Qual era a vossa ideia sobre Louis Armstrong antes deste documentário? Como americanos como viam esse grande músico?John Alexander (J.A.): Louis Armstrong é alguém nos Estados Unidos, talvez internacionalmente também, que todos nós sentimos que conhecemos. É como um símbolo americano, a ponto de o chamarmos de “Pops”, um apelido como também “Satchmo” é. Todos o reivindicamos como se o conhecêssemos. Muitas pessoas ainda são levadas ao altar nos seus casamentos com What a Wonderful World. Todos nós crescemos a ouvir a sua música, seja ele o nosso artista favorito ou não. Faz parte da família. Portanto, o que eu pensava de Louis Armstrong antes de fazer este filme? Que tinha uma ótima voz, e que era um ótimo trompetista. Consigo reconhecer a forma como que ele toca o trompete, mesmo que não me digam que é ele quem está a tocar. É tão distinto. Não sou especialista em trompetes. Era um ótimo músico. Uma pessoa alegre. Tinha a aparência de estar sempre feliz. Acho que não consigo imaginá-lo com uma cara triste. De certa forma, a minha perceção dele era a de um símbolo americano imaculado.Compartilha esta visão? Sei que tem uma origem diferente da de John, que é da Califórnia. Para si, que cresceu na Carolina do Norte, Armstrong era também um verdadeiro ícone americano?JC Guest (J.G.): Sim, com certeza. É um ícone americano. No meu caso, fui criada a ouvir jazz. Eu só ouvia jazz quando criança. Não tinha música pop nem música clássica a tocar em casa. Lá em casa, Louis Armstrong era tudo. Pô-lo a tocar é quase como tocar música sacra ou algo assim. Ele está tão presente na forma como pensamos na nossa identidade cultural, na nossa cultura americana moderna, que nem pensamos realmente na pessoa.Como descobriram essa história sobre a filha, que dá origem ao vosso filme Little Satchmo?J.G.: Ela é que nos descobriu, na verdade. Tínhamos feito um filme anterior chamado This Is Love, que é uma história sobre o que significa ser um artista. É sobre um artista afro-americano extremamente influente, mas muito pouco conhecido, chamado Rudy Love. Era um filme bem pequeno, mas teve ótima receção. Estreou primeiro em Londres e a seguir fez uma digressão pela Europa, tendo depois tido uma receção muito boa nos Estados Unidos. Fomos à Florida para uma exibição e uma conversa sobre o filme. Chegámos e foi um evento muito bem organizado, impressionante, mas não sabíamos muito sobre os organizadores. E enquanto estávamos lá, vimos que havia uma mulher que tinha organizado tudo. O nome dela era Lea Umberger. Perto do final, veio ter connosco e disse: “sabem, eu tenho o vosso próximo filme”. E nós dissemos: “Ok, interessante. Certo. Tudo bem. Bom, tudo aqui foi ótimo, e esperamos manter contacto.” Muitos meses depois, talvez um ano depois, de repente, ela entra em contacto novamente e diz: “lembram-se? Conversámos sobre isto quando nos conhecemos, e eu tenho este projeto, este filme que quero fazer, e quero que vocês sejam a produtora e o realizador. E é sobre uma mulher que conheço aqui na Florida. O nome dela é Sharon Preston-Folta, e é filha de Louis Armstrong”. E foi assim que tudo começou. Foi realmente por causa desse filme anterior que tínhamos feito, e também porque mesmo neste mundo moderno, onde se pode enviar emails, mensagens de texto e coisas assim, realmente vale a pena aparecer, estar no lugar, conhecer pessoas e ter conexões.Obviamente há elementos da vida de Louis Armstrong a mostrar a ligação com Sharon e a mãe, Lucille “Sweets” Preston, como as visitas, as saídas, a casa comprada, o dinheiro enviado. Mas uma dúvida, que tenho após ver o documentário, é se tudo isso prova legalmente que Armstrong era o pai?J.A.: Uma das perguntas que este filme levanta é: o que significa ser pai? Qual é exatamente a definição de ser pai? É a genética? É tudo sobre a pessoa que cria a criança? Como exatamente definimos isso? “Foi feito um teste de ADN?”, perguntam-nos, às vezes. A resposta é não. Aliás, curiosamente, Sharon até tentou fazer um teste de ADN com saliva de um dos trompetes, mas era demasiado antiga para ser testada.Tecnicamente, então, não há provas da ligação biológica, mas a ligação