Vasco da Gama morreu em Cochim, na Índia, faz 500 anos. Em Sines, onde o descobridor do caminho marítimo para a Índia nasceu em 1469, uma grande conferência sobre o navegador foi organizada pela câmara municipal e a Universidade Aberta. O DN conversou com a palestrante Mariagrazzia Russo, reitora da Università degli Studi Internazionali de Roma, diretora da Cátedra do Instituto Camões “Vasco da Gama”, académica, profunda conhecedora da História de Portugal, tendo sido reconhecida Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique..Em 2024 assinalam-se os 500 anos da morte de Vasco da Gama e também os 500 anos do nascimento de Luís de Camões. Foram Os Lusíadas que imortalizaram Vasco da Gama, o descobridor do caminho marítimo para a Índia?O mito de Vasco da Gama deve-se muito a Luís de Camões. Vasco da Gama, regressado da Índia, foi acolhido como um grande navegador, um grande descobridor de terras, e tudo o que se seguiu. Mas a verdadeira imagem do símbolo que Vasco da Gama representou, acho que o devemos a Luís de Camões, umas décadas depois..Ou seja, ter sido escolhido pelo poeta como a figura central da epopeia portuguesa?Como figura central e figura simbólica do povo português. Símbolo do povo português, dos Descobrimentos que os portugueses começaram e levaram para a frente. Assim, Vasco da Gama representa um símbolo daquela época de ouro da cultura portuguesa que foi o século XVI..Vasco da Gama está também depois presente na literatura portuguesa? É sabido que Fernando Pessoa retomou o navegador que chegou a Calecute em 1498. E outros autores, mais recentes?Sim, Vasco da Gama aparece muito na literatura portuguesa. O mito continuou ao ponto que Fernando Pessoa o retomou na Mensagem e o retomou como, digamos, a chave de interpretação para o Quinto Império, de um novo império civilizacional, assim como o Padre António Vieira. Portanto, Vasco da Gama pôde ser identificado pelo povo português como um símbolo e usado para revitalizar a cultura portuguesa, a imagem que os portugueses têm de si próprios. E depois continuou presente na história e na literatura, sobretudo no período em que se celebrou o quinto centenário da chegada à Índia em 1998, com a Exposição Internacional de Lisboa. Mas naqueles anos houve também quem o retomasse como imagem desses portugueses que ainda vivem com saudades da época de ouro. E então foi revisto de uma forma muito crítica, por exemplo por Lobo Antunes em As Naus. Depois será a vez de Mário Cláudio, que vai reescrever e reinterpretar um pouco as empresas de além-mar. Até chegar a José Saramago, com O Conto da Ilha Desconhecida. De resto sabemos que Saramago é um desmistificador por excelência. E também Gonçalo M. Tavares, com Uma Viagem à Índia, revê o Oriente com uma visão diferente da que os portugueses tiveram, claro, com as grandes epopeias de Vasco da Gama..Mas o mito continua. Continua até hoje, não é?Em Portugal não tenho dúvidas de que o mito continua. Basta pensar na Expo’98, na ponte sobre o Tejo que se chama Vasco da Gama, nos centros comerciais, em clubes de regata, associações desportivas, etc. Ou seja, está muito presente. Mais do que qualquer outro dos navegadores..Mas quando penso no imaginário mundial, parece escassa a presença de Vasco da Gama. Até inspirou óperas de Meyerbeer e de Bizet no século XIX, mas que quase já não são representadas. Também não é tema para Hollywood e, quando penso na literatura, julgo não ser uma figura que passe muito as fronteiras portuguesas. Ou seja, não há um mito global de Vasco da Gama, é um mito que ficou muito dos portugueses, mesmo que alguns historiadores estrangeiros falem de 1498 como o início da era gâmica?Em parte concordo. Não podemos, decerto, esquecer que a viagem de Vasco da Gama é um feito que teve repercussões mundiais, e por isso ele é, por si, talvez a primeira verdadeira personagem global. Mas é verdade também que o mito dele não saiu muito das fronteiras de Portugal. Antes de mais, podemos dizer que não saiu a informação, na época, porque havia uma política do sigilo, devida à qual os reis não queriam que saíssem informações sobre os Descobrimentos. Mas mesmo assim, todas as informações que saíram, acabaram por se difundir na Europa, sobretudo