A ideia de um Panteão nasce com a Monarquia Constitucional, logo a seguir às Guerras Liberais, acaba por ser a Primeira República que assume o projeto, mas é o Estado novo que efetivamente constrói o Panteão Nacional onde estamos. Porquê esta demora do Estado português para ter um Panteão?Acho que é uma questão que não é específica do Panteão, esta demora. Acho que é qualquer coisa de muito próprio do país, um certo atavismo, às vezes, adiar tomar decisões quando elas têm de ser tomadas, em resolver as coisas quando têm de ser resolvidas. Demoram, porque demoram. Por exemplo, temos um aeroporto que está para ser construído há já quase 60 anos. E porquê? No caso do Panteão, não era uma coisa de primeiríssima necessidade. Ou, pelo menos, não era vista enquanto tal. Foi deslizando.É curioso que a escolha do local para o Panteão também tenha recaído numa igreja que demorou tanto tempo a ser construída que deu origem àquele dito das obras de Santa Engrácia, intermináveis.Precisamente.Esta igreja agora Panteão Nacional demorou mesmo muito tempo a ser feita?Demorou quase 300 anos a ser terminada. Ela começa em 1681 e é terminada em 1966.Para Panteão?Para Panteão. A ideia de Santa Engrácia ser um Panteão já estava a germinar no século XIX. E depois é concretizada, é posta em prática pelo presidente Bernardino Machado em 1916, quando é, de facto, tomada a decisão definitiva. Entre 1916 e 1966 ainda demoram 50 anos. No meio de inúmeras hesitações, há inúmeras propostas para rematar o edifício. O edifício não tinha cúpula, terminava no terraço. E há imensas propostas, e muitas delas francamente boas, do ponto de vista da solução arquitetónica, para que o Panteão seja concluído. E, à boa maneira portuguesa, há comissões, e depois as pessoas têm diferentes posições, e depois há divergências. E só nos anos 60 é que, de facto, e ante a proximidade dos 40 anos da Revolução de Maio, do 28 de Maio de 1926, é que há essa pressão final, e há essa decisão final de Oliveira Salazar para que o Panteão fosse terminado.Referiu o 28 de Maio e Salazar. Há a ideia de que, a seguir ao 25 de Abril, a democracia, num dado período, tem alguma dificuldade em lidar com o Panteão, finalizado pelo Estado Novo. Mas que isso acaba por resolver-se quando Humberto Delgado é transladado para o Panteão em 1990. Ou seja, o Portugal democrático assume que o Panteão é um Panteão também da democracia?Não sei se assume diretamente que é um Panteão da democracia. Mas, curiosamente, a seguir ao 25 de Abril, o Panteão fica como que num limbo. Não há, por exemplo, despanteonizações. Ninguém é retirado do Panteão. Isso aconteceu em França, tem acontecido regularmente. De vez em quando, há uma personagem que se entende que não tem estada no Panteão e é removida. Nós, a seguir ao 25 de Abril, no caso, por exemplo, do presidente Óscar Carmona, que é um homem do Estado Novo, isso nem sequer é equacionado. E hoje já nem faz sentido que o seja. A História é a História e o passado nem sempre foi democrático. Portanto, o Panteão é esquecido, fica como que congelado durante cerca de década e meia. Não sei se há uma reconciliação propriamente da democracia com o Panteão, mas há um papel importante do presidente Mário Soares na altura. Ou na Presidência dele, melhor dizendo, uma vez que a decisão última é sempre da Assembleia da República, de trazer o marechal Humberto Delgado para o Panteão. Esse facto traz uma certa normalidade ao Panteão. O Panteão vai se incorporando cada vez mais, de facto, na vida democrática e há personalidades de manifesto relevo que depois vão entrando no panteão: Aquilino Ribeiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, mesmo o presidente Manuel de Arriaga, tal como Amália Rodrigues, que entra também no Panteão. Digamos que o Panteão passa a fazer parte daquilo que é o quotidiano e a normalidade dos museus e monumentos portugueses.Quem são os primeiros que, em 1966, vêm para aqui?Os primeiros em 1966 são os que já estão nos Jerónimos, porque Salazar não queria inovações. É criada uma comissão, na altura são sugeridos imensos nomes, mas, de facto, quem vem para o Panteão são três presidentes e três escritores. Presidentes Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona, escritores Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro. E assim ficou durante quase 25 anos.Almeida Garrett, curiosamente, foi no século XIX um dos que tem a ideia inicial do Panteão.Sim, há uma série de personalidades