desenvolvimento dessa arte?
Ferro era um cinéfilo que assinou textos sobre atrizes do mudo, e clamou por rubricas de atualidades que, com alegria, mostrassem a vida em Portugal. Quando se torna o homem da propaganda, não obtém de Salazar todos os meios para implementar no cinema a "política do espírito" que concebeu. Se isso fragilizou, frequentemente, a eficácia dos dispositivos criados, teve ainda mais impacto quanto à conceção de medidas para o desenvolvimento do cinema. A documentação na Torre do Tombo revela que Ferro estava concentrado na instrumentalização do cinema e não no seu desenvolvimento.
Mas foi um impulso fundamental?
É certo que admirava Leitão de Barros, cuja obra considerou referencial para a produção nacionalista a implementar. Porém, ele e António Lopes Ribeiro, que se alinhou para ser o cineasta da propaganda, consideravam o cinema soviético modelar, porque punha a forma, modernista, ao serviço da ideologia. O grande interessado no desenvolvimento da produção é Lopes Ribeiro através de pareceres para Ferro - é dele, por exemplo, o parecer para não autorizar a dobragem e também luta por isso como editor de revistas de cinema e produtor. No início da Segunda Guerra Mundial, com os estúdios europeus parados, estimula a produção contínua de cinema e é nesse quadro que surgem as "comédias à portuguesa" que Ferro considera num discurso o "cancro do cinema nacional". Camões, de Leitão de Barros, que representou Portugal no primeiro Festival de Cannes, era o modelo de filme, de recorte histórico ou literário, que Ferro pretendia. Havia em Ferro um desejo de que o cinema português apostasse na qualidade artística e não num modelo comercial enquanto Lopes Ribeiro procurou articular ambos, ou não fosse ele o produtor da primeira ficção de Oliveira, Aniki-Bóbó. A questão é que teria de estar integralmente subordinado à ideologia e propósitos do regime, daí que a produção feita se abstraia da realidade sociocultural do país.
Políticos, como Salazar, consideraram esta forma de expressão útil ou servia apenas aos interesses da "nação"?
O SPN estava subordinado à Presidência do Conselho e dela dependia orçamentalmente. Mesmo quando Ferro é mais influente - o final da guerra e a demarcação do regime por muitos artistas, que ele prometera arregimentar para o "combate pela nação" através da cultura, determinam que perca poder -, não lhe foi fácil conseguir que Salazar concedesse os meios necessários para implementar em grande escala a instrumentalização do cinema. Há, porém, uma época - desde a criação do SPN ao fim da guerra, quando Salazar se torna a figura incontestável do Estado Novo, por ter mantido a suposta neutralidade - em que Salazar reconheceu ser preciso recorrer à propaganda cinematográfica, entre outras, como faziam Hitler e Mussolini. Para isso, dá meios - menores daqueles de que são dotados aos ministérios da propaganda nazi ou fascista - a Ferro para investir na produção de cinema de propaganda direta ao regime e para criar um dispositivo como o Cinema Ambulante do SPN/SNI.
E obtém resultados?
Numa primeira fase, o próprio Secretariado produz documentários e atualidades de propaganda. Progressivamente, atribui a produção a empresas mas orienta-a ideologicamente. O escasso êxito de público e de crítica das obras documentais e ficcionais de propaganda - como A Revolução de Maio (1938) e Feitiço do Império (1940), realizados por Lopes Ribeiro - determina um recuo na dotação orçamental para a produção de filmes. A partir de 1948, com a criação do Fundo do Cinema, cria-se a lógica de atribuição de empréstimos e subsídios à produção de filmes nacionalistas. Além de haver um júri que avalia o interesse dos projetos e se observa o "portuguesismo" desejado, há um acompanhamento permanente, por alguém ligado ao Secretariado, da produção dos filmes. Até obras como Chaimite, assumidamente nacionalistas, foram controladas e objeto de censura prévia. À medida que o regime se afirma - Hannah Arendt analisa muito bem como os sistemas de características totalitárias deixam de precisar de fazer propaganda quando o terror está instalado -, a propaganda cinematográfica explícita recua e o regime passa sobretudo a censurar os olhares disruptivos que surgem no Novo Cinema.
A doutrinação era o principal objetivo deste projeto entre 1935 e 1954 ou alguma vez perdeu um pouco desse contorno?