em Itália, onde temos muitas cartas de comerciantes e navegadores, que escrevem aos representantes políticos e comerciais, a dar notícias do que estava a acontecer em Portugal, contrariando o segredo de Estado..E na literatura, propriamente dita?Em termos da literatura, sim, não saiu muito, se por literatura entendemos romances, contos, poemas, teatro. Mas a figura de Vasco da Gama é, de toda a forma, muito importante no contexto da assim chamada literatura odepórica, ou seja relatos, epístolas, diários, que dizem respeito à navegação. Em Itália, a figura de Vasco da Gama não foi muito representada: conhecia-se, mas não de uma forma muito relevante. Por exemplo, Giacomo Leopardi, escritor das primeiras décadas do século XIX, retomou Vasco da Gama numa das suas Operette Morali, onde o autor retoma exatamente o episódio do Adamastor, citando-o em nota. Na altura, Camões era introduzido nas antologias literárias das escolas italianas e a presença de Vasco da Gama como protagonista da epopeia era conhecida. Porque o mito, a difusão no estrangeiro em termos literários desta figura deve-se, sem dúvida, a Luís de Camões. Pelo contrário, o diário de Álvaro Velho ou de João de Sá que relata a viagem de Vasco da Gama só foi publicado em 1838. Depois, a partir de finais do século XIX, este imaginário coletivo vai-se apagando..Os Lusíadas foram traduzidos para italiano quando? Tiveram impacto?Os Lusíadas foram traduzidos no século XVII por Carlo Antonio Paggi, mas a obra já era conhecida, porque Torquato Tasso escreve um soneto a eles dedicado, e também Giovan Battista Marino os conhecia. Portanto, o mito de Vasco da Gama passa através do conhecimento dos próprios Os Lusíadas. Mas Leopardi tinha uma edição portuguesa, não só a tradução italiana..Quando era criança, na escola, em Itália, estudavam os Descobrimentos portugueses e a figura de Vasco da Gama?Vasco da Gama é a única personagem portuguesa que se conhece bem em Itália. Por exemplo, de Magalhães, Fernão de Magalhães, quase ninguém sabe que é português, porque este nome é conhecido em Itália como “Magellano”. Portanto, os italianos que leem “Ferdinando Magellano” não sabem que é Fernão de Magalhães, não o associam a Portugal, porque o nome foi completamente modificado. Pelo contrário, Vasco da Gama, que nós muitas vezes pronunciamos à espanhola, Vasco de Gama, é, entre os estudantes, a única figura portuguesa que se conhece. Que é identificado como português. Agora, claro, o que conhecem é Cristiano Ronaldo [risos]..Mas ainda hoje, na escola, Vasco da Gama aparece nas matérias de História?Sim, e é essa a razão pela qual, na minha universidade, a Università degli Studi Internazionali de Roma - UNIINT, demos o nome de Vasco da Gama à Cátedra portuguesa, à Cátedra do Instituto Camões. Porque tendo como objetivo a investigação e o ensino nas escolas, é a única personagem que os estudantes italianos conhecem. Os adultos cultos, claro, conhecerão também José Saramago, conhecerão Fernando Pessoa, mas nas escolas, conhece-se, sobretudo, muito bem a figura de Vasco da Gama..Como reage quando hoje há tanto debate sobre figuras como Cristóvão Colombo, como Fernão de Magalhães, como Vasco da Gama? Ou seja, quando se olha para estas figuras, de grande dimensão da sua época, mas sem valores morais do século XXI? O que é que lhe parece o questionar dessas figuras?Eu sou uma historiadora, e, portanto, coloco sempre as figuras no seu período histórico. Claro que hoje poderíamos ler as coisas de forma diferente. É evidente. Mas, naquele período, Vasco da Gama era o que era. Foi a pessoa que chegou onde ninguém tinha chegado, que difundiu a língua portuguesa no mundo, que deu a possibilidade de cristianização do mundo, que abriu novas rotas comerciais. Eram os valores que havia na época. Portanto, eu gosto de localizar e focar as pessoas no próprio período histórico. Agora, é claro que nós podemos sempre reler a história, mas julgar com os parâmetros de 2024 um acontecimento de 1498 é exagerado..Mas é interessante, por exemplo, e este é um ponto diferente, ver como os historiadores indianos, como o biógrafo Sanjay Subramanyan, olham para Vasco da Gama. Porque ali não se está a olhar a figura com os óculos do século XXI, está