Sei que tinha quatro anos quando o Muro de Berlim caiu, a 9 de novembro de 1989. Tem alguma lembrança daquele dia, ou pelo menos cresceu a ouvir falar sobre esses acontecimentos?A minha memória mais clara é a que descrevo no livro: era feriado e um dia excecionalmente quente e ensolarado. A minha mãe e meu pai estavam de folga, então decidimos aproveitar ao máximo, conduzindo até Berlim no velho Trabi. Lembro-me de ficar muito animada quando subimos de elevador e chegámos à plataforma de observação da torre de TV. Todos nas ruas pareciam tão pequenos, como formigas. Apontei para baixo, animada, e gritei que havia cada vez mais formigas a chegar à praça abaixo. Quando o meu pai viu o que eu estava a apontar, ficou branco e disse que tínhamos de ir. Ele tinha avistado polícias armados entre as aglomerações nas ruas ao redor da Alexanderplatz e estava com medo de que a situação pudesse piorar. Era 7 de outubro de 1989 e o regime da RDA tinha realizado as suas comemorações para o 40.º aniversário da fundação da Alemanha Oriental. Honecker havia convidado Gorbachev, e a atmosfera em Berlim estava a ponto de ebulição com contramanifestações a formarem-se e polícias armados a serem enviados para intervir caso a situação piorasse. Não havia como prever o que aconteceria. Os protestos tornar-se-iam violentos? A polícia e o exército receberiam ordens para disparar? Voltámos para casa e assistimos aos eventos desenrolarem-se na TV nos dias e semanas seguintes - havia uma sensação palpável de história a acontecer. Aquela vista da torre de TV ficou registada na minha mente como uma fotografia antiga.Como era a relação da sua família com o sistema na RDA? Tinha um estatuto especial?Como descrevo no livro, o meu pai era oficial da Força Aérea da Alemanha Oriental e a minha mãe era professora. Isso não os tornava especiais, mas significava que ambos trabalhavam em empregos proibidos para pessoas que criticavam o regime. Ambos vinham de famílias da classe trabalhadora, e por isso foram incentivados pelos professores na escola a estudar e preparar-se para empregos que antes eram maioritariamente da classe média. A minha mãe continua a ser professora até hoje.Como a sua cidade natal fica na fronteira com a Polónia, um pouco longe de Berlim ou de Dresden, isso permitia que as pessoas vivessem o dia a dia sem pensar muito em política? Ou o regime era sempre vigilante?Como o meu pai estava na Força Aérea e minha mãe tinha familiares na Alemanha Ocidental, a nossa família era vigiada pela Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Eles tentaram encorajar o meu pai a não se casar com a minha mãe por causa da sua família no Ocidente. Quando casou mesmo, disseram que nunca lhe seria permitido pilotar aviões, para o caso em pudesse ser tentado a fugir do país ou a ajudar outros a fazê-lo. Descrevo no livro como ele foi preso e mantido em confinamento solitário durante dias por ter feito uma piada durante um ensaio para um desfile militar. O regime estava sempre vigilante, independentemente de onde se morasse.O que vemos no famoso filme de comédia Adeus, Lenine ou no filme mais sério A Vida dos Outros corresponde à realidade?Ambos os filmes abordam aspetos da vida na Alemanha Oriental, mas não conseguem capturar toda a sociedade ao longo de quatro décadas. Escrevi o meu livro para encorajar as pessoas a descobrirem toda a sua complexidade. Só então poderemos começar a entender o seu legado para a Alemanha atual.A Stasi era realmente omnipresente?Certamente era a polícia secreta mais abrangente que já existiu. Tinha 90.000 funcionários em tempo integral e mais do que isso em informantes informais - pessoas comuns que se espiavam umas às outras. Eles usavam métodos de vigilância horríveis nas suas prisões, pensados para quebrar as pessoas ou destruir as suas vidas através de métodos psicológicos de “dissolução”. Mas nunca foram capazes de controlar todos o tempo todo. A resistência ao regime tornou-se mais organizada e maior na década de 1980 e, finalmente, manifestações em massa ajudaram a derrubar o Muro de Berlim no outono de 1989. No dia a dia, a maioria dos alemães orientais descobria que podia refugiar-se em amizades, vida familiar e hobbies. Muitas pessoas sentiam que levavam duas vidas: uma pública, onde diziam e faziam o que era esperado, e uma privada, que nem mesmo a Stasi podia tocar.Cresci a ouvir o hino da RDA em grandes competições desportivas, pois os atletas ganhavam muitas medalhas. Havia um forte patriotismo alemão oriental?O regime tentou construir um, mas foi difícil no início, pois a Alemanha Oriental não era um país naturalmente nascido, mas, como a Alemanha Ocidental, um produto da Segunda Guerra Mundial. A maioria das pessoas de ambos os lados da Cortina de Ferro simplesmente sentia-se “alemã”. Os desportos eram usados para criar uma identidade distinta, já que era uma área onde ambas as Alemanhas tinham camisolas, hinos e equipas diferentes. Ajudou o facto de a RDA ter tido um