Carlos, o último dos imperadores Habsburgos, também o último rei da Hungria, não era sequer o herdeiro óbvio do Império Austro-Húngaro. Pode explicar como chegou ao trono?Sim, só se tornou imperador em 1916. É muito especial essa coroação porque durante muito tempo Carlos era o quinto da lista para suceder a Francisco José, que foi imperador de 1848 a 1916. Mas toda a gente foi morrendo. O pai e o tio de Carlos também morreram antes, e foi por isso que se tornou imperador. É muito interessante, porque tornou-se o herdeiro após o assassinato de Francisco Fernando em 1914, e pouco depois de se ter tornado herdeiro do trono, tornou-se imperador, em novembro de 1916. Esse período foi muito difícil para ele, porque estávamos em plena Primeira Guerra Mundial e a monarquia austro-húngara totalmente envolvida no conflito. Combatia em três frentes nessa altura: Rússia, Itália e Sérvia. Portanto, era realmente muito difícil para o império ser realmente eficiente em tantas frentes. Carlos era um verdadeiro soldado, por isso conhecia muito bem as questões militares. Assim, esteve na realidade apenas dois anos durante a guerra como imperador e rei. A sua coroação na Hungria foi em dezembro de 1916.Como era tradição dos Habsburgos, Carlos era imperador mas também rei da Hungria. Formalmente foi o último imperador austríaco, mas também o último rei húngaro?Na tradição do Império Habsburgo, após a morte do imperador precedente, Carlos tornou-se imediatamente imperador, mas não imediatamente rei. Isto porque, para ser rei húngaro, existia uma cerimónia obrigatória. Aconteceu apenas um mês depois, em Budapeste. E foi apenas o segundo rei a ser coroado em Budapeste. Antes, só Francisco José, em 1867. Portanto, foi muito especial, essa coroação. A tradição era a coroação ser na cidade que é hoje Bratislava, e antes disso em Székesfehérvár, um local muito importante para a Hungria. Mas, a partir do século XIX, tudo vai para Budapeste, que deixara de ser duas cidades diferentes, Buda e Peste. E em 1916, quando Carlos e a sua esposa Zita foram coroados na Colina do Castelo, na Igreja de Matias, foi realizada uma grande cerimónia, que durou o dia todo, e era um dia muito frio. Esta foi a última coroação na Hungria. Carlos foi o último rei da Hungria.A imperatriz e rainha Zita era, em parte, de origem portuguesa, neta de D. Miguel, o rei absolutista que foi forçado ao exílio. Qual a importância de Zita para os projetos políticos de Carlos após a queda do império e da implantação da república na Áustria, com o exílio inicial na Suíça e a tentativa de se manter como rei na Hungria?Zita foi realmente muito importante no destino de Carlos. Casaram em 1911, na Áustria. E era um casal especial, porque casaram por amor. E naquela época, com os Habsburgos, como em todas as famílias reais e imperiais, os casamentos eram combinados. Mas aquele não foi. Foi um casamento de amor verdadeiro. Zita sempre foi uma mulher forte. E, depois da guerra, em finais de 1918, escreveu aos seus irmãos em Paris para lhes pedir que ajudassem a família. Os Bourbon-Parma, seus irmãos, foram a Londres pedir apoio ao rei Jorge V, que estava já muito predisposto a ajudar os Habsburgo, por causa do que tinha acontecido ao seu primo Nicolau II, o último czar, que foi morto em 1918 na Rússia. E foi por isso que Jorge V enviou um dos seus militares, que os ajudou a encontrar segurança. Zita foi realmente muito importante nesta questão porque era, como se costuma dizer, a personalidade dominante. Carlos estava em depressão depois da guerra, por causa da situação que o impedia de continuar como rei e imperador..O primeiro exílio na Suíça, deixando a Áustria, coincidiu com a efémera república soviética na Hungria liderada por Béla Kun, que, portanto, não era opção?Sim. Em 1919, em março, foram para a Suíça, para um castelo da família de Zita, os Bourbon-Parma. Ficava perto da fronteira e muitas pessoas vieram vê-los. Então, o governo suíço pediu-lhes que se aprofundassem mais no país, porque aquela situação era perigosa para eles. É por isso que vão para Prangins, para um castelo na orla do Lago Genebra. Carlos regressou à Hungria só na primavera de 1921, porque estava então convencido de que os húngaros estariam do seu lado. O período de Béla Kun foi realmente muito perigoso. Mas durou pouco mais de 