Julgamento de homicídio no SEF. "Era uma situação de rotina. Os três inspetores só tentaram acalmá-lo"

Um superior hierárquico dos três acusados do homicídio de Ihor Homeniuk fala de "situação de rotina" e garante que não viu os subordinados serem violentos com Ihor. "Só diziam "calma, calma". Não vi nada de censurável." É uma das poucas testemunhas oculares da interação entre acusados e vítima e volta ao tribunal esta quinta-feira.
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Como o gato de Schrödinger, Ihor Homeniuk estava uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo. Violento e calmo, no caso. Deitado no chão, quieto e de tornozelos imobilizados com fita adesiva num momento; em pé, rodeado por três inspetores armados de bastão e a precisar de "ser acalmado" no momento seguinte.

Pelo menos se visto pelo olhar de João Agostinho, a última das testemunhas a serem ouvidas esta quarta-feira, segundo dia do julgamento dos três agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva - acusados do homicídio do cidadão ucraniano a 12 de março de 2020 no aeroporto de Lisboa, no centro de detenção para estrangeiros daquele organismo. Foi aí, no denominado Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) e nesse mesmo dia de manhã que este inspetor coordenador de 60 anos viu Ihor pela primeira vez. Tinha ouvido "via rádio", contou ao tribunal, que havia um estrangeiro "que estava muito exaltado" e que o então diretor de Fronteiras de Lisboa (entretanto demitido, na sequência desta morte), Sérgio Henriques, determinara que fossem três inspetores "acalmá-lo". Chegou ao EECIT antes deles e foi ver do "estrangeiro exaltado", que estava na chamada "sala dos Médicos do Mundo", uma pequena divisão que era usada para "isolar" detidos.

Em vez de um estrangeiro exaltado, porém, terá encontrado um homem deitado no chão, sobre um colchão, quieto e com fita adesiva a unir os tornozelos. Um homem que, garantiu ao tribunal, nem chegou a ver bem, porque se limitou a espreitar através da porta entreaberta para dentro da pequena divisão: "Só vi os pés."

Perguntado pelo juiz Rui Coelho por que não abriu a porta para ver melhor, respondeu: "Tinha conhecimento de que o diretor de Fronteiras estava a par do assunto." E acrescentou: "É uma situação de rotina, que sucede com alguma frequência naqueles instalados. E sabia que estavam a chegar três inspetores que iam tratar da situação." À questão do magistrado sobre o motivo pelo qual não interveio quando constatou que o homem estava manietado com fita adesiva, algo que João Agostinho disse nunca ter visto antes e admitiu não dever acontecer, repetiu: "Porque estava a chegar uma equipa que ia avaliar a situação."

Equipa com a qual João Agostinho se encontrou no balcão da receção do EECIT. Começou por dizer que nem teve oportunidade para falar com eles, mas o juiz corrigiu-o: os três inspetores ainda entregaram armas de fogo aos seguranças (funcionários de uma empresa privada contratada pelo SEF) antes de se dirigirem à sala onde estava Ihor, pelo que houve mais que tempo para João Agostinho lhes dizer que o homem estava calmo e de pés amarrados. No entanto, concluiu o juiz, nada lhes disse, já que estes quando avançaram ao encontro do detido iam preparados para enfrentar resistência: um deles, Luís Silva, um licenciado em Filosofia de 44 anos que entrou para o SEF em 2004, até ia com o bastão extensível (pela detenção do qual está também acusado, tal como Duarte Laja, do crime de posse de arma proibida) na mão.

Apesar de não ter tido, de acordo com o seu depoimento, qualquer troca de palavras com os acusados sobre Ihor, foi atrás deles e assistiu a parte da intervenção, que aprovou: "Não vi nada de censurável ou que não estivesse dentro das regras. Cheguei uns cinco minutos depois, numa altura em que estavam a tentar acalmá-lo." E como o juiz perguntasse em que consistia essa tentativa, João Agostinho descreveu: "Diziam "calma, calma". Ele estava em pé, rodeado por eles, que estavam a segurá-lo." Em tom incrédulo, o juiz perguntou: "Estava em pé? Então minutos antes havia uma pessoa deitada, sossegada, de pés amarrados, e de repente já está de pé?"

A resposta a esta pergunta, tanto mais relevante quando os acusados afirmaram na primeira sessão do julgamento, na terça-feira, que Ihor terá resistido com agressividade e tentado pontapeá-los, terá de esperar pela manhã de quinta-feira, pois o magistrado suspendeu a maratona de testemunhos - iniciada com meia hora de atraso, pouco depois das 10 - às 15 horas, dizendo estar "muito cansado", e pedindo a João Agostinho para voltar no dia seguinte às 9.30. Até lá, o inspetor coordenador, que é das poucas testemunhas oculares da interação entre os acusados e Ihor e dentre elas aquela com um cargo de maior responsabilidade, terá tempo para pensar em como resolver a contradição.