sucesso tão espetacular, não apenas por causa do doping, mas também por causa de programas de treino rigorosos que começavam desde a infância.Erich Honeker era visto como um ditador?Sim, no sentido de que ele não era um político eleito. Mas a maioria das pessoas ridicularizava-o, em vez de temê-lo ou respeitá-lo. As pessoas frequentemente referiam-se a ele como “Honni” ou faziam piadas sobre ele. Uma delas era assim: Honecker e o chefe da Stasi, Erich Mielke, estão a conversar sobre os seus hobbies. Honecker diz: ”o meu hobby favorito é colecionar todas as piadas que as pessoas contam sobre mim.” Mielke responde: “curioso, o meu hobby é muito parecido. Eu coleciono todas as pessoas que fazem piadas sobre si.”Como era o relacionamento da RDA com a RFA?A Alemanha Oriental e Ocidental tinham um relacionamento que oscilava entre a abertura e o fecharem-se. O primeiro chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, foi hostil e ordenou um embargo comercial contra a RDA, isolando a sua economia. Mais tarde, Willy Brandt procurou relações mais amigáveis através da chamada Ostpolitik. Nas décadas de 1970 e 1980, ambos os lados começaram a aceitar, em certa medida, a existência um do outro. Às vezes, os soviéticos ficavam tão preocupados com a possibilidade de as Alemanhas conspirarem uma com a outra que intervinham.Qual é a sua avaliação da reunificação alemã, 35 anos depois?Em muitos aspetos, o país unificou-se em 1990 de forma notavelmente bem-sucedida e pacífica. Os alemães orientais estão financeiramente melhor hoje e muito dinheiro foi investido na sua região. Mas muitos fatores de divisão permanecem. Muitos alemães orientais continuam a sentir-se menosprezados e são maciçamente sub-representados na política, em posições de liderança, nos media e em outros lugares. Em Leipzig, 90% das propriedades pertencem a alemães ocidentais. Salários e pensões ainda são mais baixos para o mesmo trabalho. Portanto, ainda há muito trabalho a ser feito e algumas diferenças de mentalidade e estilo de vida podem nunca desaparecer. Na Alemanha Oriental, por exemplo, a maioria das mulheres trabalhava em tempo integral e continuou a fazer isso após a queda do Muro de Berlim. As suas filhas tendem a fazer o mesmo porque nunca conheceram nada diferente. Portanto, a RDA deixou um extenso legado em muitas áreas.Como explica o sucesso atual da AfD e do Die Linke no Leste?O Die Linke tem mais sucesso em Berlim, onde vivem jovens intelectuais, que são os seus principais clientes atualmente. A AfD tem mais sucesso no Leste do que no Oeste, mas obteve 20% em toda a Alemanha nas últimas eleições e lembro que os alemães orientais representam menos de um quinto do eleitorado. Vemos partidos semelhantes tornarem-se populares ou a ganhar eleições em muitos países ocidentais, incluindo a Áustria, a Itália, a Grã-Bretanha, a França e os EUA. Acho que isso tem mais a ver com classe social, distribuição de riqueza e sentimento de ficar para trás do que com o Leste e o Oeste.Depois da saída da chanceler Angela Merkel, que cresceu na RDA, era importante que o Leste continuasse prioritário e a receber investimentos públicos? Ainda há duas Alemanhas?Merkel era menos popular no Leste do que no Oeste. Explicitamente não queria ser uma chanceler “da Alemanha Oriental” e não falava muito sobre a sua história enquanto estava no poder. Foi só no final do seu último grande discurso no cargo que falou sobre como se sentia incompreendida às vezes como alemã oriental e que todos que cresceram na RDA deveriam ter o direito de se lembrar das suas vidas lá. Ela não deu ao Leste nenhum tratamento especial enquanto estava no poder, mas o investimento que havia começado com chanceleres anteriores continuou.Porque é que tantas pessoas se interessam pela RDA? Foi realmente um experiência social alemã ou apenas uma criação soviética?É, com razão, interessante para as pessoas porque é um sistema completamente diferente que vale a pena estudar. Ainda não resolvemos questões como a forma como permitimos que as mulheres trabalhem e participem da sociedade, mantendo as taxas de natalidade sustentáveis e apoiando a vida familiar. A maioria dos países ocidentais continua a ter problemas com habitação e assistência médica ou como garantir que a sua origem social não prejudique as suas hipóteses na educação. A RDA frequentemente produziu soluções profundamente falhadas para essas questões, mas ainda podemos tirar lições disso. O sistema educacional finlandês, por exemplo, não é uma cópia do da RDA, mas foi inspirado por alguns dos seus princípios, que os finlandeses estudaram na Alemanha Oriental durante a Guerra Fria. Funciona bem hoje. Reconhecer que algumas coisas funcionaram e estudá-las não é o mesmo que endossar os métodos brutais da Stasi ou os tiroteios no Muro de Berlim. É hora de um estudo mais detalhado da RDA e acho que muitas pessoas concordam comigo sobre isso..Para lá do Muro - uma história da Alemanha de LesteKatja HoyerVogais493 páginas