"Os meus filhos são hindus, portugueses e até rezam a ave-maria"

Entrevista a Kirit Bachu, presidente da Comunidade Hindu de Portugal, e a Hiral Shah, responsável do Templo Radha Krishna, sobre uma comunidade com alguns milhares de membros que se sente portuguesa (até fazem peregrinação a Fátima) mas sem perder a ligação à Índia dos bisavós e trisavós.
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Quantos anos é que tem este templo hindu, o principal de Lisboa?
Kirit Bachu - Este templo foi inaugurado em 1998 pelo Presidente Jorge Sampaio.

Foi uma iniciativa da Comunidade Hindu de Portugal?
K.B. - Da Comunidade Hindu de Portugal através das pessoas de Moçambique que fundaram a comunidade.

Na fundação da comunidade estão sobretudo pessoas oriundas do Gujarat, na Índia, mas que tiveram uma passagem de várias gerações em Moçambique?
K.B. - Sim, pessoas que de Moçambique vieram para Portugal, onde recomeçaram as suas vidas após a independência de Moçambique.

É um pouco a sua história pessoal também, não é?
K.B. - Exatamente.

O Kirit Bachu nasceu em Moçambique quando?
K.B. - Eu nasci em Moçambique em 1952.

Os seus pais tinham nascido ainda no Gujarat?
Os meus pais nasceram também em Moçambique. Aliás, o meu pai nasceu em Moçambique e a minha mãe na África do Sul, a comunidade estava muito presente na região, também no atual Zimbabwe.

Então é preciso remontar aos seus avós para encontrar a Índia, é isso?
K.B. - Exatamente.

Sei que estudou na Índia, mas não era assim em todos os casos de hindus, pois não ?
K.B. - Eu estudei na Índia, mas os meus irmãos não, eles estudaram em Moçambique. Dependia.

Mas ainda havia certa tradição de enviar as crianças para estudarem na Índia?
K.B. - Os meus pais queriam que os filhos tivessem estudos superiores e em Moçambique não havia, por isso mandaram-me para a Índia.

Mas sempre foi cidadão português e até fez tropa portuguesa, não foi?
K.B. - Sem dúvida. Em Moçambique ainda, em 1973.

Ainda apanhou a Guerra Colonial?
K.B. - Sim, mas depois apanhei logo o 25 de Abril, foi uma sorte!

A sua família ainda ficou algum tempo em Moçambique a seguir à independência?
K.B. - Nós ficámos ainda uns seis ou sete anos após a independência para ver se aquilo melhorava, se íamos ter uma melhor educação, mas na altura os tempos eram difíceis para Moçambique, havia dificuldades. Havia várias dificuldades e limitações, tanto nos estudos como a todos os níveis. Assim, optámos por emigrar para Portugal.

Em 1980.
K.B. - Sim. E porquê Portugal? Era a nossa língua, a maior parte de nós só falava português, e foi mais fácil vir para Portugal em vez de ir para outros países.

Hiral Shah, o seu caso é um pouco diferente - neste momento é responsável pelo templo, é também da comunidade gujarati, é hindu, mas nasceu na Índia. Com que idade veio para Portugal?
Hiral Shah - Com 20 anos. Já vim casada. Foi um casamento grande com 5000 pessoas [risos].

Esses casamentos grandes são uma regra da comunidade?
H.S. - Não é bem uma regra. Tenho uma família grande e conheço toda a gente, então as pessoas esperam ser convidadas, e não podemos escapar [risos]. É a única oportunidade em que podemos chamar toda a gente e celebrar em conjunto.

O seu marido é português. Como é que foi a sua adaptação a Portugal?
H.S. - No início foi difícil. A língua é a base principal para entrar numa comunidade. Sem conhecer a língua não dá para fazer nada e ficamos dependentes dos outros. Como lá na minha terra era independente e fazia tudo sozinha, e aqui era tudo novo, foi difícil.

Na Índia era professora?
H.S. - Sim, era professora.

E aqui foi trabalhar para uma loja da família?
H.S. - Sim, era o negócio da família, eu ajudava e simultaneamente aprendi a língua também.