100 dias, não foi muito longo. E no final de 1919 a Hungria voltou a ser um reino, mas sem rei. E o almirante Miklós Horthy tornou-se governador dos húngaros.Como era a relação de Carlos com o regente Horthy?Tinham uma relação muito má, porque quando Carlos voltou nessa primeira vez em 1921, Horthy não quis devolver o poder ao rei. E na segunda tentativa de regresso, em outubro, Carlos decidiu levar Zita. Às crianças, que ficaram na Suíça, disseram que iam celebrar o aniversário de casamento, que era no dia 21 de outubro. Mas não era verdade. Só vão voltar a ver os filhos em fevereiro do ano seguinte. Foi realmente difícil para Otto von Habsburg, que era o filho mais velho.Chegou a haver uma batalha entre os soldados de Horthy e os partidários do rei, certo? Foi apenas um dia, mas dezenas de pessoas morreram nessa batalha perto de Budapeste. E quando Carlos soube que algumas pessoas tinham morrido a lutar por ele, interrompeu a batalha. E voltou para um castelo não muito longe de Budapeste. E depois foi preso pelas forças da Entente e pela polícia de Horthy. E levado para a Abadia de Tihany, uma abadia beneditina no lago Balaton. Mas ficou lá apenas uma semana. As potências da Entente decidiram levar o casal para o estrangeiro. Nessa altura, ainda não estava decidido que seria para a Madeira, porque o governo português não estava muito satisfeito com a ideia de os Habsburgos virem para o país. Isto aconteceu, recordo, apenas alguns anos após o início da República, portanto, para os republicanos, não era realmente boa ideia ter um Habsburgo em Portugal.Foi pressão britânica?Sim, foi a pressão italiana e britânica sobre Portugal.Tem ideia de qual foi o impacto no ex-imperador da mudança da Europa Central para uma pequena ilha no meio do Atlântico?Sim, porque temos diários desse tempo, e também das senhoras da corte que vieram um pouco mais tarde com as crianças para a Madeira. Carlos e Zita ficaram muito surpreendidos com os madeirenses. Foram muito bem recebidos pelo povo. Mas para o governo português foi realmente uma situação muito complicada, porque Londres pediu para vigiarem Carlos. E na Madeira, nessa altura, havia poucos polícias na ilha. Toda a gente ia ver Carlos. E era muito complicado protegê-lo, até porque ele era muito próximo das pessoas. Então o próprio Carlos deu dinheiro a esses polícias para ajudar as suas famílias e para que estivessem sempre com ele. Em que lugar é que decidiram viver à chegada à Madeira?Da primeira vez, foi no Funchal, no Villa Vitoria. O edifício onde ficaram já não existe. Não ficava muito longe da estrada principal do Funchal naquela altura. E foi por isso que Zita não ficou lá muito contente, porque os turistas, sobretudo os turistas britânicos, vinham à ilha e queriam ver o último Habsburgo. Tornou-se um fenómeno turístico a presença da família Habsburgo ali. E para Zita era mesmo impossível conviver com estas pessoas que tiravam fotografias a toda a hora. Então, decidiram ir para o Monte, uma pequena aldeia junto do Funchal, porque o proprietário do hotel tinha um contacto muito bom que tinha uma chalé lá. Mas não era uma casa para viver o ano todo. Era só para o verão, porque na montanha faz frio. Mas decidiram ir logo porque as crianças entretanto chegaram e Zita continuava muito zangada por causa dos turistas. Assim, mudam-se em março. Foi muito bom para eles, mas não estava lá muito quente. Existem muitas lendas em torno de Carlos e da sua família relacionadas com esse tempo na Madeira. Uma dessas lendas, célebre principalmente na Hungria, era que viviam muito pobremente, porque não havia nada lá. Não é verdade. Porque a aldeia tinha já telefone naquela altura, e não só. É realmente incrível essa ideia. Por outro lado, sabemos que as crianças, quando chegaram à Madeira vindas da Suíça, estavam todas doentes. Portanto, a doença foi transmitida aos pais. Zita esteve muito doente, e depois Carlos também adoeceu. E sabemos que a situação psicológica de Carlos era realmente muito frágil, porque o seu cabelo começou a ficar branco.Mas era relativamente jovem...Tinha apenas 34 anos quando morreu em abril de 1922. Portanto, era muito novo. Mas depois da Primeira Guerra Mundial, depois de tudo o que viveu com as transformações políticas, foi uma pressão psicológica enorme para ele. E foi por isso que