Manteve-se o principal objetivo, mas a atividade do Cinema do Povo foi permeável a mudanças, ideológicas e de foco, ocorridas. Se até 1943 a propaganda anticomunista e a promoção das Casas do Povo é central, e se mostram sobretudo filmes de sustentação da ordem e filmes, documentais e de ficção, de propaganda explícita ao Estado Novo e ao franquismo, com a vitória aliada em perspetiva, na guerra, há um aligeiramento na programação do Cinema Ambulante do SPN/SNI. As "comédias à portuguesa" ou "filmes regionais" são articulados, na programação feita por Félix Ribeiro, futuro diretor da Cinemateca e, durante anos, autor de referência da história do cinema português, com as atualidades e documentários de propaganda. Mantêm-se, porém, as sessões de doutrinação, pelos responsáveis da União Nacional, Legião Portuguesa, das Casas do Povo, pelos padres, professores e figuras notáveis das localidades visitadas.
Toda a realidade nacional é tida em conta?
Com a emergência da questão da "Índia portuguesa", cresce a questionação relativa à posse de colónias e é criado um Cinema Ambulante de propaganda em Moçambique e Angola. Entretanto, em Portugal, os equipamentos do Cinema Ambulante do Secretariado vão envelhecendo e avariando constantemente - não obstante a popularidade das sessões nos locais recônditos onde raramente há oportunidade para ver cinema. Já sem Ferro, o Secretariado não valoriza, ou não logra convencer Salazar, o dispositivo. Este é usado cada vez mais para mostrar os filmes da Campanha para Alfabetização de Adultos, que não inclui obras pedagógicas e antes ridiculariza, através do protagonista interpretado por Vasco Santana, quem não sabe ler. A televisão está então prestes a iniciar as emissões e tornar-se-á o grande veículo de doutrinação.
Recorda o papel do cinema na ascensão da ideologia nazi. Qual o paralelo com Portugal?
O cinema nazi não incluiu só as obras esteticamente cuidadas e de propaganda de Leni Riefenstahl mas, como na Itália fascista, integra comédias de sustentação da ordem, além de filmes nacionalistas. Essa atitude foi modelar para o SPN em termos temáticos e enquanto cinema de propagação da ideia de Estado forte no que se refere ao recurso ao Cinema Ambulante para levar filmes doutrinários aos locais remotos, sem eletricidade, onde as pessoas nunca tinham visto cinema.
Existiam filmes em quantidade?
Quando o Cinema do Povo inicia as sessões em Lisboa, em 1935, o subsecretário da Propaganda escreve ao embaixador alemão para lhe pedir filmes que promovam a ideia de que as nações precisam de regimes e estados fortes a controlar a vida dos indivíduos. Há produção documental relativa às viagens presidenciais às colónias ou da inauguração do Estádio Nacional, visualmente inspirada em filmes de Riefenstahl. Veja-se o enredo de A Revolução de Maio, cujo guião foi assinado, sob pseudónimo, por Ferro e Lopes Ribeiro, que tem claras afinidades com o de O Filho Pródigo, realizado por Luis Trenker, um dos cineastas favoritos do regime nazi. Não só o enredo foi uma inspiração como o SPN escreveu para Berlim, tentando contratar, para a direção de fotografia, algum dos seus operadores.
Assinala o esforço para criar uma produção ibérica. Interessava a Franco ou apenas à incipiente produção de cinema português?
Durante a Guerra Civil espanhola, com os estúdios de cinema quase todos em território republicano, há a necessidade de recorrer aos portugueses para revelar filmes de propaganda "revoltosa". Inicia-se a irmandade ibérica no cinema, que extravasou a afinidade ideológica entre regimes. O mercado espanhol de exibição, com cerca de duas mil salas, era apetecido pelos portugueses. Quando Jean Renoir, de passagem por Lisboa, menciona a crença na possibilidade de afirmação do cinema latino, e quando Garcia Viñolas, o chefe do cinema espanhol, contrapropõe o interesse do cinema ibérico para abordar o mercado ibero-americano, isso é bem recebido por Lopes Ribeiro. Enquanto se esforça por manter a produção contínua, faz campanha de opinião e procura convencer Ferro - para que este convença Salazar - que é um projeto capaz de sustentar uma potencial indústria de cinema. Porém, o mercado em Espanha é fortemente protegido e, apesar da exportação de vedetas de cinema para Espanha e de algumas coproduções, nunca se logrou firmar um acordo quanto à produção ibérica de filmes ou que se garantissem condições vantajosas para a exibição de filmes portugueses em Espanha.
