Seis seguranças da Prestibel e três inspetores do SEF arguidos por tortura e omissão de auxílio
"O que se passou aqui não tenho grandes dúvidas sobre uma situação de tortura evidente."
Ao falar pela primeira e única vez, a 15 de novembro de 2020, sobre a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, que ocorrera oito meses antes sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a então diretora desta polícia, Cristina Gatões (que se demitiria pouco depois, a 9 de dezembro), imputou aos responsáveis o crime de tortura. Também a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) usou a expressão tortura no seu relatório. Mas este crime, que não foi incluído na acusação aos três inspetores condenados pela morte de Ihor, só agora surge indiciado num dos inquéritos criminais a ela associados que ainda decorrem - pelo menos dois, sendo o segundo por falsas declarações em tribunal -, e que tem como arguidos seis dos oito seguranças que contactaram com o cidadão ucraniano durante a sua detenção, e três inspetores do SEF, dois dos quais superiores hierárquicos dos três condenados.
É esta a primeira grande novidade quanto a este inquérito, do qual o DN já indicara em agosto a existência, numa altura em que, de acordo com a Procuradoria-Geral da República, tinha apenas cinco arguidos, crendo-se que estavam em causa os crimes de omissão de auxílio e de ofensas à integridade física graves qualificadas (para além do de exercício ilegal de segurança privada, originalmente em inquérito autónomo ao qual foi apenso aquele de que trata esta notícia). O crime de omissão de auxílio confirma-se, mas o de ofensas à integridade física terá sido substituído pelo de tortura.
De resto, já se sabia que a acusação dos três inspetores do SEF Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa pela morte de Ihor - entretanto condenados, já em segunda instância, no Tribunal da Relação, a nove anos de prisão por ofensas à integridade física graves, qualificadas e agravadas pelo resultado morte, condenação de que vão recorrer para o Supremo - não era o fim do processo Ihor na justiça.
Já se sabia que existiam outros inquéritos criminais, relativos a outras pessoas que contactaram com o cidadão ucraniano, e que o Ministério Público não quis acusar no mesmo momento em que acusou os três inspetores, preferindo "fatiar" o processo, e portanto a responsabilidade criminal por esta morte, em vários inquéritos. Uma opção que foi já objeto de críticas, sendo até considerada "malandrice policial" - por estar em causa "usar" como testemunhas, numa primeira fase, e para obter a condenação de uns arguidos, aqueles que se pretende numa segunda fase acusar, usando depois como testemunhas contra eles os primeiros arguidos.
É mesmo o caso: depois de os seguranças da Prestibel, a empresa de segurança privada contratada pelo SEF para fazer a vigilância do centro de detenção onde encerrava os estrangeiros não admitidos em território nacional (como Ihor) terem servido de testemunhas contra os três inspetores em julgamento, estes estão agora a ser chamados para serem ouvidos no inquérito em que os seguranças são arguidos.
Sabe-se então agora que existem dois inquéritos ainda ativos à volta do caso Ihor - o relativo aos crimes de omissão de auxílio e tortura, ao qual foi apenso, como já referido, um outro relativo ao eventual exercício ilegal de segurança privada (este resultante de uma queixa do Sindicato dos Inspetores do SEF), e um segundo. respeitante ao crime de falsas declarações, que resultou de extração de certidão, pedida pelos advogados dos três inspetores, relativa ao testemunho de três dos seguranças em tribunal. Do inquérito inicialmente separado do principal - este respeitante à acusação dos três inspetores por homicídio qualificado - e que segundo o MP investigava falsificação de documentos, não foi possível obter informação.
Não são só os inquéritos à volta deste caso que são muitos; os arguidos também têm vindo a crescer. A segunda novidade é pois que neste momento o inquérito sobre omissão de auxílio e tortura tem já nove arguidos - os seguranças Paulo Marcelo, Ana Sofia Lobo, Cátia Castelo-Branco, Manuel Correia, Rui Rebelo e Jorge Pimenta e os inspetores João Diogo, João Agostinho e Cecília Vieira. Três dos seguranças - Paulo Marcelo, Manuel Correia e Rui Rebelo - bisam no inquérito relativo a falsas declarações.
Paulo Marcelo, Ana Sofia Lobo, Cátia Castelo-Branco e Manuel Correia foram a equipa da Prestibel de serviço na noite de 11 para 12 de março, e admitiram em tribunal que manietaram a vítima, repetidamente, com fita adesiva - Marcelo e Correia confessaram ter sido os perpetradores da ação, enquanto que Ana Lobo e Cátia Castelo-Branco assumiram tê-los assistido, indo buscar a fita adesiva. Um ato que a IGAI já advertia no seu relatório, de setembro de 2020, poder ser "considerado tratamento degradante, tortura e atentado à dignidade humana, pondo em perigo a vida e integridade física do algemado". E ao qual poderá corresponder, de acordo com o que parece ser o entendimento do MP, o crime previsto no artigo 243º, número 1, do Código Penal (CP), "Tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano".
Este crime é descrito como a ação que "consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave (...) com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima", de quem, "tendo por função a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infrações criminais, contra-ordenacionais ou disciplinares, a execução de sanções da mesma natureza ou a proteção, guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa", a torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana "para obter dela ou de outra pessoa confissão, depoimento, declaração ou informação", ou "a castigar por ato cometido ou supostamente cometido por ela ou por outra pessoa", ou "a intimidar ou para intimidar outra pessoa", e é punido com prisão de um a cinco anos.