que ao longo do século XIX vão avançando com a ideia do Panteão, muito à imagem de França. O que nos leva para uma outra questão. Aqueles 13 que estão, de facto, em presença, nas arcas tumulares, não me refiro aos cenotáfios, são todos personalidades do século XIX e XX.Deixe-me só fazer uma pergunta de esclarecimento antes de desenvolver a ideia. Há no Panteão túmulos, ou seja, há quem esteja aqui efetivamente sepultado, como agora recentemente foi o caso de Eça de Queiroz, mas também há os cenotáfios, que é um simbolismo. Por exemplo, quando se entra e se vê ali Vasco da Gama e Camões, que sabemos que estão nos Jerónimos, trata-se de cenotáfios.Exatamente, são seis cenotáfios. E depois ainda há a placa, que é também uma memória, que é a da Aristides de Sousa Mendes. Portanto, temos 20 homenageados de uma forma direta no Panteão, estando o corpo em presença ou não.E estava a dizer que, de facto, são todos figuras dos séculos XIX e XX.Os sepultados, sim. Enquanto cidadão, há uma série de personalidades da nossa História que creio que faria absolutamente sentido que fossem homenageadas no Panteão. E seria um ato de justiça para aquilo que representaram do ponto de vista da História de Portugal. Falo de um Gil Vicente, falo de um Domingos Sequeira, agora muito discutido por outros motivos, falo de um Damião de Góis, falo de um Garcia de Orta. Não nos faltam personalidades na História de Portugal que mereçam essa homenagem no Panteão. Não temos pintores, músicos ou homens de ciência. Que leva também a um outro tipo de consideração, que é a não-banalização das cerimónias de panteonização. Nesta altura há um entendimento, mais ou menos tácito, de que as cerimónias devem ter lugar ao ritmo de uma por legislatura. O que também não me parece que seja descabido ou desadequado, tendo em conta a necessidade de não banalizar as cerimónias.É muito importante também que haja aqui consenso entre as forças políticas quando estão a escolher alguém?Isso tem sido decisivo. Até agora todas as panteonizações geram um princípio de unanimidade à volta das figuras que são propostas. Não creio que faça muito sentido haver votações de 60/40. Isso traria aqui uma fratura e até uma desvalorização da personalidade que se estava a querer homenagear..Referiu, há pouco, Amália. E no Panteão também está Eusébio. É também uma forma de dizer às pessoas que o Panteão não é elitista, ou seja, que o Panteão pode refletir que eles são heróis dos portugueses, não só escritores e governantes, mas também figuras do fado ou do futebol?A presença de Amália e de Eusébio teve um efeito muito claro em termos do que é o conhecimento do Panteão. Por um lado popularizaram o Panteão, tornaram-no um monumento que é mais próximo. E depois a identificação do Panteão passou a ser muito através dessas personalidades. Lembro-me de que a primeira vez que ganhei o concurso para diretor do Panteão, a pergunta que me faziam era: “Então, agora vais trabalhar para o sítio onde está o Eusébio e a Amália?” Ninguém me disse: “Vais trabalhar para o sítio onde está Aquilino, onde está a Sophia de Mello Breyner?” Que são figuras de primeiríssima importância. Isso não está em causa, nem se discute. Mas, de facto, os nomes que eram conhecidos eram Amália e Eusébio. É também, de alguma forma, uma questão geracional. Eventualmente, daqui a 30, 40 anos, serão outras pessoas dessa época que virão a ter essa notoriedade. Que foi útil para o Panteão, que foi bom para o Panteão, essa popularização e essa deselitização, não tenho a mínima dúvida.Luís Vaz de Camões e Vasco da Gama estão nos Jerónimos. Significa que, além deste Panteão Nacional, há mais locais no país que são considerados Panteões.Claro, sim, sim. Jerónimos é um Panteão. Santa Cruz de Coimbra é um panteão...É onde está o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques...Sim. E D. Sancho I. A Batalha também é um Panteão. Portanto, há uma série de edifícios que têm a dignidade de Panteão. Este é mais conhecido, como o Panteão Nacional de Santa Engrácia, mas há, de facto, outros edifícios que têm também essa designação, embora formalmente não façam parte do grupo que tem o estatuto de Panteão Nacional, e que são os que já referi. Aliás, nós aqui, no espaço de 500 metros, temos três panteões.Está a falar do Panteão dos Braganças?Sim. E o dos Patriarcas, que também está em São Vicente de Fora. Aliás, todos os anos, fazemos uma iniciativa conjunta com São Vicente de Fora, na