“Este vai ser o fardo com que vamos viver — nunca saber o porquê.”É um colega de curso do Técnico, o curso de Engenharia Física Tecnológica 1995/2000 no qual estiveram, lado a lado, Cláudio Valente e Nuno Loureiro, o — tudo leva a crer —matador e a vítima, que no fim de uma longa conversa com o DN assume, com grande tristeza e desalento, a impossibilidade de perceber. Perceber como é que o Cláudio que conheceu, empático, companheiro de jantaradas, arraiais universitários e idas ao cinema, aqui e ali enamorado por alguém, aplicado e estudioso, “fora de série” na inteligência e no estudo, arrogante mas não narcisista nem mal-educado, se suicidou num armazém alugado após um quase massacre na Universidade de Brown, no qual matou dois estudantes e feriu nove, e o homicídio à queima-roupa de um ex-colega do Técnico que, diretor de uma das unidades de investigação do MIT (Instituto de Tecnologia do Massachusetts), se transformara no maior orgulho de sempre da faculdade, o ex-aluno que chegara mais alto na carreira científica.“O Cláudio não era um monstro, não era um psicopata. Sei que são difíceis de apanhar, de identificar — já conheci alguns — mas ele não era. Era arrogante mas não para lá daquilo que era mais ou menos normal no curso de Física; não era sequer o mais arrogante, não tinha o ego maior, não era narcisista. Era empático, tinha empatia.”A ausência de empatia, de reconhecimento da existência dos outros como iguais, como pessoas com a mesma valia que o próprio, é o traço distintivo dos psicopatas, condição que não é considerada uma patologia mas um transtorno de personalidade — também caracterizado pela manipulação, frieza, calculismo e ausência de culpa. Luís, chamemos assim a este homem que entrou em 1995, como Cláudio, Nuno e mais 42 caloiros, sobretudo rapazes (raparigas eram só nove), no curso de Engenharia Física Tecnológica, está certo de não ser o caso daquele a quem se atribui a morte, ao que parece cuidadosamente planeada, de três pessoas nos EUA. E do qual os pais, segundo informação recolhida pela jornalista Patrícia Fonseca para o New York Times e para o jornal Médio Tejo, residentes da pequena cidade ribatejana do Entroncamento, não saberiam há muitos anos (não é claro se desde 2000, quando foi para os EUA tirar o doutoramento na Universidade de Brown, do qual desistiria logo a seguir, ou 2017, quando regressou ao país com um visto de residente). .“Ele era perfeitamente integrado. Ia ao jantares de curso, ia aos super-arraiais, dizia piadas, ia ao cinema connosco, aos centros comerciais. Não era mais misterioso que a maioria. Não era um outsider.”Ex-colega de turma no Técnico. Para Luís, de 48 anos (a idade de Cláudio), tudo isto é uma absoluta contradição com o rapaz que conheceu como colega no Técnico e, mesmo depois disso, em jantares de curso e de aniversário, quando a turma se encontrava. “Ele era perfeitamente integrado. Ia ao jantares de curso, ia aos super-arraiais, dizia piadas, ia ao cinema connosco, aos centros comerciais. E na altura sabia onde ele vivia — vivíamos todos, os de fora de Lisboa, em quartos alugados, não íamos a casa uns dos outros, mas jantávamos, íamos beber um copo. Ele não era mais misterioso que a maioria. Não era um outsider. Não se isolou mais que outros. O Cláudio era perfeitamente normal. Até desistir do doutoramento em Brown, ao fim de um ano de lá estar, em 2001.”Mesmo após essa desistência, garante Luís, o ex-colega ia aos jantares de curso. “Lembro-me de ele estar como informático no SAPO [portal da então Portugal Telecom, hoje Altice, onde, como o DN revelou esta sexta-feira, trabalhou durante dois períodos, o primeiro dos quais a partir de 2001, por uns cinco anos, o segundo, segundo a Altice, entre 2010 e 2013], não estava contente, mas estava OK. Falámos da passagem dele por Brown, da desistência do doutoramento, disse ‘Não gostei muito daquilo’. Tinha a opinião de que Brown não tinha a qualidade que ele queria. Mas parecia-me que ele estava a lidar bem com isso a última vez que falámos.”Isso terá sido quando? “Por volta de 2010. Depois também saí de Portugal, deixei de ter disponibilidade para ir aos jantares. E a partir do momento em que ele voltou aos EUA perdemos-lhe todos o rasto. O decaimento dele, a entrada no buraco negro dentro da sua cabeça que desembocou nestas consequências trágicas, terá começado algures por essa altura. O ressentimento em relação a Brown, a incapacidade de lidar com o seu fracasso — ou o que ele entendia ser o seu fracasso, ou a sua desilusão, não sei como entendia o seu percurso…”Aparentemente levou muito tempo, esse processo — de 2017 até 2025. “Porque, lá está, ele não era um monstro. Se fosse um psicopata, teria sido uma coisa instantânea. Mas ele não o era.”