05 NOV 2020
05 novembro 2020 às 00h50

SEF sob pressão. Ministro prepara saída de luxo para diretora nacional

Uma sucessão de controvérsias está a deixar o SEF sob pressão. Acumulam-se as críticas à diretora nacional por causa do silêncio e da forma como foi tratado o homicídio do imigrante ucraniano.

O ministro da Administração Interna estará a preparar a substituição da diretora nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que nomeou em janeiro de 2019 e cujo curto mandato tem sido preenchido com uma sucessão de casos controversos - o mais grave dos quais a morte do imigrante ucraniano à guarda do SEF no aeroporto de Lisboa - quer com impacto externo quer interno (ver mais abaixo alguns exemplos) nesta polícia.

Ao que o DN apurou junto de várias fontes do setor da segurança, Eduardo Cabrita pretende nomear Cristina Gatões para oficial de ligação para a imigração em Londres, um cargo que será criado para apoiar a comunidade portuguesa no Reino Unido no processo do Brexit. O salário médio destes oficiais de ligação é de cerca de 12 mil euros mensais.

Embora ainda não esteja decidido, o lugar deixado por Gatões deverá ser ocupado pelo atual diretor nacional adjunto do SEF, José Luís Barão, ex-chefe de gabinete do ministro e ativo militante socialista.

No último ano, o SEF tem sido notícia quase sempre por más razões. Desde o caos nos atrasos de agendamentos para as autorizações dos imigrantes, passando por casos de corrupção entre inspetores e pela má gestão do fluxo de migrantes marroquinos.

Internamente, há nomeações polémicas a causar um mal-estar sem precedentes, cargos importantes deixados vazios e mais escolhas políticas do que o habitual. A diretora nacional adjunta e a diretora regional do Algarve estão de baixa por burnout; na Madeira, foi nomeado há uma semana o quarto diretor regional em três anos.

O mais grave de tudo foi o homicídio de um imigrante ucraniano nas instalações do SEF, em março passado, em relação ao qual o Ministério Público (MP) deduziu acusação contra três inspetores desta polícia.

A agravar ainda mais o caso, na passada semana, um relatório da Inspeção-Geral de Administração Interna (IGAI), divulgado pelo Público, veio incriminar mais sete inspetores no que alega ter sido o encobrimento da morte violenta deste imigrante - o que adensou a pressão sobre Cristina Gatões e o incómodo do Governo.

No total, há 12 inspetores do SEF alvo da ação da IGAI, somando a estes sete, os três acusados e os dois dirigentes da Direção de Fronteiras de Lisboa, demitidos.

O inquérito disciplinar da IGAI, entidade que fiscaliza as polícias, foi conduzido por uma inspetora da PJ, Carla Paes, e acaba por ir mais longe do que o processo-crime dos colegas da Judiciária responsáveis pela investigação que levou à acusação de apenas três inspetores.

De acordo com este relatório da IGAI, a que o DN teve também acesso, "a postura e a conduta dos inspetores do SEF por ação (tratamento degradante, tortura e atentado à dignidade humana, pondo em perigo a vida e integridade física do cidadão) e omissão (falta de medicação e prestação de auxílio) não poderá ser dissociada das condições que levaram à morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk".

Para a IGAI, além do desrespeito destes inspetores pelas disposições legais, identificado em diferentes fases deste processo, "acresce o total desrespeito pelo sistema de direitos fundamentais vigentes e que, no caso em análise, colocam em crise o princípio inalienável da dignidade humana (proibição de tortura e tratamento degradante), e da solidariedade (cuidados de saúde)".

Na avaliação que foi feita à aplicação do uso da força "ficou demonstrada a ilegalidade das medidas aplicadas ao cidadão ucraniano (uso de fita adesiva e outros materiais não admitidos), a desnecessidade das mesmas (imobilização física do cidadão quando este não constituía qualquer risco para si ou outros), a sua inadequação (imobilização total do cidadão para o "acalmar") e desproporcionalidade (contenção e imobilização total que se iniciou desde a colocação do cidadão IHOR na sala dos médicos, até à declaração do seu óbito)".

