Veio a Portugal para apresentar o seu livro Ladivine, que foi editado originalmente em 2013, mas só agora foi traduzido para português. É a história de três gerações de mulheres, de Malinka, da mãe Ladivine e da filha, também chamada Ladivine. Três mulheres afastadas do mundo e, por vezes, de si mesmas também. É um tema recorrente na sua obra?Sim. Mesmo que não seja consciente naquilo que escrevo, mas, em retrospetiva, noto que as minhas personagens estão sempre um pouco desajustadas do mundo real, estão quase sempre um bocadinho fora dele, sem que isso seja tão óbvio. Não são loucos, não são excêntricos, mas estão acima da realidade pragmática.Em Ladivine vemos a relação difícil entre Malinka e a sua mãe, Ladivine. Inspira-se na sua experiência, em pessoas que conhece, para criar estas personagens ou é tudo imaginado?Em pessoas que conheço, nunca. Teria muita vergonha de o fazer, que pessoas que me são próximas se pudessem reconhecer no meu livro. Eu nunca faria isso, considero isso uma grande violência. Escrever a partir da nossa vida, portanto, dos entes queridos que fazem parte dessa vida, é um género literário em si, e isso dá origem a obras tão importantes como a de Annie Ernaux [Nobel da Literatura 2022]. Tenho o maior respeito por isso, compreendo a abordagem, mas essa abordagem não poderia ser a minha, não me atreveria. Eu nunca teria coragem de impor isso a pessoas que conheço.No seu caso, o livro começa a preparar-se dentro de si, e só depois começa a escrever. Esse é o seu processo criativo?Sim, o livro ganha forma na minha cabeça durante meses e meses, às vezes até um pouco mais de um ano. E durante esses meses não escrevo, reflito, penso, organizo as coisas na minha cabeça, até que chega o momento certo em que ponho em palavras o que me vai na cabeça. É uma espécie de período de gestação.Em Ladivine encontramos uma dimensão de fantasia, do maravilhoso, que está presente em muitos dos seus livros. Os cães são impressionantes. É um mundo que a influenciou desde a infância?Sim, acho que sim. Quando o meu irmão e eu éramos pequenos e ainda não sabíamos ler, a minha mãe costumava ler-nos histórias à noite. As que me lembro com mais clareza eram de um livro grande chamado Contos e Lendas da África Negra. Era a única ligação que tínhamos com o país de origem do nosso pai. Não vivíamos com ele, nunca o tínhamos visto. Assim, tínhamos apenas o nosso nome, a cor da nossa pele, a nossa mestiçagem e, depois, estes Contos e Lendas da África Negra. E eram contos maravilhosos. Apresentavam animais que viviam como humanos. Tinham casas, mesas, cadeiras, etc. Tinham roupa, ainda consigo ver os desenhos, roupa ocidental, vestidos, camisas, etc. Só que tinham cabeças de animais. Havia a lebre, a hiena que era meio tola, o leão. Eram histórias fantásticas onde, na verdade, tudo tinha mente e voz próprias. As árvores davam conselhos, as plantas falavam. Tudo tinha alma. A água, o rio, as pedras. E acho que isso deixou uma marca profunda em mim. Talvez seja o que chamamos de animismo. Eu não sabia disso, claro. É a ideia de que os humanos não são os únicos com vida própria, mas que também podemos dar vida a entidades que não são como nós. Isso é maravilhoso para mim.Falou da sua mãe e do interesse que ela lhe incutiu pela literatura. Publicou o seu primeiro romance com apenas 17 anos. Sempre soube que ser escritora era a sua vocação?Sim, o meu primeiro livro saiu quando eu tinha 17 anos, mas já tinha escrito muitos outros antes, desde a infância. Foi natural. Nem imaginava que queria ser escritora. Não era a minha intenção. Eu estava a praticar. Escrevia como me chamo Marie, como respirava, como ia à escola. Fazia parte das atividades que para mim eram óbvias, como comer ou dormir.A sua mãe lia-lhe contos africanos. Era a forma dela de manter uma ligação com as suas raízes africanas, uma vez que o seu pai era senegalês?Sim, foi a maneira que ela encontrou. Não havia outra. Isso foi muito antes da internet. Não havia sequer imagens de filme. Era a sua forma de nos fazer sentir ligados a uma origem que, de outra forma, não existiria na nossa vida.O seu pai regressou a África quando a Marie tinha um ano e só o voltou a ver aos 22 anos. Foi a Marie que o procurou? Sim, queria ver a cara dele. A minha mãe tinha uma pequena fotografia de quando ele tinha 20 anos. Não fazia ideia de como seria o rosto dele 30 anos depois. Queria ver o lugar, a casa onde ele vivia. Eu só queria ver. Sem fazer alarido. Foi uma coisa bastante fria. A minha abordagem foi bastante pragmática. Não tinha a ideia de conhecer um pai. Era só ter imagens para associar a um nome.Um nome - NDiaye - que é o seu. Foi criada pela sua mãe francesa, em França, nos subúrbios de Paris. Como reage quando é apresentado como uma escritora africana?Agora já não acontece tanto. Mas no início… compreendi a importância do meu nome. Se tivesse escolhido o nome da minha mãe, se fosse Marie Rousseau, a história teria sido diferente na imprensa. Aceitei a escolha de manter o meu nome, mesmo que não tenha qualquer significado na minha vida. Eu própria compreendo que, se ouvir um nome que soe estrangeiro, remeto imediatamente a pessoa com esse nome para outro lugar. Também não me queria distanciar muito dessa ligação a África. Mesmo que fosse falsa, falhada, não queria parecer que não tinha nada a ver com África. Agora, menos, mas nessa altura ainda havia um certo complexo de inferioridade dos africanos em relação a França, em relação à Europa. Não queria insinuar que não tinha nada a ver com a África negra.