“Não gosto da palavra génio, mas é o que ele era”Há ecos distintos deste homem cuja memória Luís tenta reconciliar com os acontecimentos brutais da última semana, iniciados no ataque em Brown, a 13 de dezembro, o qual resultou na morte de dois jovens alunos, Ella Cook e Mukhammad Aziz Umurzokov, e que as autoridades americanas começaram por achar não ter qualquer relação com o homicídio do físico Nuno Loureiro, na noite de 15, noutro estado (Brown é em Providence, Rhode Island, Nuno foi assassinado em Brookline, na área metropolitana de Boston, capital do Massachusetts).Há, desde logo, a perspetiva de Filipe Moura, um físico matemático que, no mesmo curso que Cláudio mas mais adiantado, foi monitor da cadeira de Análise Matemática III da turma dele. Como o DN noticiou esta sexta-feira, sem o nomear, Filipe Moura escreveu um post no Facebook no qual descreve Cláudio como um aluno “que evidentemente era um dos melhores, um fora de série” (viria a licenciar-se com 19 valores, segundo informação comunicada pelo Técnico), mas “arrogante”, “desagradável”, que arranjava quezílias na aula com outros alunos por ter “uma necessidade muito grande de se fazer notar e de mostrar que era melhor do que os outros”, “envolvendo-se frequentemente em quezílias com colegas que ele não considerava tão brilhantes como ele (e que provavelmente não eram - mas eram seus colegas e tinham todo o direito de estarem ali)”.Ele era, diz o físico ao DN, “muito impaciente. havia muitas pessoas com egos muito desenvolvidos no curso e ele queria demonstrar que não eram tão espertos como pensavam. Criava problemas nas aulas.” O conflito ocorria, reflete, “sobretudo com pessoas que estavam armadas em boas, numa atitude típica de criança sobredotada.”Luís nunca viu nada de semelhante: “O Cláudio era um gajo exigente. Consigo e com os outros, os professores e colegas. Lia os livros de antemão para não ser apanhado de surpresa nas aulas. Era atento e intervinha, sim, se achasse que um argumento estava mal fundamentado. Mas não acredito que alguma vez tenha dito ‘tu és burro’, ‘tu não percebes, não sabes do que estás a falar’. Nunca o vi fazer uma coisa dessas. Não era de se levantar e insultar, de gritar.”Filipe Moura, no entanto, insiste: a pose existia e Cláudio levou-a para Brown. “Troquei muitos emails com ele nessa altura e vi que ele mantinha a mesma atitude — que me contava — de suscitar conflitos desnecessários com colegas do doutoramento nas aulas, que mais uma vez ele considerava muito menos capazes do que ele — e que provavelmente até seriam. Pude-me aperceber de que ele não estava a gostar de estar na Universidade de Brown, mas procurei convencê-lo de que aquilo seria uma fase inicial, um choque cultural, mas que aquele doutoramento era uma excelente oportunidade que ele não deveria desperdiçar, e que quando começasse a fazer investigação e acabasse a fase curricular de certeza que iria gostar.” .“Ele era de longe o melhor na nossa turma. Estava pronto para se doutorar quando chegou. Não gosto da palavra génio, mas é o que ele era.”Scott Watson, colega de Cláudio Valente na Universidade de Brown..Não adiantou, porém. “O Cláudio achava que nada daquilo valia a pena, que era uma perda de tempo e os outros eram todos uns incapazes. E desistiu do doutoramento ao fim de um ano.”Poderá, concede Filipe Moura ao DN, ter havido alguma justificação para o enfado: “Às vezes as universidades americanas obrigam os alunos estrangeiros a provar, a refazer certas disciplinas, em vez de fazerem logo o exame de entrada. E acho que foi o que se passou, ele achou aquilo uma treta, estar a fazer outra vez o que já sabia.”Scott Watson, atualmente professor de Física na Universidade de Syracuse (Estado de Nova Iorque), colega de Cláudio em Brown