adoeceu. Mas era um soldado. Não quis compreender que aquela doença era muito perigosa. A mulher pediu-lhe que chamasse um médico, mas ele não quis nenhum nos primeiros dois ou três dias. A situação foi-se agravando cada vez mais, e foi o médico do bispo do Funchal, que o veio examinar, que disse que estava em perigo por causa da pneumonia.Pneumonia, agravada pela depressão?Sim. E ao contrário da tal lenda, não eram muito pobres naquela altura, sem recursos. A família Habsburgo era muito importante na Alemanha, na Bélgica, na Suíça, em todo o lado. Muita gente ajudou Carlos e Zita. Portanto, acho que não era o problema de serem pobres. Era um problema psicológico, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, era uma doença real que ele tinha.A decisão de o corpo permanecer até hoje na Igreja do Monte, e de os Habsburgos nunca terem decidido transferir o corpo, como se explica?Após a sua morte, sempre se questionou isso, porque normalmente os reis Habsburgos e a família Habsburgo têm um lugar especial em Viena, o Kapuzinergruft, que é uma igreja dos Capuchinhos. Mas no caso de Carlos, manter o corpo do último Habsburgo no Monte foi uma decisão conjunta da imperatriz Zita e do bispo do Funchal. Zita não queria voltar para Viena. E não tinha sequer autorização do governo austríaco na altura para regressar. Porque teria de renunciar ao seu cargo de Imperatriz. Então, ela não queria fazer isso. Por isso, foi muito complicado, depois de 1922, trazer o corpo de Carlos de volta para a Áustria. Zita só voltou à Madeira em 1967, depois de mais de 40 anos sem lá ir. Outro facto muito importante: logo após a morte do marido, Zita quis iniciar um processo de beatificação. E sabemos que era muito importante para o Vaticano, naquela época, que o corpo permanecesse naquele local, devido ao processo, para verificar se algo acontecia ao corpo. Finalmente, em 2004, a beatificação foi realizada por João Paulo II.E a decisão de remover o coração foi imediata?Era uma tradição nos Habsburgos que o destino do coração do imperador, da imperatriz ou de outros membros da família fosse decidido antes da morte. E, Carlos, e também Zita, pediram que o coração fosse para a Abadia de Muri, na Suíça, a primeira abadia fundada pela família Habsburgo no século XI. Mas o filho de ambos, o primogénito, Otto von Habsburg, pediu que o seu coração fosse para a Hungria.Mais de um século depois da morte de Carlos, ainda há gente a visitar a Igreja do Monte por causa dele. O último imperador Habsburgo estar sepultado numa igreja portuguesa atrai turistas, os tais que a imperatriz Zita não suportava?É, de facto, muito, muito interessante. A Hungria já tem, há uns anos, uma ligação aérea direta, entre a Madeira e Budapeste, por causa dos turistas que vão lá só para ver o túmulo de Carlos. Visitam a ilha, claro, mas viajam a pensar no último rei. Após o centenário da morte, em 2022, muitas pessoas descobriram que era o último rei da Hungria, bem como o último imperador da Áustria, que estava ali sepultado no Monte e é por isso que há muita gente que quer ir lá.Ainda existe uma nostalgia da monarquia na Hungria?É algo muito contraditório, devo admitir. Temos algum idealismo sobre essa época, mas, por outro lado, a história húngara sempre foi contra os Habsburgos, sobretudo nos últimos séculos. Vemos Carlos como um verdadeiro rei da Hungria, mas, por outro lado, era um Habsburgo. Por exemplo, Horthy não queria que viesse alguém da família Habsburgo ocupar o trono de novo. Queria criar uma nova família real, talvez uma família húngara ou de outro rei da época.Não houve em Horthy, que governou mais de duas décadas, a ambição de ser rei?Ele próprio talvez não, porque estava muito ligado a Francisco José. Foi o grande almirante do Império Austro-Húngaro no final da guerra. Mas, por outro lado, queria criar, talvez com os seus filhos (teve dois), algo como um novo reino. Isto não foi possível por causa da Segunda Guerra Mundial, e porque um dos seus filhos morreu durante a guerra. Outro, foi levado pelos nazis perto do final da guerra. E, sabe, depois de deposto, Horthy veio para Lisboa em 1948, porque o seu filho, o mais novo, era então embaixador no Brasil, o primeiro embaixador da Hungria no Brasil. E tinha ótimas ligações com o governo português. E foi por isso que decidiram vir