O famoso quadrado português na batalha de Aljubarrota de 14 de agosto de 1385 que explicaria a vitória sobre os castelhanos mais numerosos é um mito, como dizem no livro, mas é um mito que se popularizou porquê?Paulo M. Dias (PMD): Há um mau entendimento da fonte, ou seja, aquilo que Fernão Lopes diz é mal interpretado e, portanto, a disposição dos portugueses no terreno não é percebida. E só vai ser percebida em finais do século XX, por João Gouveia Monteiro. Não há ali quadrado nenhum, porque a disposição do terreno não precisa de um quadrado, nem isso é uma tática da época. Ou seja, se nós olharmos para o campo de São Jorge, percebemos que não há qualquer necessidade de haver tropas nos flancos, por exemplo, que estão protegidos porque se está numa elevação e tem ali umas ribeiras. Os castelhanos poderão atacar pela frente, apenas para o local para onde os portugueses estão virados. Portanto, não há sentido algum em colocar tropas num local de onde não poderá vir um ataque. É sim, num ponto de passagem onde poderão atacar, colocada carreagem portuguesa com alguns peões e alguns homens de armas para defender e há, de facto, já mais para o final da batalha, um ataque da ala direita castelhana, de cavalaria, a essa zona para tentar atacar a retaguarda portuguesa. Mas, essencialmente, é má interpretação.Ou seja, ganhámos mesmo em inferioridade numérica, mas não foi graças ao quadrado...PMD: Não é graças ao quadrado, que não existe nem seria necessário. As pessoas, quando se pensa no quadrado, pensam naquelas táticas napoleónicas dos homens ajoalhados com os mosquetes, com as baionetas, à espera de uma carga de cavalaria, como em Waterloo, os ingleses à espera dos franceses de Napoleão. Isso não acontece em Aljubarrota, nem é necessário que aconteça. O que há é uma grande manipulação do terreno pelos portugueses, um aproveitamento excelente, com abatises, com covas de lobo, para afunilar os castelhanos numa frente de combate mais curta, para que a sua vantagem numérica seja menos importante no momento do embate entre as duas forças.Outra ideia muito forte associada a Aljubarrota é a importância dos ingleses. Esses arqueiros são importantes para o desfecho da batalha?PMD: Os ingleses são algumas centenas de arqueiros. Estão colocados nas alas portuguesas como os besteiros portugueses. E com este intuito de dificultar os castelhanos, para desregular o avanço e para afunilar, para obrigá-los a juntarem-se no centro. Portanto, imaginemos uma linha, a linha da vanguarda portuguesa, composta por tropas. Tem duas alas que se estendem nas laterais, e aí estão os atiradores, estão os arqueiros ingleses, estão os besteiros portugueses, que vão disparando. E, obviamente, uma pessoa, quando está a ser alvejada, vai-se afastando, vai-se juntando ao centro, e, portanto, os castelhanos e também os franceses vão-se afunilando e comprimindo no centro. E quando chegam à vanguarda portuguesa, estão numa frente muito menos extensa e, portanto, são mais portugueses a bater nos castelhanos do que castelhanos a bater nos portugueses.Mencionou os franceses, porque há mais gente a combater do lado dos castelhanos.PMD: Exatamente. E há portugueses também no lado castelhano. O que significa é que as coisas nunca são preto e branco.Depois da batalha, há uma perseguição aos castelhanos, que é quando aparece a Padeira de Aljubarrota. É uma figura mítica, mas que sintetiza o povo português a lutar?João Nisa (JN): Sim, o que ficou para a história foi a perseguição movida pelos populares, especialmente da zona de Leiria, aos castelhanos em fuga. Aliás, até há quem refira que é possível terem morrido mais castelhanos após a batalha, do que durante, porque muitos morreram às mãos da população, que simplesmente apanhava os castelhanos e retribuía a gentileza que eles tinham feito quando passaram pelas casas. Portanto, são muitas mulheres e são muitos homens a atacar os castelhanos que fugiam desordenadamente. Fernão Lopes, o que fala nas crónicas, é que os populares matavam 5, 6, 7, 8 castelhanos, mas nunca referiu exatamente a figura da padeira. O que é que acontece? No século XVI, aparece pela primeira vez a referência à padeira de Aljubarrota, que a partir daí começa a entrar naquilo que será a mitologia em redor desta batalha. Tanto assim é que há um visitante espanhol que, em final de século XVI, veio mostrar a um armazém de Lisboa a pá da Padeira de Aljubarrota.Figura histórica incontestável é D. Nuno Álvares Pereira. Sem este chefe militar, o resultado poderia ser diferente?JN: Sim, Nuno Álvares Pereira é claramente um indivíduo diferenciado. Era um jovem