África aparece nos seus livros. Essa foi também uma forma de manter essa ligação? Acho que é uma forma de dar uma espécie de âncora ao maravilhoso, ao fantástico. Podia tê-lo ancorado na Ásia, mas foi em África, por causa das histórias, das pessoas, etc. Mas é uma África de sonho, uma África que não é real. E não pode ser uma África a sério, porque eu não conheço África.Vamos falar de França. Em 2009, declarou a França do presidente Nicolas Sarkozy “monstruosa”. Isso causou alguma controvérsia. Quase 20 anos depois, mantém a sua escolha de palavras para descrever o que estava a acontecer em França naquela época?Não, porque a palavra era demasiado forte para descrever o que estava a acontecer. Foi há muito tempo, já vimos coisas piores desde então. Na altura estava a falar da violência nos subúrbios de Paris e dos confrontos entre jovens e a polícia… Sim, e depois houve a criação de um Ministério da Imigração, Integração e Identidade Nacional, que já não existe. E isso ia contra o espírito universalista da França iluminista. Foi realmente perturbador, na época, esta referência à identidade francesa.E como vê a França hoje, com toda esta crise política?Nas últimas semanas, temos vivido coisas incompreensíveis. Mas tenho sempre a impressão de que nos estamos a reerguer, de que estamos a recuperar, que permanece alguma distância, um pouco de humor também. Digo isto, mas o Reagrupamento Nacional [ex-Frente Nacional, de extrema-direita] pode ser o grande vencedor em 2027! Mas se tivermos de passar por isso, veremos. E aí já não teremos de ouvir aquela frase que muitos eleitores do RN repetem de que é algo que nunca experimentámos. Se [a extrema-direita] chegar ao poder, não haverá mais essa fantasia, a ideia de que eles são os únicos que nunca vimos em ação.A imigração é também um tema que aborda nos seus romances. Como vê as políticas de integração em França, ligadas aos valores republicanos?Não correu mal. Na minha infância, isso não existia, mas agora vemos apresentadores importantes na TV com nomes estrangeiros, mestiços. Acho que não foi assim tão mau.A Marie já disse em várias entrevistas que quando era criança e adolescente, nos anos 70, não era fácil ser diferente em França…Na escola que eu e o meu irmão frequentávamos, na escola primária, éramos os únicos não brancos. Não havia sequer crianças com pais divorciados. Mesmo isso era raro. Ter pais divorciados é motivo de vergonha. Os pais dos nossos amigos eram todos casados. Casados mesmo, não apenas em uniões de facto. Era ainda uma França muito tradicional. E o espírito do Maio de 68 ainda não tinha chegado a este segmento da população, a classe média, que era ainda muito tradicional na sua moral e nas suas vidas. Era até inimaginável ter um amigo gay ou uma pessoa gay entre os seus familiares. Ainda era a França na década de 1950. Mesmo que já estivéssemos nos anos 1970, então havia um desfasamento.A Marie também é dramaturga. Mas ao contrário dos seus romances, que escreve para si própria, as suas peças de teatro são sempre encomendas de alguém. Responder a uma encomenda é um processo diferente do que é decidir escrever um romance?Sim, é diferente, e é uma diferença que aprecio. A maior parte das encomendas vêm com restrições - quanto ao número de atores, mulheres, homens, idade, etc., que preciso de ter em conta. Adoro as restrições que canalizam a imaginação. Gosto disso. Já o romance é livre. Não há restrições quanto à duração ou ao número de personagens. Num romance, posso apresentar mil personagens se quiser, enquanto num palco com mil, será difícil.Para terminar. Algum novo projeto de que nos possa falar?Estou a escrever uma peça para uma encenadora e coreógrafa chamada Gisèle Vienne. É uma mulher incrível. Tem pouco menos de 50 anos e já tem muitas peças. Ela mistura todas as artes performativas - texto, vídeo, dança, música. Estou a escrever o texto para o próximo espectáculo dela no próximo ano. Adoro, porque descubro um mundo que não é o meu. E está algum romance a ganhar forma na sua cabeça neste momento?Não, ainda não. Tenho dificuldade em ter várias coisas na cabeça ao mesmo tempo. Neste momento, tenho a peça com a Gisèle. Essa é a minha prioridade. Não sou muito prolífica. É uma coisa atrás da outra. Há coisas práticas que podemos fazer ao mesmo tempo. Consigo cozinhar e escrever e-mails ao mesmo tempo, e pensar na caminhada que vou fazer no dia seguinte com um amigo. Isso posso. Mas quando se trata de criação, é mais difícil. Vários processos criativos, ao mesmo tempo, é mais complexo..LadivineMarie NDiayeAlfaguara416 páginas.O Nobel que diz tudo num parágrafo."Como se explica a Natália a adolescentes?" Foi esse o desafio de Maria João Martins