A ilustração da contracapa deste Dicionário, por João Abel Manta, revela imediatamente quem são as grandes figuras da Geração de 70?Indiscutivelmente. Aliás, não foi por acaso que escolhemos esta ilustração, uma vez que os cinco elementos que aqui estão são exatamente aqueles que mais marcam esta geração que, no entanto, tem várias componentes, mas a dimensão crítica é a mais importante. Eu diria que esta ilustração de João Abel Manta e o prefácio de Eduardo Lourenço marcam muito esta obra. Portanto, representados pelo João Abel Manta, temos Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Antero de Quental e Guerra Junqueiro. São os mesmos cinco que foram fotografados no Palácio de Cristal, no Porto, quando estes cinco amigos se reuniram para oferecer um presente à noiva de Eça de Queiroz, à dona Maria Emília. Então, reuniram-se e decidiram oferecer um leque, um leque que tinha cinco cães. E, justamente, foi a partir da referência aos cinco cães, no leque para oferecer à noiva de Eça de Queiroz, que eles se reuniram e essa fotografia tem ao centro Antero de Quental. E não por acaso. Está ao centro porque é a figura, indiscutivelmente, que teve uma função agregadora e uma função de coerência relativamente àquilo que designamos Geração de 70.O que unia estas figuras? É o próprio Antero de Quental, é a ligação à Universidade de Coimbra, são os interesses culturais e políticos partilhados?O que distingue estas personalidades, a partir logo de Coimbra, é o facto de Antero de Quental ser o catalisador destes jovens, sendo certo que nem todos os que compõem a Geração de 70 vêm de Coimbra. Recordo Jaime Batalha Reis, que não está nesta ilustração, mas que foi um elemento marcante, e Oliveira Martins, um autodidata, que se junta aqui em Lisboa ao grupo do Cenáculo. Mas, de facto, o que distingue e une esta geração é a ideia de modernizar Portugal. E esta ideia é muito marcada através da criação de uma economia social. Naturalmente, nos primeiros livros, designadamente as duas obras iniciais de Oliveira Martins chamam-se Teoria do Socialismo e Portugal e o Socialismo. Mas não há uma redução ideológica. Quando é proibida a realização das Conferências do Casino, da conferência de Salomão Saragga, porque as primeiras conferências realizaram-se, a de Antero de Quental chamou-se O Espírito das Conferências, a segunda foi Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, depois falou Adolfo Coelho, Eça de Queiroz, mas, no momento em que a conferência de Salomão Saragga, porque invocava temas religiosos, é proibida, o primeiro subscritor contra a proibição da conferência é Alexandre Herculano, que está distante do pensamento destes jovens. Um consagrado, como Herculano, vai dar a mão a jovens que acabam de sair da universidade e que têm uma posição iconoclástica. Mas porquê? O que é que Alexandre Herculano veio dizer? “Eu sou a favor da manutenção e da realização destas iniciativas porque sou a favor da liberdade”. E é curioso ver que esta nova geração é uma geração que precisa da liberdade, mas associa à liberdade a dimensão social, a compreensão, afinal, das alterações da sociedade industrial que está a nascer.Estamos na época de Dom Luís, da regeneração e do rotativismo. Esta Geração de 70 tem uma tentação republicana ou está confortável com a monarquia constitucional?Não é tentação, tem uma orientação claramente republicana. Eles são republicanos, originalmente. Mas, como um dia dirá José Fontana, outro dos membros desta geração, “para nós o importante não é a questão do regime”. Ao contrário, por exemplo, de Teófilo Braga, que faz parte desta geração também. Portanto, há esta questão, o importante não era o regime, não era a questão do regime, mas eram republicanos, indiscutivelmente. Para eles a ideia de a escolha cidadã através do sufrágio universal deve ser garantida e preservada.Já que falou do sufrágio universal, que mesmo os republicanos em 1910 não vão cumprir, porque não dão o direito de voto às mulheres, há mulheres na Geração de 70?Mulheres na Geração de 70, eu digo duas, antes de mais. A primeira professora catedrática da nossa Universidade, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, e Maria Amália Vaz de Carvalho. São duas mulheres que participaram e cujo contributo foi importante. Aliás, este dicionário consagra e refere quer Carolina quer Maria Amália.Na época, em Portugal, já falámos, estamos num período de um certo apaziguamento das tensões políticas, mas