Refere que os camponeses eram surpreendidos e muitas vezes ficavam aterrorizados pelas sessões ambulantes de cinema sonoro. Era uma reação unicamente rural e nacional?
O início do espetáculo de cinema é marcado pela surpresa provocada pela imagem em movimento. Todas as audiências foram tomadas pelo fascínio e pelo temor que o cinema provocou na origem. Porém, em Portugal, onde a eletrificação decorreu tarde e lentamente, avançando em paralelo com o advento do cinema sonoro, as audiências foram naturalmente tomadas de espanto, às vezes terror, pela novidade tecnológica. O regime estava ciente do poder do cinema sonoro, e instruía os governadores civis, que definiam os itinerários, que o Cinema do Povo deveria visitar locais em que não tivesse havido sessões de cinema sonoro. Na década de 1940, o cinema do SPN/SNI continua a ser exibido em locais onde o público vê, pela primeira vez, cinema sonoro. Atendendo à iliteracia no país, à importância da Igreja e à doutrinação que era feita durante as sessões, certamente que o impacto destas era grande.
Qual foi a sua reação ao ver a gigantesca adesão do público ao cinema como está registado numa fotografia do Cinema do Povo na Mouraria?
Foi, das imagens no livro, a primeira que vi. Impressionou-me o fascínio inscrito nas caras de um público popular, pouco familiarizado, à data, com o novo espetáculo. Certamente que o próprio dispositivo era impressionante e tinha impacto nos sentidos de pessoas despreparadas, emocional e fisicamente - porque o cinema também é uma experiência física -, para ver filmes, para mais de propaganda. Aliás, foi devido às imagens que fiz pesquisa e escrevi o livro. Creio que o cinema projetado em bairros populares e nas zonas rurais - acompanhado por sessões de doutrinação anticomunista e corporativista - teve um papel na sedimentação de um imaginário e mesmo do "medo de existir", identificado por José Gil.
Não se esqueceu de registar o texto de Bénard da Costa intitulado "O cinema português nunca existiu". Não poderia ignorar esta opinião?
Bénard da Costa afirmou isso tomando como referência a provocação de Eduardo Lourenço quando escreveu "o fascismo nunca existiu". Apesar de ser tão escassa a produção de cinema português, existiu sempre um cinema português, afirma. Esse cinema não é o cinema nacional desejado pelo Estado Novo. É, sim, um cinema que, não obstante a orientação ideológica e os condicionamentos, é ancorado na realidade portuguesa.
Se tivesse de eleger um dos muitos filmes que passam pelas páginas do livro qual seria?
Aniki-Bóbó. O lançamento do meu livro foi complementado pela exibição do filme na esplanada da Cinemateca. Recriou-se uma sessão de Cinema do Povo - em 1943, este filme circulou pelo país com a atualidade Manifestação a Salazar pela Paz Portuguesa, tendo sido visto por cerca de 150 mil pessoas - que se apresentava, em geral, ao ar livre. A noite arrefeceu muito e foi espantoso a esplanada cheia com um público muito jovem suspenso no filme. Imagine-se como foi visto nas aldeias isoladas do país por pessoas que nunca ou raramente tinham visto um filme. Aniki foi projetado em fase de viragem da programação, quando se passa a mostrar filmes que falem ao coração do público, articulando a sua exibição com a apresentação dos documentários de propaganda direta. O poder do dispositivo está, então, no seu apogeu.
Após terminar este livro mudou em si o modo como passou a ver o cinema?
Esta investigação mudou o meu conhecimento sobre a história do cinema em Portugal. Durante anos, Félix Ribeiro - programador do Cinema do Povo e diretor da Cinemateca - foi uma referência bibliográfica incontornável. A seletividade com que contou esta história já era evidente. Este livro contribui para questionar uma certa história do cinema, atualmente a ser refeita por uma nova geração de investigadores, com base em entrevistas e também em documentação existente em arquivos.
Em tempos de covid, não posso deixar de perguntar: o cinema em sala vai sobreviver ao confinamento?
Enquanto houver cinefilia, sobreviverá. Os cineclubes (e festivais) adaptam-se e lutam por isso, a par de salas como o Ideal, em Lisboa. Se, hoje, somos todos autores, críticos e programadores em potência, o certo é que o cinema só existe se for projetado. É sua essência a experiência de visionamento, partilhada em grande ecrã e espaço público. Precisaremos sempre de programação feita com conhecimento e diferenciadora, capaz de promover debate sobre os filmes em espaço público.
Edição de Os Pássaros
420 páginas, com ilustrações e fotografias