Aos outros dois seguranças arguidos deverá corresponder o crime de omissão de auxílio (o qual em princípio também deverá ser imputado aos primeiros quatro). Previsto no artigo 200º do CP e com pena até um ano, trata-se da não ação de "quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa" deixar de lhe prestar o auxílio "necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro." A pena aumenta para o dobro se quem não auxilia tiver causado a situação referida.
Das duas equipas de seguranças da Prestibel que estiveram de serviço a 11 e 12 de março, durante o tempo que Ihor Homeniuk esteve detido no centro de detenção do SEF no aeroporto de Lisboa, só duas funcionárias não são, até agora e que se saiba, arguidas: Sónia Antunes e Mihaela Andrei. O que se estranha: considerando-se que os dois colegas com quem faziam equipa (Rui Rebelo e Jorge Pimenta) tinham a obrigação de prestar auxílio a Ihor, não se percebe por que não o teriam elas.
Quanto aos inspetores arguidos neste inquérito - o inspetor-coordenador João Agostinho, o inspetor-chefe João Diogo e a inspetora Cecília Vieira, supõe-se igualmente que esteja em causa o crime de omissão de auxílio.
João Agostinho e João Diogo eram superiores hierárquicos de Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa, os três inspetores condenados, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a nove anos de prisão por ofensas às integridade física graves, qualificadas e agravadas pelo resultado morte na pessoa de Ihor Homeniuk (irão agora recorrer para o Supremo).
Agostinho esteve no centro de detenção antes da intervenção destes, tendo visto Ihor amarrado com fita adesiva e nada feito, assistindo depois ao início da interação dos três inspetores com Ihor e retirando-se a seguir, nunca mais se interessando pela situação do detido e por saber se tinha sido desalgemado; João Diogo mandou-os, por ordem de Agostinho (que por sua vez obedecia à ordem do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques), "acalmar" Ihor, e sabendo que este fora algemado, nada fez para certificar que era desalgemado - o cidadão ucraniano ficou algemado mais de oito horas, o que de acordo com o relatório da autópsia terá sido causa concomitante da sua morte por asfixia -; Cecília Vieira foi por duas vezes espreitar à sala onde tinham metido Ihor, uma antes da intervenção dos três inspetores (quando o detido estava manietado com fitas adesivas) e outra a seguir, e também nada fez.
Há quem defenda que no caso de existir um "dever de garante" - ou seja, o especial dever de evitar um resultado, como sucede com polícias ou com os vigilantes a quem é entregue a responsabilidade de zelar por pessoas - e alguém com esse dever não faz o que lhe é exigido, resultando dessa inação a morte de outrem, o crime imputável é homicídio por omissão.
Isso mesmo já defendeu a advogada do inspetor do SEF Luís Silva, Maria Manuel Candal, num recurso ao Tribunal da Relação, referindo-se aos vigilantes: "Recaindo sobre esses funcionários um dever de garante decorrente do contrato assinado entre a Prestibel e o SEF, ao agirem por omissão, se essa omissão tem por resultado uma morte, é cometido o crime de homicídio por omissão e não um mero crime de omissão de auxílio." A mesma lógica, naturalmente, se aplicará a todos os inspetores do SEF arguidos por omissão de auxílio.
Um nome que se esperaria encontrar na lista de arguidos por omissão de auxílio - e não consta - é o do ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques.
Henriques, que foi, devido à sua atuação neste caso, expulso da função pública por proposta da IGAI, é um dos inspetores em relação aos quais o MP já manifestara a intenção de constituir arguidos por omissão de auxílio.
Recorde-se que em julho de 2021, depois da condenação, em primeira instância, de Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa, a procuradora Leonor Machado requereu ao tribunal que extraísse certidão do acórdão para instaurar procedimento criminal contra quatro seguranças (Paulo Marcelo, Manuel Correia, Rui Rebelo e Jorge Pimenta) e três inspetores: João Agostinho, João Diogo e Sérgio Henriques. Os crimes em causa eram omissão de auxílio - em relação a todos os indicados - e ofensas à integridade física graves qualificadas quanto aos seguranças Paulo Marcelo e Manuel Correia, por terem manietado Ihor com fita adesiva.
Estes últimos disseram, enquanto testemunhas no julgamento dos três inspetores, que se mantinham ao serviço da empresa Prestibel em organismos do Estado e que não tinham sido objeto de qualquer processo disciplinar. A Prestibel, cujo CEO é o coronel do Exército António Maria Cardoso de Almeida Coimbra, comandante do Corpo de Intervenção da PSP entre 1978 e 1982, nunca fez qualquer esclarecimento público sobre o caso Ihor. E, como o DN noticiou, viu todos os seus contratos com o SEF renovados já depois da morte de Ihor, o último dos quais a 28 de janeiro de 2021 - para serem cancelados em abril desse ano.
A Polícia de Segurança Pública, entidade que tem a incumbência de fiscalizar o exercício da segurança privada em Portugal, não abriu qualquer processo de inspeção nem aos seguranças envolvidos na morte de Ihor nem à Prestibel e tem sempre dito, em resposta às perguntas do DN, que não o fará até à conclusão de processo judicial: "A PSP continua a aguardar a decisão judicial que determinará os procedimentos em termos de futuro quer sobre a atuação da empresa (Prestibel), quer sobre a atuação dos seus funcionários".