na Europa, se pensarmos em 1870, 1871, estamos num momento muito complicado, a Guerra Franco-Prussiana, a Comuna de Paris. O que vem de fora influencia a Geração de 70, sobretudo o que vem de França?Com certeza que sim. As primeiras Conferências do Casino Lisbonense, Conferências Democráticas assim designadas, são exatamente coincidentes com aquilo que ocorre em Paris na Comuna. A Comuna ocorre justamente em maio de 1871. E, portanto, essa necessidade de pôr Portugal ao ritmo da Europa é algo de essencial para esta geração.E o ritmo da Europa é o que é marcado pela França, apesar de derrotada na guerra?Sim, com certeza, porque é a industrialização, a questão da industrialização. E, portanto, neste momento, a França é, naturalmente, uma referência que não pode deixar de existir.E a influência cultural, porque estas são pessoas que estão imbuídas na cultura francesa...Também, mas é curioso ver, por exemplo, que Oliveira Martins é casado com uma senhora de origem inglesa.E Carolina Michaëlis é uma alemã casada com o português Joaquim de Vasconcelos.Pois, com certeza, Carolina Michaëlis é alemã. Portanto, esta ideia de abertura e de cosmopolitismo está muito presente nesta geração. E reserva, afinal, a sua própria atualidade. Que é o que nós vemos quando a Geração de 70 passa tão facilmente para o século XX, porque o que é facto é que é a geração que se projeta mais facilmente para além do tempo, que é um tempo de dúvida, um tempo de decadência, porque a monarquia está a chegar ao fim. Sim, é verdade que, quando falamos do rotativismo e quando falamos de Dom Luís e falamos da regeneração, nós falamos de um tempo único, um tempo de liberdade de espírito, porque quando o futuro Duque de Ávila proíbe as Conferências, isso é contra aquilo que é a tendência, porque as Conferências foram convocadas, e as primeiras realizaram-se livremente.A linha vermelha foi a religião?Foi, foi, exatamente. O problema religioso é que, justamente, suscitou esta proibição.A crítica ao rei era possível, mas à religião católica era mais complicada...Na prática foi isso. Porque Salomão Saragga foi o primeiro autor que tratava de um tema religioso. Atenção, quem proibiu as Conferências não sabia sequer o conteúdo. Só o tema. Portanto, a Geração de 70 é marcada pela raiz republicana, claramente, pelo cosmopolitismo e pela necessidade de pôr Portugal ao ritmo da Europa. E aí juntava-se à primeira geração romântica, de que os símbolos maiores são Almeida Garrett e Alexandre Herculano, ambos referências intelectuais de primeira grandeza para esta geração.Porque é que uma geração que tem este espírito reformista e este entusiasmo todo, acaba também, mais tarde, por causa de Oliveira Martins, por adotar aquela designação de Vencidos da Vida?A expressão Vencidos da Vida é uma ironia. Porque eles não foram vencidos, o professor Eduardo Lourenço chama a atenção exatamente para isso. Eles passaram a ser conhecidos como Vencidos da Vida, mas não foram vencidos. As ideias que eles trabalham, imediatamente não foram consagradas. Mas, a prazo, sim. E a democracia portuguesa contemporânea é muito tributária daquilo que a Geração de 70 nos ensinou. Nós relemos a Geração de 70. Portanto, esta etiqueta dos Vencidos da Vida agarra-se a eles, mas é injusta, é irónica. A expressão Vencidos da Vida resulta de uma conversa entre Ramalho e Oliveira Martins. Eles eram vizinhos, Ramalho morava no 2.º andar, Oliveira Martins morava no 1º. E, então, Ramalho descobriu, em França, um grupo que se designa assim mesmo, Battus de la Vie. Bom, é preciso dizer que vencidos não é uma tradução literal de battus. Battus é quem vai à luta, não é? Quem vai à luta, dá e leva. E, portanto, battus é quem foi ao combate e, pronto, sofreu isso. E Oliveira Martins diz “battus de la vie. Então, nós somos esses, Vencidos da Vida”.Oliveira Martins é seu tio bisavô. É uma figura, como disse, autodidata, um homem de uma grande cultura, que deixa uma produção impressionante. Podemos dizer que, apesar de Eça ser mais famoso pela faceta de romancista, a figura da Geração de 70 que deixou o maior legado foi Oliveira Martins?Ele morreu com 49 anos e deixou uma obra fantástica. A geração, toda ela, tem um contributo. Ou seja, porque, se nós virmos, Eça de Queiroz é o grande romancista. Devo explicar que, nessa altura, as pessoas não se tratavam por tu, mas Oliveira Martins e Eça de Queiroz tratavam-se por tu. E Antero de Quental tratava Oliveira Martins como um