Cláudio Manuel Neves Valente, 48 anos, autor do assassínio (muito) planeado de três pessoas. Podia ser a inscrição da pedra tumular dele. O homem que no sábado 13 de dezembro irrompeu por uma sala repleta de estudantes na Universidade de Brown, nos EUA, e disparou 44 vezes, matando Ella Cook e Mukhammad Aziz Umurzokov, de 19 e 18 anos, dois estudantes que nunca teria visto na vida, ferindo mais nove, conseguiu fugir e voltou a atacar na segunda-feira seguinte, 15 de dezembro, a cerca de 80 quilómetros dali, em Boston, no prédio onde vivia o físico e seu ex-colega do Técnico Nuno Loureiro, despejando nele quatro tiros. A morte seguinte seria a sua, algures, crê-se, na terça-feira 16 de dezembro, numa armazém que alugara previamente e no qual, além do seu corpo, a polícia encontrou as duas armas (uma das quais usou para se suicidar) utilizadas nos homicídios de Brown e na execução de Nuno.Terão assim morrido no mesmo dia o matador e a sua terceira vítima, a única que ele conhecia pessoalmente: Nuno Loureiro, de 47 anos, a estrela mais celebrada do Instituto Superior Técnico desde que em maio de 2024 passara a diretor do Centro de Ciência do Plasma e Fusão do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), recipiente, em janeiro de 2025, do mais prestigiado prémio presidencial para jovens cientistas, outorgado ainda por Joe Biden, foi declarado morto na terça-feira no hospital.."É uma coisa que acontece uma vez numa geração, uma desgraça assim. Vai ficar nos livros de psicologia, de criminologia — como uma pessoa pode ter mudado tanto. A última vez que o vi terá sido em 2010 ou 2011. Disse-me que, após a desistência do doutoramento de Brown, estava a pensar o que ia fazer da vida daí para a frente.”Ex-colega do Instituto Superior Técnico. Terá sido a ascensão de Nuno Loureiro a diretor de uma das mais importantes unidades de investigação do MIT, o prémio que recebeu de Biden, e a glória por ele desse modo alcançada na comunidade científica portuguesa e norte-americana, a desencadear em Cláudio Valente a determinação de também ele, que fora o melhor aluno da sua turma do Instituto Superior Técnico (a mesma de Nuno, 1995/2000), também ele, a criança-génio que os professores da escola secundária recordavam com carinho, a criança que decerto sonhara ser um cientista notável, receber prémios, talvez um Nobel, também ele, que estivera em Brown a iniciar um doutoramento em Física e desistira ao fim de um ano, se fazer famoso, mas da pior maneira possível?Certo é que — a crer no tabloide New York Post, que atribui a informação a “fontes policiais”— as autoridades norte-americanas concluíram que Valente estaria a planear os ataques pelo menos desde fevereiro de 2025 (ou seja, desde o mês seguinte à entrega do prémio presidencial a Nuno Loureiro). Isto porque terá feito várias viagens desde Miami, na Flórida, onde residia, para Boston desde esse mês. A primeira dessas incursões terá ocorrido entre 12 e 15 de fevereiro; seguiu-se outra muito mais prolongada (17 dias) em abril, outra ainda a 26 de outubro e durando até 16 de novembro (21 dias), e uma quarta logo no dia seguinte, para permanecer mais nove dias em Boston. A última viagem é aquela em que comete as atrocidades e se mata.De resto, surgiu igualmente nos últimos dias a informação de que um funcionário da Universidade de Brown terá relatado à segurança da escola, semanas antes do ataque, a presença, a 28 de novembro e a 1 de dezembro, de um homem suspeito. Mas, de acordo com as informações publicadas na imprensa norte-americana, este alerta não terá sido levado a sério.O mistério de uma existência sombriaCerto é que o planeamento efetuado por Valente foi eficaz: durante dias, as autoridades não tinham mais pistas que a imagem de um homem barrigudo, de barrete e máscara cirúrgica, com um andar característico, captada por diversas câmaras de vigilância na área de Brown. Não ligaram sequer as mortes na universidade à morte de Nuno Loureiro — a arma usada não foi a mesma e não havia qualquer evidência de que se pudesse tratar do mesmo perpetrador. Foi um post na rede social Reddit, a chamar a atenção para um carro com chapas da Flórida, e o facto de o seu autor, um