E aprendeu muito bem. Ao fim de quanto tempo é que se começou a sentir à-vontade com a língua?
H.S. - Ao fim de seis, oito meses. A primeira coisa que fiz foi tirar a carta de condução, que era o principal.

Sentiu também uma grande diferença na adaptação enquanto sociedade? Estamos a falar de países tão diferentes, a Índia e Portugal...
H.S. - Sim, foi totalmente diferente. Era uma coisa muito grande, integrar-me dentro da comunidade onde quase não conhecia ninguém. Naquele tempo também era nova...

A primeira integração é na comunidade em Portugal, e depois, com os outros portugueses, foi pouco a pouco?
H.S. - Aí nunca houve problema. Como estive sempre ao balcão, tinha aquele jeito para falar com as pessoas.

Tem filhos nascidos já em Portugal?
H.S. - Sim, sou mãe de três filhos. O mais velho tem 21 anos e está no 4.º ano de Medicina, o do meio tem 16 anos e está no 11.º ano, e o mais novo está no 5.º ano.

Kirit Bachu, este exemplo familiar é representativo, ou seja, a comunidade mantém muitas das ligações ainda com a Índia; a comunidade é muito de empresários, comerciantes, mas agora, a nova geração estuda sobretudo?
K.B. - A nova geração já estuda e estuda basicamente nas técnicas, na Medicina, gostam de seguir uma carreira.

No seu caso, tem três filhas já adultas. Elas também estudaram?
K.B. - Exato. Estudaram cá. Uma tirou Psicologia, outra Economia e a mais nova tirou o curso de Educação e depois virou para Marketing. As três estão bem.

No fundo, na nova geração de portugueses hindus já não é o comércio que é a vida deles, têm outro tipo de profissões, liberais ou para grandes empresas...
K.B. - Pois, eles já não querem continuar muito ligados à empresa familiar.

E a ligação da nova geração à comunidade?
K.B. -Têm uma certa ligação. A comunidade é a única fonte de religião que nós temos aqui em Portugal, o templo hindu que temos em Portugal é um dos maiores templos da Europa. Nós aqui não temos só religião, temos cultura, e além da cultura temos aqui convívios, dança... temos inúmeras atividades.

A comunidade ainda casa muito entre si?
K.B. - É uma opção. Geralmente optam por casar entre si porque há várias razões para isso. Uma das maiores razões é a nossa dieta vegetariana.

Os gujaratis são essencialmente vegetarianos?
K.B. - Exatamente.

Não comem sequer ovos?
K.B. - As crianças já optam por ovos, mas a maioria de nós não come.

Os laticínios também fazem parte?
K.B. - Os laticínios fazem parte da nossa dieta.

Vocês têm muita fama por terem aqui junto ao Templo Radha Krishna, em Lisboa, uma cantina vegetariana aberta a toda a gente.
K.B. - É verdade, esta cantina é conhecida como a joia da Comunidade Hindu de Portugal. É muitíssimo conhecida em todo o lado e é a única cantina que serve este tipo de refeição.

As suas filhas ainda falam gujarati?
K.B. - As minhas filhas falam gujarati, mas duvido que elas saibam escrever...

Os netos já não?
K.B. - Os netos, já é mais complicado.

E os seus filhos, Hiral Shah, falam gujarati?
H.S. - Os mais velhos falam, o terceiro ainda está a aprender.

Faz questão de que eles aprendam a língua?
H.S. - Sim, quero que aprendam porque é uma ligação para estarem em contacto com os avós, para estarem em contacto com a minha terra, e para falarem com os familiares é essencial saberem a língua.

Como é que eles se sentem? Divididos entre serem portugueses e indianos ou já se sentem completamente portugueses?
H.S. - Acho que isto aqui, Portugal, é muito importante para eles. Os meus filhos andaram a estudar numa escola católica, eles acreditam muito na Opus Dei.

Eles são hindus, mas andam numa escola ligada à Opus Dei?
H.S. - Exatamente. Eles vão à igreja, a própria escola tem igreja onde eles vão rezar a ave-maria e nós não impedimos nada disto, porque é bom explorar outras religiões.