emocional é óbvia até ele morrer em 1971, era Sharon ainda uma adolescente?J.A.: Sim, a prova emocional é exata: e é uma via de sentido duplo. Quer dizer, é claro que Sharon afirma que Louis Armstrong é o seu pai, mas ele também claramente afirmou que Sharon era a sua filha. E ela é a única criança que ele oficialmente reconheceu, e afirmou isso nas suas cartas.As cartas para Sharon são os documentos que comprovam esse vínculo?J.A.: Sim, as cartas, e as gravações, e o dinheiro enviado para elas, e a casa, e a educação que ele pagou.J.G.: Ele acreditava que era o pai.Surgiu alguma polémica depois da exibição do documentário sobre a relação pai-filha ? Alguns membros da família de Armstrong ou outras pessoas a contestar a história de Sharon?J.G.: Não, e é interessante. Talvez por causa do tempo que passou, e porque não havia outros filhos. Sharon é a única familiar direta viva. Que se saiba, não há outra família. Há uma fundação que foi criada, em relação ao património dele e à músic. Mas a fundação é liderada por pessoas que não são da família. Ela é a única pessoa que pode reivindicar um vínculo com Louis Armstrong. Há algo também que me surpreendeu: a completa ausência de fotos de Sharon com Louis Armstrong. E eles estavam muitas vezes juntos, principalmente quando ela era ainda criança.J.A.: É estranho para mim também. E achei logo muito estranho quando fiz o filme. Há uma referência, no filme, sobre a única foto que ela tem da família, e é a de quando a mãe dela estava grávida, mas isso não conta. É muito estranho e não tem resposta. Acho que, no fundo, a resposta é que não sabemos, mas, talvez a resposta certa seja que era um segredo. Ele realmente queria segredo, e a sua equipa, e a própria mãe de Sharon, não deixaram que essa informação se tornasse pública. O que a mãe de Sharon dizia, e eu só sei disso graças a ela, era que “quem sabe, sabe, e quem não sabe, não precisa saber”.Este é realmente um filme sobre Louis Armstrong e a filha, ou é um filme sobre algo comum na sociedade americana, especialmente entre a comunidade afro-americana, que são as mães solteiras? Até porque Sharon tem certas experiências de vida semelhantes às da mãe. Tiveram interesse em criar um debate?J.G.: O nosso foco foi o processo de contar a história, o quão difícil que foi para Sharon tomar essa decisão, porque ouviu toda a vida toda essa crença de que ninguém deveria saber. E acho que um dos motivos pelos quais Sharon realmente sentiu que era algo que deveria ser contado, que deveria ser tornado público, foi que, ao contar a sua história pessoal, ela poderia ajudar outras pessoas noutras situações: como crescer sem um pai, ou lutar com os sentimentos de não ser um bom pai, ou pessoas a sentir que falharam como pais. E isso é algo que acontece nas exibições deste filme. Fazemos muitas exibições do filme nos Estados Unidos, e Sharon comparece a muitas delas e conversa com a assistência. E essa questão e essa luta é algo que muitas pessoas vêm até ela e dizem: “Obrigada por isto, porque é isto que eu vivenciei na minha vida, e ver este filme ajudou-me”. Acho que esta foi uma motivação muito importante para Sharon e uma razão pela qual ela esteve disposta a revelar algo que é muito privado. Nem todos tomam a decisão de tornar público algo muito privado. É uma decisão intensa para qualquer um.Mesmo com todos aqueles conflitos, sobretudo depois de Sharon descobrir, ao ver a entrevista do pai no programa televisivo de Johnny Carson sobre ter outra mulher, outra família, podemos dizer que Armstrong, até ao fim, se importou com a filha, porque até enviou o dinheiro prometido para a educação universitária?J.A.: Acho que sim. Se nos basearmos nas cartas, nas gravações e na memória de Sharon, ele importava-se com ela, amava-a e apoiava-a, mas é tudo muito complexo. É algo que adoro neste filme, é que, mesmo depois de muitas entrevistas, ainda estou a refletir sobre essas questões, porque é rico e complexo. Eu acredito que o amor estava lá, e Louis Armstrong estava, de certa forma, preso entre a carreira e a família, principalmente por ser negro. Era difícil assumir ter uma filha fora do casamento.Sobre ser negro, e