Nada disto foi detetado - nem denunciado pelo SEF. Conforme o DN já noticiou, o SEF tinha instaurado um inquérito interno a esta morte, mas não detetou qualquer indício criminal. Há várias contradições que nunca foram esclarecidas pela direção do SEF, por exemplo, porque só demitiu os dirigentes depois de ter vindo a público a operação da PJ que levou à detenção dos três inspetores ou porque só comunicou a morte à IGAI cinco dias após esta ter ocorrido.

No fim de semana passado, depois de conhecido o relatório da IGAI, avolumaram-se as críticas à direção do SEF, por parte de quadrantes políticos distintos. Primeiro Marques Mendes e, depois, Ana Gomes condenaram a atitude da diretora do SEF, que se tem mantido em silêncio.

"Perante aquela monstruosidade, a diretora devia ter posto o lugar à disposição da tutela. Não que seja pessoalmente responsável, mas institucionalmente é responsável", sublinhou ao DN Marques Mendes.

No seu comentário semanal na SIC, o conselheiro de Estado questionou o silêncio de Cristina Gatões. "E a diretora do SEF? Não diz uma palavra sobre isto? Ela que é a responsável máxima do serviço não vem a público condenar este acontecimento? Não vem lamentar o sucedido? Não vem explicar que medidas estão a ser tomadas ou foram tomadas para evitar que estas situações se repitam no futuro e dar confiança às pessoas? Não vem dizer nada? Acho isto lamentável, já o devia ter feito", frisou Marques Mendes.

Da mesma forma, a candidata presidencial Ana Gomes criticou a diretora do SEF. "Acho muito inquietante o ruidoso silêncio quer da diretora do SEF quer do Sr. Ministro da Administração Interna. É fundamental que a diretora desta polícia, que devia proteger os cidadãos e não expô-los a estas barbaridades, e o próprio ministro falem, venham dar um sinal claro de exemplaridade na erradicação dos responsáveis, na responsabilização criminal, sobretudo para moralizar", sublinhou.

Cristina Gatões, a quem já chamaram "a senhora das sete vidas", tem sobrevivido a várias polémicas na sua carreira, mesmo antes de ser diretora nacional. Algumas vieram a público, como foi o caso de um visto em branco, com a sua assinatura, que apareceu no SEF, causando alarme nas autoridades (o processo foi depois arquivado pelo MP); ou ter viajado diariamente de Lisboa a Coimbra, onde residia, com motorista, a quem o SEF pagava hotel para pernoitar e a trazer de volta, quando era diretora nacional adjunta.

Escolhida por Eduardo Cabrita em janeiro de 2019 para substituir Carlos Moreira na liderança do SEF, Cristina Gatões herdou situações complicadas, como foi o caso do inquérito disciplinar que detetou indícios de corrupção entre inspetores, que o seu antecessor mandou arquivar.

Algumas das descobertas nessa auditoria acabaram por coincidir com as de uma investigação criminal da Polícia Judiciária, com 52 arguidos, entre os quais uma inspetora do SEF que também tinha sido referenciada no inquérito interno do SEF.

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Conforme o DN noticiou, a PJ pediu colaboração do SEF neste processo, a qual, até à altura da acusação do MP, não tinha chegado. A PJ queria consultar todos os vistos que tinham sido concedidos com intervenção da inspetora e de advogados envolvidos, informação essa que está na auditoria arquivada. Nem sob pressão dos deputados a auditoria foi revelada.

Em dezembro do ano passado, o desembarque de imigrantes ilegais marroquinos na costa algarvia veio trazer uma nova realidade ao SEF, e, também neste caso, a gestão de Cristina Gatões deixou dúvidas.

Por sua iniciativa e apoio da tutela, os primeiros jovens foram acolhidos como refugiados e admitidos os pedidos de asilo, que vieram depois a ser chumbados, por falta de fundamento, levando o SEF a arrepiar caminho em relação aos casos de desembarques seguintes.

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Mas essa posição inicial acabou por surtir efeito na chamada para as redes de auxílio à imigração ilegal, seguindo-se outros cinco desembarques ilegais, só contando os que foram detetados.

Ainda em relação aos migrantes marroquinos, também não é compreendido que Cristina Gatões, sabendo que os seus investigadores confirmaram já a existência desta rota, continue a secundar a posição de negação da mesma, defendida pelo ministro da Administração Interna.

Esta conduta acabou por comprometer a capacidade do SEF para alojar estes migrantes, não antecipando e preparando instalações, sendo obrigado a recorrer a quartéis e cadeias, o que nem sequer está previsto na lei nacional para estas situações.