O hinduísmo tem essa atitude muito aberta para com as outras religiões, não é?
H.S. - Sim. O outro nome do hinduísmo é sanatana dharma e é aberto para toda a gente porque é o caminho da vida. Não tem restrições. Nós estamos com os braços abertos para receber toda a gente que queira entrar.

Os seus filhos são hindus, mas rezam a ave-maria, é isso?
H.S. - Também. E ainda vêm ao templo. Eles fazem as orações na igreja - tudo bem, faz parte da escola, nunca o impedimos. Tenho um filho que vai a pé na peregrinação a Fátima todos os anos. Leva três dias para lá chegar com a escola.

Kirit Bachu, isto é uma exceção ou é comum na comunidade?
K.B. - É comum na comunidade, nós todos acreditamos em Fátima. Nós todos vamos a Fátima quando há alguma boa ação ou compramos um novo carro ou há alguma promessa...

Ou seja, os hindus de Portugal fazem o culto de Fátima?
K.B. - Sem dúvida. Nós até já fomos daqui várias vezes com autocarros cheios, fazemos peregrinações a Fátima e fazemos promessas a Nossa Senhora de Fátima também.

Hiral Shah, uma das suas atividades tem que ver também com a comunidade fora dos hindus, que é a filantropia e a ajuda humanitária. Durante o confinamento por causa da covid forneceram refeições aos médicos, mas além disso o que é que fazem habitualmente?
H.S. - Temos o núcleo feminino das indianas que se juntam e fazem as tarefas aqui na comunidade, e todos os meses elas fazem a doação dos alimentos. Angariamos uma quantidade de alimentos e distribuímos pelos sem-abrigo, pela Santa Casa... Há muitas instituições que estão ligadas com a câmara municipal e nós estamos a ajudá-las. Já fazemos isso há mais de três anos e todos os meses, sem falhar, fazemos chegar os alimentos aos carenciados.

Isso tem que ver com o vosso espírito de missão hindu ou é também uma forma de agradecerem a Portugal por estarem bem integrados?
H.S. - Não podemos dizer que estamos a agradecer porque estamos a viver aqui em Portugal e é o nosso país. Nós não somos imigrantes, os filhos nasceram cá e esta é a nossa terra. É como se fosse a segunda mãe, o agradecimento passa por tomar conta do país, pagar os impostos e viver como deve ser.

Agradecer como portugueses e não como imigrantes.
H.S. - Exatamente. O hinduísmo está muito imbuído dos princípios de darma e karma e essa doação faz parte do karma. Ajudar o outro é um ato muito nobre e nós guiamo-nos por esses princípios, seja em Portugal ou noutro país. Todos os hindus, todas as pessoas que seguem o sanatana dharma fazem doações. É o primeiro ato que se faz.

Kirit Bachu, a integração dos hindus em Portugal é bem conseguida?
K.B. - Foi muito fácil. Realmente a religião hindu é muito aberta e muitas pessoas aqui têm muita curiosidade para saber o que é a religião hindu, por isso mesmo temos aqui no templo visitas guiadas. As pessoas gostam de saber o que é a religião hindu, e quando sabem que é uma religião muito aberta, muito democrática, ficam muito contentes por conhecer a filosofia hindu.

Por aquilo que sabe da comunidade, esta também se sente plenamente integrada?
K.B. - A 100%. Nós não nos sentimos nada excluídos, sentimos que estamos em casa. Aliás, Portugal é mais a nossa casa do que a Índia. Os nossos netos - a até os nossos filhos - não conhecem a Índia, e se conhecem, conhecem-na mal. Ficam lá uma semana, 15 dias, e depois vêm para cá. Temos os amigos aqui, temos raízes aqui. Como falámos há pouco, eu estou em Portugal há quatro gerações. Daqui a pouco já vamos na quinta.

Disse que o templo foi inaugurado pelo Presidente Jorge Sampaio. Já convidou o Presidente Marcelo a visitá-lo também?
K.B. - Nós tentámos convidá-lo várias vezes, mas acho que ele anda com a agenda muito cheia. Eu gostava que ele viesse. António Costa veio antes de ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Levou a bênção do hinduísmo e ganhou as eleições [risos].

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