Efeitos da pandemia penalizam mais os imigrantes, também em Portugal
Equipa coordenada por investigadora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical fez o primeiro estudo comparativo no país sobre as consequências da covid-19 em famílias imigrantes e nativas na Amadora. Resultados preliminares mostram pela primeira vez dimensão do problema, e apontam a necessidade de reforço dos serviços de saúde.

A investigadora Maria do Rosário Martins.
© Orlando Almeida/Global Imagens
Maria, vamos chamar-lhe assim, é imigrante - vive na Amadora. Jovem, e mãe de um filho pequeno, tinha chegado há pouco a Portugal quando tudo se precipitou.
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Foram aqueles dias alucinantes do início da pandemia e do estado de emergência, com o fecho de escolas, lojas e serviços, e o confinamento súbito e generalizado. Como tantos outros, Maria viu-se obrigada a ficar em casa com o filho - trabalhava sem contrato no setor dos serviços -, até que acabou por ficar sem salário. Foi por essa altura, ainda em março, que descobriu que estava grávida - nada, mesmo nada, estava a ser fácil.
Sem médico de família, e com a comunicação com o centro de saúde reduzida a linhas telefónicas permanentemente saturadas, Maria teve de esperar ainda quatro meses para conseguir, enfim, a primeira consulta de saúde pré-natal.
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Embora com outros contornos ou pormenores, o caso de Maria não é único nesta pandemia ainda sem fim à vista. Há muitas outras situações de perda total ou parcial de salários, que geraram novas condições de pobreza e mais dificuldades. Ou de agregados familiares sem computadores, internet ou sequer um espaço adequado para acomodar as aulas virtuais das crianças nestes longos meses de escola à distância.
De uma maneira ou de outra, a covid-19 - e o que ela trouxe consigo - tocou a todos, nativos e imigrantes. Mas são estes os mais vulneráveis às suas consequências, e os mais atingidos por elas.
Esta é a grande conclusão do primeiro estudo que avaliou em Portugal as consequências da pandemia de covid-19 nas famílias imigrantes, quando comparadas com as nativas, num mesmo espaço geográfico: o concelho da Amadora.
"Os nossos resultados mostram que a situação é difícil para todos, mas ela é ainda mais negativa para as famílias imigrantes, que estão mais expostas aos problemas socioeconómicos causados pela crise sanitária", resume a investigadora Maria do Rosário Martins, do Centro de Investigação em Saúde Global e Medicina Tropical do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa (UNL), que coordenou a investigação.
São muito claros os resultados preliminares do estudo, que foi feito com base num inquérito telefónico realizado pelos investigadores do IHMT e que contou também com a participação decisiva do ACES, o Agrupamento dos Centros de Saúde da Amadora, e da ONG AJPAS - Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde.
Os dados recolhidos e analisados pela equipa, que avaliou 420 famílias - 217 Imigrantes e 203 nativas - residentes na Amadora, mostram que os efeitos da pandemia penalizam mais as famílias imigrantes do que as nativas em praticamente todas as frentes. Na perda de emprego e de ordenado ou na diminuição do rendimento por quebra de salário, em dificuldades acrescidas no acesso aos cuidados de saúde, e até na impossibilidade de pagar contas e comprar alimentos.
Estas diferenças eram, de algum modo, expectáveis. Estudos de outros países e dados de barómetros apontavam nesse sentido, mas Maria do Rosário Martins acabou por se surpreender com a diferença, maior do que esperava, no impacto negativo da covid-19 nos dois grupos.
"72% das famílias imigrantes dizem que o rendimento mensal do seu agregado familiar diminuiu devido à situação de pandemia, enquanto nos nativos esse valor é 49%", adianta. "É uma diferença muito grande, tendo em conta, por exemplo, os níveis de escolaridade de ambas as comunidades, que são de nível mediano e comparáveis entre si."
Este é um dos valores mais evidentes, mas não é o único em que os imigrantes mostram mais perdas e revelam, assim, maiores vulnerabilidades.
Mais dificuldades nos cuidados de saúde
Do total dos entrevistados que tinham emprego antes da pandemia, 46% tiveram de ficar sem trabalhar e sem receber ordenado, ou uma parte do ordenado, durante algum tempo, mas nos imigrantes o valor foi superior: 57%, em comparação com 35% nos nativos. Na perda de rendimento líquido mensal essa diferença agudizou-se ainda mais.