Com tudo isto, mais o caos nos agendamentos para imigrantes, que passou, por exemplo, pela deslocalização dos atendimentos para fora da área de residência, os constantes problemas no controlo de passaportes no aeroporto de Lisboa, a que se juntam reivindicações de falta de meios e de apoios aos inspetores e funcionários, o SEF está em elevada tensão.

DestaquedestaqueReflexo disso é o facto de duas altas dirigentes, a diretora nacional adjunta e a diretora regional do Algarve, terem sofrido burnout, obrigando-as a estar de baixa médica.

Reflexo disso é o facto de duas altas dirigentes, a diretora nacional adjunta e a diretora regional do Algarve, terem sofrido burnout, obrigando-as a estar de baixa médica, segundo garantiram ao DN fontes do SEF.

O sindicato que representa os inspetores sublinha a "enorme sobrecarga de trabalho" a que estes profissionais têm sido sujeitos, com poucas compensações. "Há 15 anos que não há qualquer promoção de inspetores", diz Acácio Pereira, presidente do Sindicato da Carreira de Inspeção e Fiscalização (SCIF) do SEF, que não quis comentar a situação da diretora nacional.

Também diversas nomeações internas, da responsabilidade de Cristina Gatões, têm causado inquietação, principalmente pelo elevado número de chamadas "nomeações políticas" - ou de quadros de fora do SEF, como é o caso de José Luís Barão e dos novos coordenadores do departamento de informática, ou de inspetores de categorias inferiores às previstas para o cargo em causa.

Num memorando a que o DN teve acesso, no qual é feito um balanço dos recursos humanos, são contadas seis "nomeações políticas", contando a de uma inspetora coordenadora, mulher de um ex-secretário de Estado do PS para a direção-geral do Norte. Esta ainda decidida pelo anterior diretor, Carlos Moreira, quando Gatões era diretora-adjunta, segundo informação que chegou depois ao DN.

Já depois deste artigo publicado, chegou ao DN outro caso de "nomeação política", confirmada também por fontes do SEF: trata-se da diretora financeira, que veio da secretaria-geral do MAI por indicação do diretor-nacional adjunto do SEF José Luís Barão, ex-chefe de gabinete do ministro da Administração Interna.

Segundo estas fontes, a responsável não tem conseguido manter sequer a equipa da Direção Central de Gestão e Administração - um departamento de enorme importância no SEF, por onde passa toda a gestão de verbas.

Desde que a nova chefe chegou saíram dois chefes de núcleo, três técnicos superiores e três assistentes técnicos. "Os que ficaram andam a tentar concursos internos na administração pública para serem transferidos para outros organismos. Chegou ao ponto de estarem a ser requeridos inspetores da investigação, mais jovens e que têm medo de recusar, para preencherem as vagas, o que é inadmissível com a falta de inspetores no terreno", sublinhou uma dessas fontes.

A instabilidade é de tal forma que para o cargo de diretor regional do SEF na Madeira já foram nomeados quatro inspetores nos últimos três anos, sendo certo que a comissão de serviço de cada um devia ser de três anos. A última nomeação foi na passada semana, para substituir a diretora que esteve pouco mais de um ano no posto.

Há ainda cargos de vital importância por preencher, como é o caso da Direção Central de Informações Documentais, por onde passam todos os casos de falsificações de passaportes e vistos, sem diretor desde março deste ano.

O gabinete de relações públicas, em véspera da presidência portuguesa da União Europeia, está sem coordenadora nomeada e sofreu a saída de vários funcionários em protesto, que solicitaram o regime de mobilidade para deixar o SEF.

De acordo ainda com o mesmo memorando, o gabinete de inspeção, que fiscaliza toda a atividade do SEF e conduz inquéritos e auditorias internas, como foi o caso da já referida que foi arquivada, desde janeiro de 2018 que não faz nenhuma auditoria ordinária ou extraordinária, quando a lei orgânica obriga a auditorias anuais.

O DN contactou o gabinete de Eduardo Cabrita e a direção do SEF para obter a confirmação e um comentário à saída de Cristina Gatões, mas não recebeu resposta.

Atualizado às 13h10 com mais informações sobre "nomeações políticas" no SEF