com 25 anos e que na altura já tinha experiência militar. Já tinha feito uma mini Aljubarrota nos Atoleiros cerca de um ano antes. Que é uma batalha que não é decisiva...JN: Sim, mas é vitória muito importante, sobretudo para moralizar as tropas portuguesas. Nuno Álvares Pereira tinha um grande sentido de liderança, um grande sentido de disciplina e, acima de tudo, sabia ler perfeitamente os momentos das batalhas e sabia prepará-las convenientemente, tal como aconteceu em Aljubarrota, com os fossos, os abatises, - estacas, pilhas de madeira empilhadas de modo a impedir a progressão do inimigo -, e as covas de lobo. A própria escolha do terreno terá sido tudo uma ideia que partiu de Nuno Álvares Pereira, que a apresentou ao rei, que terá aceitado, reconhecendo essas capacidades.Além de ter pensamento estratégico, como líder de homens também se afirma em plena batalha?JN: Nuno Álvares Pereira tem uma particularidade enorme, que é estar sempre na vanguarda junto aos seus homens. Para mostrar que são companheiros de armas, que o que lhes sucede acontece a ele também. Aliás, o irmão dele vai estar no lado oposto, nos Atoleiros e também em Aljubarrota. E os homens não queriam ir, porque diziam que o irmão dele está no outro, mas ele respondia “não há problema, a nossa causa é justa, ele escolheu o lado dele, nada temo”. Portanto, é um indivíduo que lidera a partir da frente, é um indivíduo que é um disciplinador, isso é, mas é corajoso e é audaz. E isso faz toda a diferença.A outra figura-chave é D. João I. Como é que o Mestre de Avis, que é um filho ilegítimo de D. Pedro I, chega ao trono nesta crise de 1383-1385?PMD: O Mestre de Avis surge como figura extremamente importante logo em 1383, porque se vai ligar intimamente ao processo de revolução que começa em Lisboa para afastar Leonor Teles, e depois mais tarde vai-se converter também num esforço para impedir o avanço castelhano e as ambições de D. Juan I. O Mestre de Avis é, de facto, um bastardo do rei D. Pedro, tal como são os filhos de Inês de Castro, também outro D. João e um D. Dinis. Só que há uma grande questão aqui, é que os dois filhos de Inês de Castro estão em Castela e assim que as coisas começam a dar para o torto em Portugal, são presos. Quando chegamos às cortes de Coimbra em março-abril de 1385, João das Regras vai ter uma argumentação em favor do Mestre de Avis, muito clara. Todos os herdeiros de D. Pedro I são ilegítimos, portanto “estão todos ao mesmo nível, mas só um está cá desde o início a combater contra os castelhanos. Só um esteve no cerco de Lisboa, só um está aqui, que é o Mestre de Avis”. E, portanto é essa a ideia da legitimidade do mestre, que vai ser rei, que vai ser escolhido pelo reino como rei.Ser eleito faz de D. João I um rei único na história de Portugal?PMD: É um rei bastante singular, porque é eleito numas cortes e as cortes são reuniões dos representantes da nobreza, do clero e dos concelhos, portanto do povo. E são estes representantes - que apesar de tudo não representam o reino inteiro, porque estamos num período que é de guerra civil, parte do reino alinha com Juan I de Castela - que vão escolher o Mestre de Avis. E note-se um pormenor importante, é que nesta altura está em Coimbra Nuno Álvares Pereira com umas centenas de escudeiros bem armados para garantir que a escolha correta é feita.Juan I de Castela é casado com D. Beatriz, que é filha de D. Fernando, o nosso rei que morreu em 1383 sem filho varão. É por isso que a solução para o reino ou é a filha casada com o rei castelhano ou são os irmãos bastardos?JN: Sim, na realidade D. Fernando já se tinha comprometido, já sabíamos que a rainha de Portugal seria sempre D. Beatriz. Porquê? Porque D. Fernando assinou com Castela o Tratado de Salvaterra de Magos, que é o rescaldo daquilo que foi a política externa de D. Fernando, as denominadas Guerras Fernandinas, entre 1369 e 1382. Todas com um resultado péssimo para as armas portuguesas. E o que fez foi dar em casamento a filha ao rei castelhano . Segundo o Tratado, os reinos permaneceriam sempre independentes, não haveria nenhum problema com isso. Se D. Fernando fosse vivo e tivesse ainda um filho varão, seria ele a reinar, se D. Fernando falecesse, seria a filha. Caso a filha falecesse enquanto casada com Juan I de Castela, seria ele o rei de Portugal. Se houvesse um filho de ambos, seria esse o novo rei de Portugal. O que acontece? Obviamente, quando D. Fernando morre em outubro de 1383, deu-se uma espécie de uma paz podre, porque a maioria dos portugueses veriam que isso era uma situação que não se poderia concretizar. E logo a partir