Em consequência disso, 30% de todos os agregados familiares referem que tiveram de adiar o pagamento de rendas, prestações de crédito ou despesas de água, gás e luz, mas mais uma vez esse valor "é consideravelmente superior nos imigrantes (39%) do que nas famílias nativas (23%)", nota a coordenadora do estudo.
Em relação ao confinamento e às aulas à distância, chega a 20% o número de famílias imigrantes que dizem não ter um local em casa para os filhos terem aulas à distância, e, em relação à necessidade de as crianças fazerem uma refeição na escola, os valores são de 8% para os imigrantes e de 3% para os nativos.
Já no acesso aos cuidados de saúde durante a pandemia, metade de todas as famílias afirmou que teve de recorrer a eles. E, destes, 35% (aqui sem diferenças entre os dois grupos, relativamente aos centros de saúde) referiram ter tido dificuldades adicionais. E é no acesso às urgências que os números voltam a divergir: 46% dos imigrantes disseram ter tido dificuldades acrescidas devido à pandemia, "o que é um valor consideravelmente superior ao dos nativos, de apenas 12%", nota Maria do Rosário Martins.
"Nas famílias imigrantes, os efeitos económicos e sociais da pandemia surgem exacerbados, expondo as vulnerabilidades que já lá estavam", adianta a investigadora, que conhece bem estas famílias, já que as segue há dois anos no âmbito de outra investigação para avaliar a evolução da saúde infantil em ambas as populações.
Graças a esse outro trabalho, que é financiado pelo Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI) e que envolve exatamente os mesmos dois parceiros, o ACES e a organização não governamental AJPAS, e que ainda vai continuar no futuro, o perfil sociodemográfico e económico destas 420 famílias da Amadora já estava traçado.
Ele mostra que os imigrantes, maioritariamente oriundos dos países africanos lusófonos, com maior expressão de Cabo Verde, Angola, Brasil e Guiné-Bissau, "têm maior precariedade no emprego, rendimentos medianos inferiores, menores gastos em saúde, e vivem em casas mais sobrelotadas do que as famílias nativas".
Com esses dados já recolhidos, Maria do Rosário Martins percebeu que a situação pandémica era uma oportunidade de verificar, e comparar, o impacto da crise sanitária no acesso aos cuidados de saúde e nas condições de vida de ambas as populações. E o concurso para financiamento de projetos em covid-19, lançado logo em abril pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), foi a oportunidade certa para avançar. Não hesitou.
O projeto "Resposta à pandemia de covid-19 num contexto de desigualdades sociais em saúde: um estudo transversal na população nativa e imigrante da Amadora", proposto pela investigadora, ganhou um financiamento de 28,2 mil euros, e o trabalho arrancou.
Os resultados preliminares aí estão, agora, a revelar a situação, naquele que "é o primeiro estudo a fazê-lo para Portugal, e a mostrar um retrato que ainda não tinha sido feito. A informação abarca apenas famílias da Amadora, mas a nossa amostra tem representatividade estatística e permite-nos dar pela primeira vez uma dimensão concreta ao problema", sublinha a investigadora.
Houve, entretanto, outros resultados práticos importantes. Nas situações de carência mais aguda diagnosticadas pela equipa, a participação no projeto do ACES e da AJPAS acabou por fazer toda a diferença, com a AJPAS a fornecer alimentação aos agregados familiares que tinham ficado sem rendimentos ou a apoiar a procura de emprego para quem o tinha perdido.
Maria, que conhecemos no início, também viu o seu problema da consulta médica resolvido, três dias depois de a equipa do IHMT ter identificado a situação. As ligações telefónicas com o centro de saúde local continuavam saturadas, mas funcionou a comunicação entre os parceiros do estudo.
Os dados ainda vão ser trabalhados e os resultados definitivos deverão ser publicados dentro de quatro meses, mas os alertas já aí estão.
"Sabemos que as condições económicas e sociais têm impacto na saúde das populações a prazo e é expectável que isso se reflita nas famílias no futuro, pelo que o sistema de saúde terá de se preparar para isso", conclui Maria do Rosário Martins.
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