sem-abrigo que é identificado pela polícia como “John”, ter reparado que o homem que conduzia o carro se estava a comportar de forma estranha, a permitir desvendar os dois casos. Mal a polícia falou com John e conseguiu identificar o automóvel em causa, percebeu que se tratava de um aluguer, e que quem o alugara fora um homem de nome Cláudio Manuel Neves Valente, residente na Flórida. O qual, descobriu-se de seguida, não só fora “apanhado” de rosto descoberto pelas câmaras da agência de aluguer de automóveis como estivera em 2000/2001 na Universidade de Brown, para um doutoramento em Física do qual desistira em 2003. E, veio-se igualmente a saber, fora colega de Nuno Loureiro no Técnico. A partir da identificação do automóvel, foi relativamente simples, apesar de Valente ter tido o cuidado de lhe trocar a matrícula, seguir o respetivo trajeto até uma zona de armazéns em New Hampshire onde a polícia encontrou, na noite de quinta 18 de dezembro, o cadáver do atirador.Em Portugal, era já a madrugada de 19, sexta-feira. É para esta notícia — a de um português autor de um tiroteio numa universidade americana e da morte de um outro português — que o país acorda. E é assim, a crer no que disse à jornalista Patrícia Fonseca, do jornal Médio Tejo e do New York Times, uma amiga da família, que os pais de Cláudio Valente, residentes no Entroncamento, souberam pela primeira vez do filho ao fim de muitos anos, já que este, desde 2017 a viver nos EUA com um visto legal de residente, teria deixado de os contactar há muito.Como, parece, deixou de contactar toda a gente que o conhecia em Portugal. Refazer o seu trajeto nos EUA desde a entrada no país será a tarefa a que a polícia norte-americana estará a dedicar-se, até agora, aparentemente, sem grande sucesso. Não se sabe, pelo menos publicamente, de que viveu Cláudio Valente a partir de 2017, só que teria nos últimos anos residido em várias casas diferentes na Flórida; numa delas, segundo foi noticiado, terá dado o nome do seu pai.Todas as pessoas que até agora falaram aos media, incluindo ao DN, e que a dada altura o conheceram nada sabiam dele há muito, incluindo os colegas que com ele tinham uma relação mais próxima.É o caso de Carlos, de 49 anos, que foi, como Cláudio, monitor (aluno que ajuda os professores nas aulas) no instituto, e que, conta ao jornal, conviveu com ele diariamente durante dois anos. “Entre 1998 e 2000 trabalhámos lado a lado, corrigimos testes juntos; no fim da licenciatura concorremos para o doutoramento ao mesmo tempo — ele queria, disse-me, ir para uma das universidades de topo dos EUA. A última vez que o vi, num encontro por acaso em Lisboa, terá sido em 2010 ou 2011. Lembro-me que comentou que tinha comprado uma casa não muito cara e que fora uma sorte porque os juros tinham subido muito e havia muita gente aflita. Disse-me também que estava a trabalhar no SAPO [o portal da Portugal Telecom, mais tarde da Altice, onde Cláudio esteve, como o DN já noticiou, em dois períodos distintos, o primeiro a partir de 2001 e o segundo a partir de 2010] e que, após a desistência do doutoramento de Brown, estava a pensar o que ia fazer da vida daí para a frente.”“Nunca o vi ser desagradável com ninguém”Este ex-colega, que não se lembra se trocaram números de telefone, percebeu que não devia fazer perguntas sobre a desistência do doutoramento — “Notei que ele não queria falar nisso, disse só que tinha achado que aquilo não valia a pena” — mas não ficou com a ideia de que Cláudio, que “tinha um engenho fora de série para coisas de programação e matemática”, estivesse particularmente insatisfeito com a sua vida. “Não havia qualquer traço nele que pudesse antecipar uma coisa assim, nada fazia crer que isto ia acontecer. Não encontro qualquer explicação. Desde aquela sexta-feira que estou um bocado perturbado — de repente ver o nome do meu colega nas notícias, por ter feito algo tão horrível, tão cruel… Fiquei muito abalado”, diz ao DN. “Porque ele era uma pessoa afável, simpática. Nunca o vi ser desagradável com ninguém. Era absolutamente fora de série, inteligentíssimo, sim, mas dedicado, integrado. Tinha brio, mas sem brio não se faz nada — e não era, de longe, o