desse momento, existiram movimentações no sentido de não se aceitar o partido castelhano, até porque Juan I começou a mobilizar-se para entrar em Portugal, onde quem estava a presidir aos destinos de Portugal era Leonor Teles como regente, em nome da sua filha, D. Beatriz. Ora, os eventos precipitaram-se e o que é certo é que começaram a aglutinar-se algumas vontades em torno do Mestre de Avis, e em dezembro de 1383, este, juntamente com outros homens, entra no Paço da Rainha e mata o Conde Andeiro, que era o braço direito de Leonor Teles. A partir daí, temos uma mobilização grande no reino, mas sobretudo em Lisboa, e nomeadamente no Convento de São Domingos, onde os mesteirais, portanto, as pessoas que têm os ofícios mecânicos, o elegeram como regedor e defensor do Reino. Ora, nesta reunião não estiveram os grandes burgueses de Lisboa, que foram pressionados pelos ditos mesteirais a apoiarem também a causa do Mestre de Avis, o que viria a acontecer no dia seguinte, nos Paços do Concelho.O país está dividido, em guerra civil, mas Lisboa é decisiva?PMD: Lisboa desempenhou um papel fundamental desde o primeiro momento. Há esse primeiro momento, em que são os mesteirais, a gente mais popular, que decide, “sim, somos pelo Mestre de Avis, somos contra Leonor Teles”, e depois há então a assunção da questão pela própria oligarquia municipal, e Lisboa tem já um peso muito importante. É uma cidade bastante grande, bastante rica, e vai lucrar imenso com este apoio. É certo que vai sofrer bastante com o Cerco Castelhano de 1384, mas quando a guerra acaba, Lisboa vai ser uma cidade muito mais importante e muito maior. Ganha uma importância que nunca mais vai perder.O casamento de D. João com Filipa de Lencastre é estratégico para a dinastia de Avis? É de referir também que esta nossa guerra está enquadrada na Guerra dos 100 Anos, e por isso falámos há pouco de ingleses e de franceses em Aljubarrota.JN: Sim, é estratégico e visa dar, primeiro, um sinal claro do prestígio que D. João I foi ganhando. É importante referir que após Aljubarrota e até ao casamento, são dois anos, portanto, D. João I casou em 1387. E sobretudo foi casar com uma casa reinante de alto nível. Com uma filha de João de Gante. O que é importante aqui é que, para o próprio João de Gante, Portugal é visto como uma forma de ele próprio reclamar o trono castelhano, uma vez que ele era casado com uma filha de Pedro Cruel, que foi assassinado pelo irmão Henrique de Trastâmara. Portanto, era ali uma conjugação muito interessante de vontades. Portanto, nós só conhecemos o Tratado de Windsor, mas a verdade é que tem outro tipo de implicações. E obviamente que ter uma rainha inglesa vai mudar não só o comportamento da própria corte portuguesa, como vai influenciar aquilo que mais tarde será a própria educação dos filhos do casal.Aquela ideia da Ínclita Geração de que fala Camões, é porque estes príncipes são muito mais bem preparados do que seria a tradição da casa real portuguesa antes desta inglesa?JN: Sim, se formos a ver, todos eles são notáveis. Têm uma filha, Isabel, que casa com o Duque da Borgonha, portanto, que é uma figura incrível, mesmo dentro da própria esfera de influência, que é francesa. Depois temos o infante D. Pedro, temos o infante D. Henrique, enfim, se formos nomeá-los um a um… o infante de D. Fernando, que depois morre cativo em Fez, o condestável D. João e o próprio rei D. Duarte…E o prestígio da nascente dinastia de Avis tem muito a ver com este casamento e esta geração?PMD: Há uma conjugação de duas grandes personagens, D. João I e Dona Filipa de Lencastre, claramente. D. João I também não era bruto nenhum. Às vezes há um bocadinho essa ideia porque ele passou boa parte da vida em guerra. Mas foi criado por uma ordem militar, era filho de rei, também teve uma excelente educação, vai dedicar-se à caça, e, aliás, é responsável por um livro sobre caça, especificamente, o livro da montaria. Portanto, D. João I não era bruto nenhum, não era só Filipa de Lencastre que era refinada. É, de facto, uma combinação extraordinária que vai dar origem a uma geração de príncipes e uma princesa também muito bem educados, que são ainda hoje fascinantes para muita gente. Eu lamento que o rei D. Duarte não tenha vivido mais 30 anos, por exemplo, teve um reinado muitíssimo curto, 5 anos, apesar de ter governado mais tempo durante o reinado do pai, governou em nome de D. João I muito tempo, mas sim, há este prestígio que está ligado e depois vai ligar também à questão da tomada de Ceuta mais tarde. Há uma dinastia que se vai afirmando porque tem necessidade de se afirmar.