Joaquim Magalhães de Castro (à direita) com Earl Bartholet, da comunidade do Sri Lanka.
Joaquim Magalhães de Castro (à direita) com Earl Bartholet, da comunidade do Sri Lanka.DR

"Bayingyi de Myanmar mantêm com orgulho, há quatro séculos, o culto católico e muitos costumes portugueses"

Joaquim Magalhães de Castro vive na Indonésia e tem investigado a presença portuguesa na Ásia. Falou com o DN sobre a Conferência das Comunidades Luso-Asiáticas. Não são só os kristang de Malaca.
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Esteve em Díli a participar na Conferência Luso-Asiática, que reuniu comunidades de vários países que reivindicam ligações a Portugal? Estamos a falar de que países?

Sim. Além de ter sido convidado como orador, estive também como representante da AILD – Associação Internacional de Luso-Descendentes. Entre os dias 27 e 29 de junho, a capital de Timor Leste acolheu grupos culturais e representantes das diversas comunidades luso-asiáticas que reivindicam a ascendência portuguesa e a vivem no seu dia a dia. Falamos dos Bayingyi do Vale do rio Mu, em Myanmar, dos Burgher Portugueses da costa leste do Sri Lanka, da comunidade descendente dos “casados” de Goa, da comunidade do Bairro Português de Malaca, dos luso-descendentes de Macau, ditos macaenses, da comunidade do Bairro Tugu, em Jacarta, da comunidade católica de Sica e Larantuca, da ilha das Flores, da comunidade católica do bairro Kudichin (Santa Cruz) de Banguecoque, e ainda dos topasse de Oecusse Ambeno, de Timor-Leste.

É famosa na Malásia a comunidade kristang em Malaca. É a mais forte?

Porventura será. É, seguramente, a mais conhecida e a mais divulgada, pois o governo malaio reconhece-a oficialmente com uma das etnias do país – com direito a estatuto de brumiputra, isto é, ‘filho da terra’ – e promove as suas festividades, que integram o calendário turístico da Malásia. É o caso do Intrudu, (o nosso entrudo/carnaval) e da Festa de São Pedro, o padroeiro das famílias kristang pois todas elas descendem dos pescadores que teimosamente mantiverem a sua identidade e pedaço de ‘chão português’ – o atual Portuguese Settlement – quando outros optaram por se refugiar em Singapura, aquando da transferência de poder em Malaca, dos holandeses para os ingleses. É tal a importância da comunidade kristang que o reputado jornal malaio Star dedicou uma página inteira ao evento. Lembro que a Conferência das Comunidades Luso-Asiáticas parte da iniciativa de um destacado membro da comunidade, o Joseph de Santa Maria, e vai já na sua quarta edição. Desta feita, o governo de Timor-Leste, na pessoa do próprio Xanana Gusmão, decidiu arvorar esta bandeira da Portugalidade, afirmando-a como um “desígnio nacional”; após a assinatura da Declaração de Díli, que encerrou o evento, a Conferência das Comunidades Luso-Asiáticas passou a ser um importante movimento associativo. Um passo gigante, sem dúvida.

Vive na Indonésia. Também há uma comunidade perto de Jacarta que está ligada a Portugal, certo?

Trata-se de uma comunidade luso-descendente que mantém vivo o “crioulo português de Batávia”, outrora língua de prestígio que mestiços e indígenas utilizavam como forma de afirmação social. Apesar da conversão forçada e do isolamento, as gentes do bairro de Tugu mantiveram viva a sua identidade durante séculos. Ali se falava o papiá tugu, crioulo muito semelhante ao papiá kristang de Malaca. Infelizmente, à exceção de algumas palavras avulsas, e ao contrário do que acontece em Malaca, ninguém domina o papiá tugu de Jacarta. O último falante deste crioulo, Jacob Quiko, faleceu em 1978, e o dialecto subsiste apenas em alguns poemas e canções. Aliás, a música é o traço mais característico desta comunidade afamada pela fabricação local de instrumentos: guitarras, macinas (um tipo de bandolim), flautas, violinos e keroncongs de cinco cordas. Keroncong designa um tipo muito especial de música que, tendo como ponto de partida Tugu, se espalharia por toda a Indonésia. O mais conhecido, o keroncong moresco (keroncong mourisco), lembra as mornas de Cabo Verde e é base de muita da música moderna indonésia.

Como se explica a sobrevivência destas comunidades, quando os laços delas com Portugal são inexistentes, às vezes há séculos, como no caso de Myanmar, a antiga Birmânia?

Deve-se, sem dúvida, a um ato de resistência e muita teimosia. A comunidade bayingyi de Myanmar – aquela que de momento vive momentos mais difíceis devido à guerra civil que grassa no país – é um excelente exemplo disso. Isolada no interior do país, a 700 quilómetros do mar, sem contacto com quaisquer mercadores, aventureiros ou padres portugueses desde a sua existência enquanto comunidade organizada, mantém com todo o orgulho, há mais de quatro séculos, o culto católico e muitos dos nossos costumes, embora tenha esquecido a língua e os respetivos apelidos.

Festa de encerramento da conferência.
Festa de encerramento da conferência.DR

Sei que costuma guiar viagens em busca de locais na Ásia com ligação a Portugal. Já fez alguma a um destes locais com comunidades luso-asiáticas?

Sim, já liderei grupos a alguns desses locais, sendo o contacto com as comunidades luso-asiáticas ali existentes o ponto alto da viagem. Pretendo continuar a fazê-lo, haja da parte dos portugueses vontade para tal.

Já agora, a próxima viagem ao Tibete, Ladaque e Nepal está toda planeada?

A próxima viagem deste ano com a agência Pinto Lopes Viagem decorrerá de 28 setembro a 20 de outubro. Pretende recriar o itinerário percorrido nos primórdios dos século XVI por um dos maiores aventureiros portugueses de sempre. Refiro-me ao açoriano Bento de Góis, que das planícies da Hindustão chegou à Grande Muralha da China, atravessando os píncaros do Hindu Kush e desertos e cidades-oásis da Ásia Central. Para o ano, mantêm-se esta e a expedição aos Himalaias (na senda do padre António de Andrade, descobridor do Tibete), e ainda, em agosto, uma viagem à belíssima região do Ladaque, norte da Índia, seguindo os passos de um outro grande aventureiro: Francisco de Azevedo, jesuíta também. Logo no início do ano, oportunidade para descobrir a presença portuguesa no surpreendente Sultanato de Omã.

Voltando ao tema dos luso-asiáticos, conheceu agora em Díli alguma figura que o tenha surpreendido?

Foi com imenso prazer que ali reencontrei alguns membros da comunidade luso-descendente de Sica, pequeníssima aldeia na ilha das Flores. Pude pela primeira vez assistir na sua totalidade a uma representação do Toja Bobu, dança que acompanha uma sandiwara (peça teatral intervalada com danças e canções) inspirada nos autos medievais portugueses. Este ato artístico conta as peripécias da escolha de um noivo para uma princesa. A gente de Sica conhece o enredo da peça, embora não compreenda muito do texto, assim como não o entenderia na sua totalidade nenhum de nós, já que as palavras surgem em formas muito corrompidas e estão associadas a vocábulos malaios. Esse foi, sem dúvida – e a opinião é consensual - um dos momentos altos do evento.

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