altura do Dia dos Monumentos, que se chama Dois Monumentos, Três Panteões.No Panteão Nacional, de que é diretor desde 2021, já vimos que a ideia nasce na Monarquia Constitucional, mas só com a Primeira República é que vai avançar...E com o Estado Novo é que se concretiza.Há vários Presidentes da República, mas só há uma figura das dinastias reais, e num cenotáfio, que nem sequer é um rei, mas o Infante D. Henrique. É este um Panteão republicano?Sinceramente, não sei se é tanto assim. O que sei é que na altura em que são escolhidas as personalidades para os cenotáfios, há uma clara mensagem de nacionalidade que é transmitida. Não só nesses heróis que estão presentes, o Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, etc., como, inclusivamente, nos santos que estão representados na escultura da autoria de Leopoldo de Almeida, São Teotónio, São João de Brito, São João de Deus e Santo António de Lisboa. Portanto, há uma marca de portugalidade que está associada ao monumento. Nesse sentido, a figura do Infante D. Henrique é inquestionável.Ou seja, não entra como um príncipe, mas sim como o homem do Descobrimentos?Creio que sim. O que importa é sublinhar o papel dele nos Descobrimentos.Eça de Queiroz foi a último a entrar no Panteão, e obrigou um novo torreão a ser aberto e, neste momento, para mais túmulos, efetivamente, há três lugares disponíveis. O que significa que, mesmo naquela lógica de um homenageado por legislatura, num espaço de uma década, década e meia, podemos esgotar o espaço. E Portugal certamente tem muitos heróis na sua História, como já disse. Qual é a solução? O Panteão pode crescer?Estamos a preparar uma exposição sobre o Panteão, e uma das secções é sobre o Panteão que nunca existiu, aquilo que não foi feito. Os projetos que não foram concretizados. E, nesses projetos não-concretizados, há vários que preveem a construção de uma cripta. E, portanto, se um dia se quiser avançar nesse sentido, temos aqui três propostas para uma cripta. Depende da vontade política e dos desígnios que houver na altura e da capacidade financeira que houver para intervir, mas haverá sempre a possibilidade de uma cripta. Não sei que intenções é que terá o Estado português dentro de 15 ou 20 anos para ampliar ou não ampliar o Panteão. Não temos forma de prever.O Estado português, hoje em dia, dá muito valor ao Panteão, como se viu pela cerimónia dedicada a Eça, em que todas as principais figuras do Estado estiveram presentes.Presidente da República, presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro, são as figuras que marcam presença. É um cerimonial longo, solene, pesado, como aliás tem de ser nestas circunstâncias.Neste caso, de Eça, a família também esteve presente.Sim, normalmente as famílias estão presentes quando se consegue. Aliás, no caso da família de Aristides de Sousa Mendes, estava presente um importante grupo de representantes, dos muitos descendentes que ele foi tendo, que estão espalhados hoje pelo mundo, e que fizeram questão de marcar presença.Já assistiu a dois cerimoniais como diretor, certo?Sim, em 2021 e 2025. Aristides de Sousa Mendes e Eça de Queiroz.Além dessa solenidade do Estado, há também a parte emocional das famílias. Percebe-se isso?Percebe-se, sobretudo quando, como no caso de Aristides de Sousa Mendes, há pessoas que foram ainda próximas dele e que têm uma memória muito próxima da sua vida. Conviveram com pessoas que conviveram com ele, e essa parte emocional é muito evidente, até porque as pessoas querem voltar e querem voltar a visitar, e vêm com os familiares - essa parte é muito marcante. No caso da de Eça de Queiroz, houve a família que esteve presente, houve ali questões antes sobre a transladação que foram depois resolvidas, entre diferentes setores da família. Para nós é sempre uma grande honra o destaque que é dado ao Panteão Nacional nessa altura, sobretudo porque há uma coisa que, para mim, é muito clara enquanto diretor do Panteão: o nosso papel é de valorizar o monumento. Isso está bem definido. Nós estamos aqui numa tarefa transitória que é de melhorar o monumento, que é de tentar dar uma visibilidade acrescida ao monumento, que é de dignificar o monumento discretamente, ou seja, de uma forma quase anónima. Nós não somos as estrelas do sítio, a estrela do sítio é o monumento em si.Mas, da sua ação, resulta também que as pessoas visitem e se envolvam com o monumento. Hoje, que estamos aqui, percebe-se que há muitos estrangeiros, muitos