para Portugal, porque a mulher estava muito doente na Alemanha nessa altura e o clima não era muito bom para ela. E foi por isso que decidiram vir para cá. Entre a família Habsburgo e a família Horthy sempre houve um grande fosso. Nunca se reconciliaram de verdade.Carlos falava húngaro?Sim, falava húngaro, talvez não muito, muito bom. Na juventude, Carlos passou três anos em Sopron, que é uma cidade na fronteira da Áustria. E conhecia muito bem húngaro naquela época. Depois de aprender, não o usou com muita frequência.Mas era comum um Habsburgo saber húngaro?Sim, para os destinados a ser reis, era muito importante falar húngaro. Mas não era muito fluente. Era o filho Otto quem falava húngaro muito, muito bem. Tive a oportunidade de o encontrar várias vezes nas décadas de 1990 e 2000. E falava muito bem húngaro. Já durante o pós-guerra, no exílio na Suíça, Carlos e Zita tinham professores de húngaro para o Otto e os outros filhos.Esses professores foram com as crianças para a Madeira?Sim, também. Foi um padre húngaro o professor das crianças em Literatura e História húngara. Aprendiam também alemão e francês. E era muito importante para eles que o ensino fosse levado muito a sério, apesar das dificuldades. Temos numa agenda, que está na nossa fundação, com o horário das crianças. E é realmente muito interessante. Todos os dias estavam a postos bem cedo, 6h30. Na Madeira também, sempre. Tinham, além do padre húngaro, um professor de alemão, que dava aulas de alemão, História, Literatura e Gramática. E o francês era muito importante, porque Zita era uma Bourbon-Parma, queria que as crianças falassem francês. E era a professora de francês dos próprios filhos. Por outro lado, eles também tiveram muita interação com as crianças portuguesas na Madeira. Assim, Otto já tinha muitas noções de português nessa altura. E depois da morte de Carlos partiram da Madeira para Espanha e aí ficaram até 1929. Assim, as crianças falavam também muito bem espanhol.A reconciliação dos Habsburgos, em especial Otto, com a Hungria ocorreu depois da queda do comunismo?Sim, sim. Teve também muitas relações com a Hungria durante o período entre as duas guerras mundiais. Após a morte de Carlos, criou-se uma tradição na Hungria de celebrar todos os anos o dia de aniversário de Otto, herdeiro do trono. Organizavam uma cerimónia, primeiro uma grande missa, e depois um grande jantar. Mas não oficialmente. À revelia de Horthy?Sim, era algo da sociedade civil, da aristocracia, mas era realmente muito, muito popular. Na década de 1920, tivemos mais de dez mil pessoas a assistir à missa em honra de Otto na Basílica de Budapeste. Assinavam um livro, e este era enviado todos os anos a Otto para dizer que queriam que voltasse. Havia ligações com os partidos e personalidades legitimistas. Quando, por exemplo, os nossos jogadores de futebol foram a Espanha nos anos 20, quiseram conhecer Otto porque era realmente muito importante para a população húngara estar em contacto com ele. Mas depois da Segunda Guerra Mundial foi mais difícil, porque não havia muitas pessoas no país que tivessem relações com ele. Também essas estavam no exílio, por causa do comunismo. Mas Otto tentou entrar em contacto com algumas pessoas dentro da Hungria. E esteve realmente muito envolvido em 1956 durante a revolução. Tentou ajudar. Voltou à Hungria pela primeira vez em 1987, ainda antes do fim do regime comunista. É muito interessante, porque ele queria que o partido comunista lhe desse autorização para visitar o país, mas teve de viajar incógnito. Assim, ninguém sabia que tinha autorização para ir a dois distritos da Hungria, na zona ocidental do país, mas não a Budapeste.E quando Otto morre em 2011 era de novo cidadão húngaro?A cidadania de Otto foi uma questão durante todo o século XX. E ela foi-lhe devolvida oficialmente já nos anos 1990..A primeira foto mostra Carlos durante uma pausa de caçada nas montanhas perto da Fajã da Ovelha, com António Vieira de Castro e Gabriel Lomelino Biachi. Na segunda foto, surge Otto com os irmãos, na Madeira. Na terceira, Carlos e Zita a caminho da missa no Funchal. .Richard Bueno Hudson: “A segunda língua materna mais falada no mundo não é o inglês, mas sim o espanhol”.Yannis Mavritsakis: “Sófocles, Eurípides, Ésquilo, são o melhor que já li. São textos avassaladores”