irmão. Aliás, a certa altura, pouco tempo depois de Oliveira Martins conhecer Antero de Quental, Antero teve uma crise nos Açores. Uma grave crise. Oliveira Martins dirá, “eu tirei-lhe a arma da mão”. E quando mais tarde ocorre a morte de Antero, o suicídio, Oliveira Martins dirá, “se estivesse com ele, ele não se teria matado”.Ou seja, esses homens não tinham só afinidades intelectuais, criaram uma forte amizade entre eles.Este grupo, pelo menos, mais restrito, sim. Todos, todos, tinham uma grande amizade. Ramalho era mais velho, tinha sido professor de Eça de Queiroz, no Porto, e, como digo, mantêm uma relação muito forte. Mas era o único que tinha uma diferença de idade. Falando de Antero de Quental, falando de Oliveira Martins e de Eça de Queiroz, falamos de uma relação muito próxima. Tão próxima que nós vamos ver que o grupo dos Vencidos da Vida tem Eça de Queiroz também. Muitas vezes pergunta-se, como é que ele aparece na fotografia? A Eça de Queiroz apanharam-no cá vindo de Paris num almoço em casa do Conde de Arnoso, mas ele participou ativamente. Ele era solteiro ainda quando se faz a fotografia do Palácio de Cristal e depois casou-se, já tinha filhos, já era diplomata em Paris, mas manteve uma relação de grande confiança e de grande convergência de ideias.O Diário de Notícias e também Eduardo Coelho, o primeiro diretor, aparecem neste Dicionário. O Diário de Notícias surge em 1864, Eça vai ser colaborador, Ramalho igualmente. O Mistério da Estrada de Sintra começa por ser um folhetim do jornal. É o jornal desta Geração de 70, de certa forma?É um jornal da Geração de 70. E porquê? É um jornal popular e é um jornal de notícias. Hoje, isso é muito importante. A preocupação da verdade dos factos. A verdade, para estes homens, não é uma realidade metafísica ou abstrata. A verdade é estar aqui este livro, ou não estar. É estar a ver pessoas com fome, pobres. Não a ver operários. O Eduardo Coelho teve uma preocupação. Tornar o jornal acessível, o jornal com notícias, e um jornal que deu lugar a uma nova profissão, o ardina, que leva o jornal às pessoas. Aliás, quando vamos ao Bairro Alto está lá o Eduardo Coelho, no miradouro de São Pedro de Alcântara, e há a própria rua do Diário de Notícias.É um diário de notícias, a fazer justiça ao nome, mas também é um jornal com preocupação cultural desde cedo. Com o Mistério da Estrada de Sintra, mas também, por exemplo, ao associar-se à celebração do tricentenário da morte de Camões...Completamente. No que se refere ao Mistério da Estrada de Sintra, em que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão vão, naturalmente, escrever um romance. É no Mistério da Estrada de Sintra que nasce Fradique Mendes, Carlos Fradique Mendes. Aparece como um pirata, como uma figura secundária. E, portanto, o Diário de Notícias representa de algum modo o espírito da Geração de 70, ainda que os órgãos oficiais tenham sido A Província, no Porto, e O Tempo, dirigido por Carlos Lobo d'Ávila. Sobre os nomes que assinam este dicionário, coordenado por si, por Ana Maria Almeida Martins e por Manuela Rêgo, sei que é injusto pedir para destacar alguns, mas já falou de Eduardo Lourenço, em relação ao prefácio. Quer acrescentar mais alguns?Quero. Para mim é relativamente fácil, por uma razão. Falámos agora de Eça de Queiroz. Carlos Reis é o maior especialista vivo de Eça de Queiroz. E, naturalmente, aqui está. O João Bigotte Chorão é o melhor especialista de Camilo e faz-nos aqui o diálogo entre Eça de Queiroz e Camilo. Também entre aqueles que já nos deixaram, porque há uma parte muito significativa de autores que já faleceram, José Augusto França é a grande referência relativamente à história da arte do século XIX e século XX. E faz-se essa ligação e essa ponte. Temos o professor Oliveira Marques, autor de obras absolutamente fundamentais para a compreensão daquilo que é o século XIX e o século XX, designadamente na Primeira República. Para conhecimento e a compreensão da Primeira República em toda a sua expressão. Mais o jornalista Afonso Praça, que aqui está presente, e outro como Raul Rego. Esta ideia de haver vários jornalistas com provas dadas, com contributos extremamente importantes, colaboradores ativos e muito importantes neste livro, significa exatamente esse espírito que era o espírito do Eduardo Coelho de dar ao jornal, de dar à informação, um peso e uma importância. E hoje mesmo, com a renovação tecnológica, as notícias são fundamentais.