mais competitivo do Técnico. Havia quem fosse muito mais. A única coisa extraordinária que havia nele era que era muito bom e fazia as coisas com brio. E aprendi imenso com ele. explicava-me muitas coisas sobre informática… Ele tinha tudo o que era preciso para ter tido sucesso.”Algo de muito grave a nível mental aconteceu a Cláudio, crê Carlos, que lembra o amigo como alguém que não ligava à aparência — “Era como se tivesse feito voto de pobreza, andava limpo mas via-se que não se ralava com o que vestia” — e avesso a excessos. “Ele não bebia álcool. Houve um arraial do Técnico em que me disse que passou a noite toda a levar pessoas para a ambulância. Era muito bem comportado.” Suspira. “Tenho muita pena da família dele, dos pais. É uma coisa que acontece uma vez numa geração, uma desgraça assim. Vai ficar nos livros de psicologia, de criminologia — como uma pessoa pode ter mudado tanto.”Ou não: o avesso da imagem desenhada por Carlos é transmitida por um colega de Cláudio no SAPO. “Os sinais estavam todos lá. Era conflituoso, antissocial, introvertido, ressentido.” .“Os sinais estavam todos lá. Era conflituoso, antissocial, introvertido, ressentido. Era uma pessoa que não gostava de pessoas. Achávamos que ele um dia podia entrar ali aos tiros. ” Ex-colega do Portal SAPO. Esse colega é Rui, de 52 anos, que trabalhou alguns anos com este homem que ele e outros colegas viam como alguém “que um dia entrava ali de caçadeira e limpava-nos a todos”. E que, conta, se foi incompatibilizando com várias pessoas, a começar pelo chefe direto. “Ao fim de duas ou três interações entraram em conflito bélico. Nem conseguiam falar.”Sendo óbvio que se tratava de alguém “com um QI altíssimo”, não privava com ninguém, assevera Rui, a não ser com outro funcionário proveniente do Técnico. “Era o amigo dele ali, um amigo que ainda era mais bicho que ele. Isolavam-se muito. Às vezes passávamos por eles enquanto estavam a beber um café e ouvíamo-los falar de fotões e protões”. Dá uma gargalhada. “A coisa era de tal maneira que às tantas o meu chefe dizia-me ‘vai lá falar com o maluco’. E eu ia, a pensar no que lhe ia dizer para ele levar aquilo a bom porto.”Houve no entanto quem, tendo coincidido com Cláudio no SAPO, o tenha achado simpático — a expressão usada na conversa com o DN foi “era um doce”. Oiçamos uma outra ex-colega: "Era absolutamente genial, de uma inteligência fora de série, mas extraordinariamente acessível, muito simpático, com um sentido de humor apuradíssimo. Gostava muito dele — e tive uma ótima experiência quer social quer profissional com ele."Rui tem uma explicação. “Com as pessoas que não tinham de trabalhar diretamente com ele, é possível que fosse simpático. Mas se tínhamos que o pressionar era terrível. E lidava muito mal com a crítica — se alguma coisa corresse mal nunca era culpa dele. Era de tal modo que a partir de certa altura passei a falar com ele só por email.”Naquela sexta-feira em que se soube a identidade do assassino de Nuno Loureiro e dos dois estudantes de Brown, alguém do grupo de colegas e ex-colegas do SAPO colocou no Youtube um vídeo daqueles tempos em que se vê Cláudio a entrar numa sala em que toda a gente está a rir. “Entretanto puseram o vídeo em privado, senão enviava o link, porque é muito revelador. Está toda a gente divertida por estar a ser filmada e ele entra, percebe que se está a passar uma coisa da qual não faz parte, e fica com uma cara… Olha para a câmara com uma expressão que explica por que achávamos que ele um dia podia entrar ali aos tiros.”Quando se sabe que alguém fez algo tão terrível, é tentador crer que era possível ter visto antes, que tinha de haver sinais. Rui assente. “Mas às vezes os sinais estão mesmo lá. Às vezes detectamo-los. E não podemos fazer nada. Uma coisa é certa: ele não era uma pessoa que gostasse de pessoas.”.“O Cláudio que conheci não era um monstro, um psicopata. Nem sequer um 'outsider'” .“O Cláudio Valente? Como?? Fónix, ele era um doce”.Angariação de fundos 'online' para a família Nuno Loureiro com mais de 1,6 mil doações em poucas horas.A pista de um sem abrigo no Reddit que "desvendou o caso" do tiroteio na Brown e da morte do físico do MIT