que falou ao Boston Globe e ao New York Times, confirma a desilusão daquele com a universidade americana. “Ele era de longe o melhor na nossa turma. Estava pronto para se doutorar quando chegou. Não gosto da palavra génio, mas é o que ele era”, disse Scott ao Globe.O colega genial não se queixava só do nível das aulas: também o aborrecia a falta de qualidade da comida no campus, a começar pela ausência de bom peixe. Costumavam ir comer os dois a um restaurante português local. Ao NYT, Scott, que se descreve como o único amigo que Cláudio teve em Brown, dá um tom mais crítico ao relato, atestando que, se podia ser “bondoso e gentil”, ao ex-colega também ocorria ser um bully, tendo até apelidado um outro aluno brasileiro de “escravo”: “Cheguei a ter de parar uma briga”. . “O melhor mentiroso é o que consegue mentir a si próprio”O Boston Globe cita Scott como tendo tentado, como Filipe Moura, convencer Cláudio a perseverar no doutoramento, sem sucesso: ele achava que não estava ali a aprender nada.O jornal refere ainda uma mensagem deixada por Cláudio, em português, no grupo de mensagens do departamento de Física da Universidade. “OK! Estou de volta a casa e abandonei de vez o doutoramento em Física de Brown. E o moral da história é: o melhor mentiroso é o que consegue mentir a si próprio. Estas pessoas existem em todo o lado, mas às vezes proliferam nos lugares mais inesperados.” Na mensagem há também, diz o Globe, referência a uma frase relativa a um jogo japonês de computador intitulado Zero Wing, e cujo objetivo é derrubar uma organização alienígena e libertar a galáxia. Quem era o melhor mentiroso? Estaria Cláudio, o estudante que na escola secundária Maria Lamas, em Torres Novas, deixou uma impressão indelével nos professores e é descrito pela mulher de um deles ao Observador como “bom de todos os pontos de vista, afável, muito inteligente, de relacionamento cordial e correto”, a falar de si e dos seus sonhos desfeitos? Luís, que gostou muito de ler o relato que uma ex-colega no Portal Sapo fez ao DN sobre os vários anos (pelo menos nove) que Cláudio ali trabalhou, de um homem gentil e paciente, “um doce”, com “apuradíssimo sentido de humor”, brincalhão e capaz de passar horas a discutir se o zero é par ou impar (“Adorei, deu-me uma imagem dele que condiz com a que tenho”), suspira.“Todos nós quando entrámos ali éramos os maiores. Éramos cumprimentados no departamento de Física com ‘vocês são a elite da elite’. A elite são os que entram no Técnico e a elite da elite são os que entram em Física. E havia a ideia de que o percurso natural, o percurso ótimo, era fazer o curso, ir para um doutoramento numa universidade de topo no EUA, e tornar-se um cientista, um académico, um professor universitário. Esse é o caminho de sucesso definido, standardizado. A minha opinião é que de facto existe uma primeira divisão, uma segunda divisão e uma terceira divisão. A investigação em primeiro lugar, a investigação experimental em segundo, a engenharia em terceiro. Vai para fora da academia quem não consegue um doutoramento. Mas há a noção de que a excelência é o objetivo, o requisito.” ."Quando entrámos ali éramos os maiores. Éramos cumprimentados no departamento de Física com ‘vocês são a elite da elite’. Aos poucos, fomos aprendendo que já não éramos os maiores, os melhores. Muitos de nós tiveram a primeira negativa da vida no Técnico. E é duro, um miúdo que cresce a ouvir que é muito inteligente, que vai ser e vai fazer, e de repente constata as suas limitações. Custa muito, a ideia de ser mediano, banal.Ex-colega de turma.. Ao ponto de, conta com uma gargalhada, “haver um colega que tinha sido o melhor aluno da Madeira e até homenagens do Governo Regional teve.” Vinham todos com as suas medalhas: “O Cláudio foi o segundo melhor aluno de Física do país no 12º, vinha das Olimpíadas Nacionais de Física, eu vinha das Olimpíadas de Matemática. Se alguém não tinha estado nas Olimpíadas, era do tipo ‘meu, que andaste a fazer, há algo de errado contigo’.”E aos poucos, prossegue, “fomos aprendendo que já não éramos os maiores, os melhores. Muitos de nós tiveram a primeira negativa da vida no Técnico. E é duro, um miúdo que cresce a ouvir que é muito inteligente, que vai ser e vai fazer, e de