sim a usar as fontes da época, só que asiáticas. E, portanto, tal permite ter uma ideia muito mais completa do que foi Vasco Gama.Claro, claro. Sim, com certeza. Ele tem outras fontes, que são as fontes de lá. E que ele publica. E com isso podemos ver a outra face da moeda. Portanto, nós temos um horizonte europeu, eurocêntrico. Ele tem um horizonte indocêntrico. Então, claro que, olhando da outra perspetiva, tem que se criticar o que eles viveram na época. Há sempre que encontrar um equilíbrio, entre as duas coisas..A Itália é também um país de grandes viajantes, desde o mítico Marco Polo, viajante por terra até tão longe como a China, mas também de grandes viajantes marítimos. Porque Colombo é italiano, Américo Vespúcio, que dá o nome à América, é italiano, Pigafetta, que faz a viagem com Magalhães e depois com Elcano, testemunha fundamental dessa primeira viagem de circum- -navegação, é um italiano. Os italianos são muitas vezes vistos como os grandes navegantes do Mediterrâneo, graças aos genoveses e aos venezianos. Mas, na verdade, também tiveram uma papel importante no lançar dos Descobrimentos portugueses. Em Itália é conhecido esse papel dos italianos?Acho que nós, em Itália, não nos damos conta disso. Sim, existe Colombo, existe Vespúcio, mas não damos muita importância aos feitos que fizeram os italianos. Isto tem a ver muito, também, com estas personagens (excluindo a figura de Marco Polo que tem outro percurso) não terem mudado a história de Itália, ou terem mudado a história de Itália piorando-a, porque de facto favoreceram outros povos, os portugueses e os espanhóis, não os italianos diretamente. Depois, é claro que o comércio favoreceu também aos italianos, mas muito indiretamente em respeito aos povos ibéricos. E há também outro aspeto: às vezes, os italianos, não acreditamos muito nas nossas capacidades, e nisso somos muito parecidos com os portugueses, que também não acreditam muitas vezes no valor que eles têm..Quem são os grandes mitos da Itália?Os grandes mitos da Itália… o mais forte talvez seja Marco Polo... claro temos também um Leonardo, um Miguel Ângelo, mas não me parece que ninguém tenha as características de mito como aqui as de Vasco da Gama. Vasco da Gama aqui é muito mais simbólico do que Cristóvão Colombo, por exemplo, para os italianos. Quer dizer, as nossas personagens são muito conhecidas, muitos estudadas, mas ninguém adquire o nível de um vosso Vasco da Gama..Colombo, descobridor da América em 1492, não é um mito italiano?Não. Eu não o percebo assim, pelo menos a partir dos nossos estudantes. Em termos científicos temos imensa documentação, mas em termos populares às vezes não é tão valorizado como deveria ser. Por exemplo, quando eu digo aos meus estudantes que Colombo era italiano e vivia na Madeira, estava casado com uma portuguesa e o rei de Portugal não aceitou o seu projeto, porque já tinha outros planos marítimos, e então bateu à porta dos espanhóis, ficam assim a olhar para mim como sendo uma história que desconhecem completamente, como se a figura de Cristóvão Colombo não pertencesse aos seus conhecimentos de base..Uma pergunta mais pessoal, que tem a ver com a sua relação de muitas décadas com Portugal. Sei que esteve em Sines e olhou obrigatoriamente para o mar. Esta ideia que Vasco da Gama simboliza, mas que é muito mais do que Vasco da Gama, que é a ligação íntima entre Portugal e o mar, como a vê? Daquilo que estudou da cultura portuguesa, da literatura portuguesa, da História portuguesa, o mar está omnipresente? É um elemento distintivo da história portuguesa?O mar representa o olhar do português. Desde as origens, desde as Cantigas de Amigo que olhavam para o mar, para as ondas, até à literatura contemporânea. O mar é um protagonista muito forte da literatura portuguesa. E é também um elemento muito poético. Existe uma atração. Quando nós estudamos a cultura portuguesa, a primeira coisa que comunicamos aos nossos estudantes é exatamente esta vocação que os portugueses têm para o mar. Que era, assim, o famoso virar as costas a Espanha. Então tinham à frente só o mar. Mas não é só isso. É também porque o mar entra na vossa realidade, faz parte da vossa identidade. Vocês sem mar não seriam portugueses.