turistas a visitar. Os portugueses também são muitos a visitar o Panteão?Neste momento, a relação é 77% de estrangeiros, 23% de portugueses. O número de portugueses tem vindo a aumentar. No passado era 14, 15, 16%. Nesta altura estamos, francamente, mais à frente em termos percentuais e em termos numéricos. O que é que nós procuramos? Que haja elementos de identidade que justifiquem a visita ao sítio, não só pela monumentalidade, não só pela beleza do terraço, mas também pelo interesse das iniciativas que aqui se desenvolvem, pela procura de alguma originalidade. Dou-lhe dois exemplos: a edição de livros sob a forma de códigos QR impressos num cubo, um projeto em curso, e os novos folhetos digitais em oito línguas, incluindo língua mirandesa e língua cabo-verdiana. Tentamos, no fundo, arranjar soluções fora da caixa, soluções que às vezes possam parecer menos prováveis tanto do ponto de vista das edições, como das exposições ou da programação musical.Também há momentos culturais no Panteão?Sim. Aqueles que nós desenvolvemos ou aqueles que pontualmente nos são propostos. Temos uma programação ao nível das exposições que é feita anualmente. Ou pensadas por nós ou propostas a partir de fora. Temos também ciclos musicais. Por exemplo, no próximo mês de dezembro vamos ter um concerto que nos é proposto pela Egeac, pela Lisboa Cultura, que nós acolhemos com todo o gosto, porque se enquadra perfeitamente na altura do Natal. Tentamos, ao mesmo tempo que desenvolvemos uma ação própria, manter uma relação muito próxima com a chamada sociedade civil, nomeadamente com as autarquias locais. Temos tido dezenas de autarquias com as quais colaboramos. Aquelas de onde são originários os nossos homenageados e outras que desenvolvem aqui iniciativas, como é o caso agora da Câmara Municipal de Loures, com uma exposição fotográfica de Pedro Inácio sobre arte tumular. Em relação aos nossos homenageados, começámos este ano uma iniciativa intitulada Panteão Popular. Vamos ter todos os anos concertos pelas bandas filarmónicas das terras dos homenageados. O arranque foi com a Banda de Música de Freixo de Espada à Cinta, terra de Guerra Junqueiro. No final de setembro, iremos, numa iniciativa conjunta com a Imprensa Nacional - Casa da Moeda e com a Câmara Municipal de Silves, apresentar a biografia de João de Deus em São Bartolomeu de Messines.Os homenageados aqui no Panteão são de todo o país?São de todo o país. Guerra Junqueiro era transmontano. Açorianos há dois, Manuel de Arriaga e Teófilo Braga. Temos um Presidente da República, Sidónio Pais, que é de Caminha, no extremo norte. Temos João de Deus, que é do concelho de Silves, no extremo sul, e, portanto, podemos dizer que, de alguma forma, o país está bem representado no Panteão.Uma última pergunta mais pessoal, ao cidadão e não ao diretor. De todos estes homenageados, qual é aquele que, como historiador que é, como pessoa, tem uma afinidade maior? Aquele ou aqueles...São dois, e, curiosamente, são dois escritores. Eça de Queiroz, que me despertou para o prazer da escrita fluida, rápida e imaginativa quando eu era adolescente. Nós tínhamos de ler Os Maias obrigatoriamente no liceu, e não foi um sacrifício, pelo contrário, foi um verdadeiro prazer. Não só o prazer da escrita de Eça, como por certo cosmopolitismo que ele introduz na escrita. É um homem que está no país, mas, até pela sua experiência diplomática, está muito além do país. E, depois, Sofia de Mello Breyner. comecei pelos contos infantis, a Menina do Mar, nomeadamente, e passei, depois, para a poesia, que me ajudou a compreender muito melhor a cultura clássica e o Mediterrâneo. Sintomaticamente, uma das primeiras exposições que fizemos foi sobre o Mediterrâneo, chamada Thalassa Thalassa, o Mar e o Mediterrâneo na obra de Sofia de Mello Breyner Andresen. Escolhemos um conjunto de poemas, que enquadrámos com peças apropriadas, de pintura e de fotografia, da coleção da Culturgest. Pensámos que seria também uma bonita homenagem a Sophia traduzir alguns dos seus poemas para grego nesta exposição. Tivemos aí o apoio fundamental da Embaixada da Grécia que nos pôs em contacto com um fantástico tradutor, Nikos Pratsinis. .“Vitória em Aljubarrota não é graças ao quadrado, que não existe nem seria necessário” .Mariagrazia Russo: “O mito de Vasco da Gama deve-se muito a Luís de Camões”.Guilherme d’Oliveira Martins: “O que distingue e une a Geração de 70 é a ideia de modernizar Portugal”