Que esteve longe de ser a única nas quase cinco horas de depoimentos, nove ao todo. Estes começaram com o quase pranto de uma empregada de limpeza do EECIT: ao entrar na sala e ser interpelada pelo juiz para dizer nome, idade e profissão, a mulher, que trabalha há muito para o SEF, começou a chorar.

Todo o seu testemunho foi prestado em estado de grande nervosismo, umas vezes não se percebendo o que dizia, outras tendo de ser recordada do que dissera à Polícia Judiciária no inquérito ou confrontada com o que as imagens de videovigilância registaram

Também esta testemunha, que iniciou o seu turno às sete horas de 12 de março, notou Ihor calmo, "mais ou menos sentado num colchão". Acha que tinha as mãos livres mas pareceu-lhe que os pés estavam presos. O homem falava baixo, numa língua que ela não percebeu, e a dada altura terá tentado mover-se para sair da sala, empurrando o corpo com os braços, ao que lhe fez sinal com a mão para parar; ele obedeceu.

Questionada sobre se notou algum cheiro vindo daquela divisão e pessoa - há registo no processo de que Ihor já nessa altura "cheirava muito mal" e se teria urinado, estando com as calças em baixo - disse que "não dá para cheirar nada àquela distância". Cruzou-se, "quando ia despejar o lixo", com os três inspetores que iam ao encontro do ucraniano. Mas garante não ter sabido ou ouvido nada, nem gritos nem coisa nenhuma, "enquanto andava no serviço". E que aquando das 10, 11 horas a porta da sala, na qual não entrou para limpar, como seria suposto fazer, "por causa daquela situação" (não explicou qual porque ninguém perguntou), não estava aberta, pelo que não terá visto mais aquele homem até acabar o seu turno, pelas 14.30/40 horas.

A questão do cheiro na sala e do que Ihor tinha vestido, assim como se tinha ou não as calças descidas e estava urinado, são outras em que intervenientes e testemunhas se contradizem.

Há quem, por exemplo, diga que não o viu com as calças descidas, apenas amarrotadas, mas reparou que estava descalço. Caso do inspetor Filipe Cardoso, que esteve com Ihor na madrugada de 12, "por volta das cinco da manhã", e lhe retirou as fitas adesivas que lhe haviam sido colocadas pelos seguranças privados, substituindo essa contenção, a qual considerou "manifestamente desajustada" e já lhe deixara marcas nos pulsos e tornozelos, por lençóis rasgados (técnica que disse à PJ ter aprendido quando trabalhou num hospital psiquiátrico). "Em momento algum foi agressivo. Expliquei-lhe que era para dormir e ficou sossegado", atesta este agente, que também diz não se ter apercebido "de evidência de auto-violência", apesar de os seguranças lhe terem dito que "ele se atirava contra as paredes."

Terá sido devido a essa descrição no entanto que tanto Filipe Cardoso como o colega que acompanhava, Ricardo Diogo - e que já contactara duas vezes antes com Ihor, numa das quais no final da noite de 11 de março, tendo-o algemado e conduzido à sala "dos médicos" - acharam por bem amarrar o homem.

Um procedimento reputado de "anómalo" pela acusação do Ministério Público, "dado que os passageiros com ordem de retorno não podem nem devem ser privados da liberdade como era o caso". E que levou a Inspeção Geral da Administração Interna, órgão de fiscalização das polícias que investigou o caso paralelamente à investigação criminal, a propor processos disciplinares aos dois - propôs ao todo 12 processos disciplinares a funcionários do SEF, 11 inspetores e a funcionária administrativa Carla Lança.

Essa funcionária administrativa, Carla Lança, única pessoa do SEF que à data dos factos trabalhava no EECIT (era suposto haver ali um inspetor coordenador, responsável pela gestão dos estrangeiros detidos, mas o lugar estava vago desde novembro), contou ao tribunal que perto das 9.45 horas o diretor de Fronteiras a mandou ir ver do cidadão ucraniano: "Disse-me para ir à sala dos Médicos ver o que se estava a passar. Estava lá uma pessoa deitada num colchão azul e pareceu-me que estava a dormir." Também lhe pareceu algemado de mãos atrás das costas. Questionada sobre a posição, disse que estava de lado, "em posição fetal", e sobre o cheiro, que não lhe cheirou a nada. Já o motivo pelo qual crê que o diretor lhe solicitou tal verificação deixou o juiz espantado: "Foi só por curiosidade, mais nada. Não sei qual foi a ideia dele, mas não falei mais com o diretor nesse dia."

Outra curiosidade, a do inspetor Bruno Antunes, chegou mesmo a escandalizar o magistrado. Aquele inspetor esteve no EECIT na manhã de 12 de março, encontrando lá Luís Silva, no balcão da receção. Perguntou o que estava ali a fazer e este disse-lhe, acrescentando: "Se quiseres vai lá ver."