esta é uma questão mais política, Louis Armstrong foi provavelmente o americano mais popular da época, ou pelo menos o afro-americano mais popular. E era uma época muito complicada de segregação no Sul dos Estados Unidos e, depois, de luta pelos direitos civis com Martin Luther King. O músico não participou ativamente dessa luta. Politicamente, ele tinha uma opinião?J.A.: Não sou especialista nisso. Sou apenas um cineasta. Sei que Louis Armstrong não aderiu ativamente aos direitos civis tanto quanto algumas pessoas poderiam imaginar que ele teria, ou deveria ter, ou poderia ter aderido. Mas ele já estava numa fronteira. Ele já estava a ultrapassar os limites, sendo provavelmente o americano mais famoso, independentemente da raça. Ele apresentava-se em teatros onde nem sequer tinha permissão para entrar. Quer dizer, de certa forma, ele ajudava nessa luta.Conseguiu tocar até mesmo em estados segregados. E foi visto pelos brancos desses estados.J.A.: Exatamente. Então, existe essa coisa complicada de podermos criticar e dizer: “Ah, bem, ele está a apaziguar o público branco, quase como um show de menestréis, explorando os estereótipos”. É um ponto de vista. Mas ele estava a unir as pessoas. Negros ou brancos, todos eram fãs da sua música. Foi algo unificador, algo que uniu o país. Então é complexo. É uma questão não resolvida.Repito agora quase a primeira pergunta. Depois de conhecerem Sharon, depois de fazerem este documentário, qual a vossa opinião sobre Louis Armstrong? J.G.: A minha opinião sobre Louis Armstrong é que ele era uma pessoa, e tinha, claro, as suas complexidades. Se for a Nova Orleães, verá muitas placas de homenagem a Louis Armstrong por toda a cidade. E há estátuas grandes e proeminentes de Louis Armstrong espalhadas pela cidade. Há uma de um lado do rio, do rio Mississípi, e se formos para o outro lado, há outra estátua dele, de Louis Armstrong. Estranhamente, são como a mesma estátua, duas estátuas completamente idênticas na pose. E, na minha opinião, nenhuma delas se parece em nada com Louis Armstrong. Não se parece em nada. Sim, ele tem o lenço, tem o trompete, e está lá o sorriso, mas não reflete o homem. Depois de fazer este filme, percebi que realmente não sabemos muito sobre essa pessoa, porque ele teve tanto sucesso em tocar as emoções das pessoas e impressioná-las com músicas que se tornaram tão icónicas e reconhecíveis. Mas fazia isso de uma forma que o mantinha separado da sua persona, o que realmente me fez questionar: “Quem era verdadeiramente essa pessoa que achamos que conhecemos?”. E não digo isto de uma maneira negativa, porque, de certa forma, acho que tenho uma impressão muito mais positiva e muito melhor do homem depois de fazer o filme. Porque vejo que enfrentou desafios e lutas pessoais, e quando confrontado com essas escolhas, simplesmente não fugiu quando poderia. Era perfeito? Ele era um pai perfeito? Acho que se achava o melhor pai possível, e acho que, no fim das contas, ele era um pai. Ele sentia-se como se fosse um pai, e essas coisas todas que fez para ajudar Sharon eram tudo coisas que não precisava fazer, e o facto de que as fez indica quem era aquela pessoa por trás daquela persona, como ele realmente fez algumas coisas que não eram fáceis e são louváveis.J.A.: A minha maior preocupação ao fazer este filme, e até antes mesmo de fazê-lo, e eu realmente estava bastante preocupado com isso, era se correríamos o risco de destruir este ícone americano. Eu não queria dar ao público - todos nós adoramos Louis Armstrong - algo que dissesse: “Ah, na verdade, este é um homem mau” ou “Ei, Louis Armstrong não é tão bom quanto vocês pensavam”. Mas, tanto eu como JC, o que percebemos logo é que o público realmente adorou o filme, tanto quanto adoramos Louis Armstrong. Nós todos desde sempre o reduzimos a um estereótipo, a uma caricatura. Ele, quando o imaginamos, está sempre feliz, sempre a cantar, mas era um ser humano real, com falhas, com desafios, e estou muito orgulhoso do facto de que, ao fazer este filme, sentir que não fizemos isso, não manchámos este ícone americano, não o destruímos, mas sim, na verdade, adicionámos complexidade.