repente constata as suas limitações. Custa muito, a ideia de ser mediano, banal. E quem tem apoio da família tem, quem não tem… O apoio a nível de saúde mental era pouco, nessa época, estávamos nos anos 90. Ninguém dizia ‘estou deprimido’.”Se calhar, aventa Luís, que também desistiu do doutoramento e do sonho de criança de ser cientista, tendo levado algum tempo a fazer paz com isso, “o passo trágico que faltou ao Cláudio foi saber aprender com o fracasso.” “Quis matar o espelho, a sua antítese?”Aprender com o fracasso é precisamente a lição essencial de uma palestra de Nuno Loureiro que o grupo da turma de 1995 partilhou, entre outros vídeos dele, quando soube da morte. Intitulada On faillure (Sobre fracasso), tem sete anos. O físico inicia-a dizendo que também poderia tê-la nomeado “elogio do fracasso”. E lembra que, sendo a definição de fracasso a incapacidade de atingir determinados objetivos, essa definição conduz inevitavelmente à definição do que é um objetivo. E o que é um não-objetivo, questiona, para responder: “Algo em que não se pode falhar [ou seja, que é demasiado fácil].” Então todo o objetivo, para ser mesmo um objetivo, implica que se tente muitas vezes, se falhe muitas vezes — até que não. “Se não estivermos a falhar todo o tempo, estamos a apontar muito baixo. O fundamental é a forma como se lida com o falhanço, o falhanço constante”, afirma Nuno. “Não devemos só aceitar o fracasso, mas abraçá-lo, porque só falhando poderemos ter a hipótese de sucesso.”Ou só falhando podemos viver, porque, nas palavras do escritor irlandês Samuel Beckett, só há falhanço — umas vezes melhor, outras pior: “Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better” (Tentaste. Falhaste. Não interessa. Tenta de novo. Falha de novo. Falha melhor). A voz de Luís enrouquece. “É poético, é uma palestra belíssima, a do Nuno. A forma humilde como ele comunica isso, como diz que falhou muito mais do que acertou… Ele não era o mais brilhante da turma. Mas era aplicado, trabalhador. Um gajo humilde, pacato, não se punha em bicos de pés, não era competitivo. E extremamente empático, dado, um amor de pessoa. E surpreendentemente, porque não era dos que mais se destacavam, foi o que teve a carreira com a maior projeção internacional. Há da nossa turma gente com muito sucesso, mas o Nuno era o diretor de Plasmas e Fusão Nuclear do MIT.” . Terá sido isso, essa nomeação com um ano, a fazer o clique? “É uma mera conjectura, mas eu também a fiz. Pode ter sido o catalisador, a gota de água. Parece que o Cláudio decidiu, a certa altura, não sei quando, cometer um ataque em Brown, para se vingar de Brown, para mandar uma mensagem, e matar o Nuno, e que ia ser o fim da estrada para ele, ali naquele armazém — num sítio vulgar, reles. E este é o ponto em que o melhor é perguntar a psicólogos o que raio lhe pode ter passado pela cabeça. Parece ser um caso crítico de saúde mental que se foi deteriorando até que colapsou e perdeu toda a humanidade. Todos temos poder sobre a nossa vida, mas a certa altura o Cláudio deixou de se responsabilizar pela dele, atribuindo toda a responsabilidade a fatores externos, entidades externas. E matou aqueles dois estudantes sem culpa nenhuma. E matou o Nuno — um pai de três filhas, casado, um professor de quem todos diziam tão bem, um colega de quem nenhum de nós tem algo de desagradável a dizer, que estava a liderar um grupo que um dia poderá ser o grupo que consegue tornar a fusão nuclear uma realidade, o que pode potencialmente resolver o problema energético da humanidade… É monstruoso.” Luís respira fundo. “Será que o Cláudio escolheu o Nuno por ser o símbolo do sucesso que quis que fosse seu, que achava que merecia? Quis matar o espelho, a sua antítese? Porque o Nuno foi, creio que desde sempre, o ex-aluno com o maior sucesso internacional, que mais orgulho trouxe ao Técnico. E o Cláudio fica o aluno infame, que comete o inimaginável, que desgraça o nome da escola. Como disse ontem uma pessoa que também os conhecia, foi o melhor e o pior que o Técnico pode produzir — juntos na mesma turma ao mesmo tempo.” .“O Cláudio Valente? Como?? Fónix, ele era um doce”.Pais de Cláudio Valente não sabiam nada dele há anos. Português entrou nos EUA através de lotaria de vistos