E Antunes foi, deparando-se com Ihor deitado de barriga para baixo sobre um colchão, algemado atrás das costas ("Nos pés não verifiquei"), ladeado por Duarte Laja e Bruno Sousa, descrição que coincide com a feita pelos seguranças mas contradiz as dos acusados, que dizem ter colocado o homem de lado.

Este inspetor, que garantiu ter ido muitas vezes naquela manhã ao EECIT antes desta ocasião e não se ter "dado conta de nada de anormal", disse não ter reparado em quaisquer "marcas" de agressão e que Ihor estava "vestido normalmente", não tendo detetado "nenhum odor estranho". Mas anotou que o ucraniano fazia movimentos com os ombros, "parecendo não ter grande vontade de estar algemado." É que, explica, "geralmente as pessoas algemadas ficam mais calmas."

Agastado, o juiz perguntou se "havia alguma curiosidade, era alguma piada?", comentando: "No nosso entender aquilo não era um espetáculo." A ideia em ir lá era ver ser era precisa ajuda, respondeu o inspetor, "mas verifiquei que a situação estava controlada e fui fazer o que tinha para fazer."

Assim, de um modo geral, procederam todas as testemunhas ouvidas nesta quarta-feira, justificando que a IGAI tenha concluído no seu relatório que houve "uma postura generalizada de desinteresse pela condição humana" em "todos os intervenientes".

Também na generalidade dos depoimentos se manifestou essa postura, misturada com grandes lapsos de memória que como por milagre se reavivava quando o juiz, a magistrada do Ministério Público, Leonor Machado, ou os advogados referiam o constante nas imagens de videovigilância ou nas respostas à inquirição em sede de processo criminal - como foi o caso da inspetora Cecília Vieira e da empregada da limpeza, que primeiro não se lembravam de determinadas coisas e de repente as sabiam de cor.

Certo é que de todas as testemunhas só uma, o inspetor Bruno Francisco, que foi chamado pelos seguranças do EECIT, juntamente com o inspetor Ricardo Diogo (este deveria ter sido ouvido esta quarta-feira mas não compareceu), para "falar" com Ihor, atribui ao cidadão ucraniano uma postura desafiadora, "indomável". Estes inspetores estiveram com Ihor no fim da noite de 11 de março, tendo-o algemado.

Bruno Francisco tinha sido um dos inspetores que estivera com Ihor no hospital, onde este foi conduzido no início da noite de 10 de março, e onde pernoitou. Aí, disse ao tribunal, ele esteve "sempre calmo". Daí que quando chegou ao EECIT e viu que era a mesma pessoa ficou "muito surpreendido". Desta vez estava "muito irrequieto, com muita inquietude, a andar de um lado para o outro." Como havia "a barreira linguística" - nunca foi chamado um intérprete para Ihor durante todo o tempo em que esteve sob custódia do SEF, apesar de a lei prever que tal suceda -, explica, não foi possível perceber o que ele queria.

Às tantas, apontou para um cigarro e levaram-no ao pátio para fumar, pensando que estaria enervado por causa disso. Mas aí terá começado a "ter comunicações agressivas com outros inadmissíveis" (jargão do SEF para os estrangeiros cuja entrada em território nacional não é admitida e que aguardam repatriamento, como era o caso do ucraniano). "Ele estava a fumar e de repente avançava, e com medo que fizesse uma investida mais forte resolvemos algemá-lo para evitar qualquer conflito." Mas Ihor resistiu, cravando as unhas no braço do outro inspetor. "Ele está com muita força", terá comentado Ricardo Diogo, tendo os dois acabado por "transportá-lo para o chão" para conseguirem colocar-lhe as algemas. Não foi, porém, assevera Bruno Francisco, "arremessá-lo com violência."

Algemaram-no à frente e levaram-no para a "sala dos médicos", de onde foram retiradas todos os objetos (uma secretária e talvez uma maca, não ficou claro). Ligaram depois para uma colega inspetora que fala russo, para que esta falasse ao telefone com Ihor. "Ela disse que ele não dizia coisa com coisa."

No dia 11, Ihor tinha sido visto pela inspetora Cecília Vieira a apanhar o telemóvel de um dos seguranças no balcão da receção, ao que este lhe gritou "dá cá isso, que é meu", retirando-lho. Aparentemente, nunca ocorreu a nenhuma dos inspetores e seguranças que contactaram com Ihor que talvez ele, até por só falar ucraniano, não percebesse bem o que se estava a passar consigo e precisasse de contactar alguém fora do EECIT.

"Quando o viu apanhar o telefone não lhe ocorreu que ele precisava de telefonar?" A pergunta foi feita à inspetora pelo advogado da viúva de Ihor, José Gaspar Schwalbach. Esta, que disse ao tribunal não "se lembrar de nada" da altura em que esteve no EECIT ao mesmo tempo que os acusados e na qual, a videovigilância comprova-o, esteve à entrada da sala dos médicos, não chegou a responder.

NOTA: Texto alterado às 17 horas de dia 3 de fevereiro, para corrigir o nome da procuradora do MP.

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