"Ninguém, desde os que o algemaram até ao topo da hierarquia, se preocupou com o facto de aquela pessoa estar algemada?"
"É normal algemarem os passageiros?"
"É normal."
"No último ano recorda-se de algum caso em que tenham algemado um passageiro?"
"Não."
"Então como diz que é normal?"
"Não é normal mas neste caso foi."
"Então porque é que foi tratado como uma situação normal? Se raramente acontece colocar algemas, porque é que foi tratado como se fosse normal?"
"Quando se algema uma pessoa nunca é uma situação normal."
"Se não é normal, porque é que não teve o seguimento diferente do normal?"
"Não estou a perceber qual era o seguimento."
O diálogo parece de um sketch cómico, mas foi o que ocorreu esta quarta-feira entre o coletivo de juízes e uma das testemunhas no julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk.
A testemunha em causa é o inspetor-chefe João Diogo, superior hierárquico dos três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - Luís Silva, Duarte Laja e Bruno Sousa - acusados de a 12 de março de 2020, no centro de detenção daquela polícia no aeroporto de Lisboa, terem agredido brutalmente o cidadão ucraniano e o terem deixado algemado, de mãos atrás das costas e deitado, durante mais de sete horas.
Foi este inspetor-chefe de 57 anos, que disse trabalhar no aeroporto de Lisboa há 30, a dar a ordem aos três para irem na manhã daquele dia ver daquele detido ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), como é denominado o centro de detenção, para o "acalmar", na sequência de lhe ser comunicado pelo seu superior hierárquico direto, João Agostinho, que "havia um passageiro a causar distúrbios, e que era preciso mandar lá alguém ver o que se passava."
João Diogo garante que Agostinho lhe disse especificamente para mandar três inspetores. "Porquê três pessoas", perguntou um dos juízes. "Não questionei a ordem", respondeu, contando ao tribunal que a seguir à intervenção os três inspetores foram ter com ele.
"Disseram que foi uma situação normal", narra. E reproduz aquilo que terá sido o relato dos três: "Quando lá chegámos o senhor estava todo amarrado com fita adesiva [como é sabido, os funcionários da empresa de segurança privada Prestibel manietaram Ihor pelo menos duas vezes com fita adesiva], falámos com ele e vimos que ele continuou a esbracejar e a dar pontapés e para segurança dele e nossa foi algemado." Um dos três, Luís Silva, terá também dito que o inspetor de turno, João Agostinho, tinha "presenciado tudo."
Perante isto, o juiz presidente quis saber se João Diogo se tinha interessado mais pelo cidadão ucraniano. Este disse que sim: "A meio da manhã, como o homem estava algemado, lá para as dez e tal, passei pelo Luís e perguntei se ele sabia alguma coisa do senhor. E ele disse: "Acabei de falar com os seguranças e o senhor já está bem e tomou o pequeno-almoço.""
Questiona o juiz: "Passada hora e meia [da intervenção], dizem-lhe isso. Mas o homem ficou algemado. As algemas não desaparecem sozinhas. Os vigilantes podem retirar as algemas que os inspetores do SEF coloquem?"
"Não tenho conhecimento disso."
"Não tem conhecimento porque isso não acontece, pois não? Os vigilantes não têm autoridade para isso. Se o senhor não mandou ninguém lá, não teve a preocupação - se o homem está bem e já tomou o pequeno-almoço não seria de se retirar as algemas? Não teve a preocupação de saber quando as algemas eram retiradas?"
"Essa decisão não partia de mim. Não me deram a ordem."
"Porquê? Se foi por sua ordem que foram lá."
"Se me dissessem "vai lá ver como está o homem", eu tinha mandado alguém. Se designei alguém para lá ir foi porque me comunicaram. Partia-se do princípio de que ele estava bem."
"Mas estava algemado."
"Eu parti do princípio de que já estava desalgemado."
"Alguém disse que lhe tinham sido tiradas as algemas?"
"Não, ninguém me disse."
"Quem é que podia dar a ordem para retirar as algemas?"
"Quem estivesse a avaliar a situação."
"Mas se ninguém lá foi! Quem é que podia dar a ordem? É simples!"
"Eu nunca vivi essa situação. Não passou por mim."
"Se lhe dissessem que ele tinha as algemas o senhor podia tomar a decisão de mandar tirar as algemas?"
"Em casos excecionais eu podia tomar essa responsabilidade. Se eu soubesse que o homem estava mal, eu dizia para desalgemar."
"Então só podia tirar as algemas se ele estivesse mal? E se ele estivesse bem?"
"Se eu visse que era uma situação de vida ou de morte eu próprio desalgemava."
"Mas se presumiu que lhe tinham retirado as algemas quem é que achou que tinha mandado retirá-las?"
"Não sei."
"Ninguém, desde que os que o algemaram até ao topo da hierarquia, ninguém se preocupou com o facto de aquela pessoa estar algemada?", questionou um dos juízes adjuntos, incrédulo. E acrescentou: "Ó senhor inspetor, imagina que é uma pessoa estar deitada algemada das nove às cinco? Tem ideia do que é isso?"
"Sei agora, depois. Mas no dia 12 de março fui para casa [o seu turno terminava `as 15 horas] convicto de que o cidadão estava bem."
Grande parte do testemunho de João Diogo, que durou mais de 47 minutos, consistiu nisto: evasivas às perguntas exasperadas de juízes, procuradora e advogados sobre quem tinha a obrigação de mandar desalgemar Ihor e ir inteirar-se do seu estado - e por que motivo ninguém o fez durante as mais de sete horas que mediaram entre a intervenção dos três inspetores e o momento em que outros dois foram ao encontro do ucraniano para o conduzir ao avião que deveria levá-lo para fora do país. E deram com ele, pouco antes das cinco da tarde, como testemunhou esta quarta-feira Rui Marques, um desses dois inspetores, deitado de barriga para baixo, algemado de mãos atrás das costas e também de pés presos com algemas de pano -, de calças "em baixo", urinado e já moribundo.
Recorde-se que, de acordo com o médico que efetuou a autópsia, a morte de Ihor sobreveio por "asfixia mecânica" pelo efeito cumulativo de ter várias costelas fraturadas [alegadamente na sequência de agressões dos arguidos] e de ter sido deixado algemado de mãos atrás das costas e deitado, algo que só por si, mesmo sem fraturas, lhe dificultaria muito a respiração.
Mas o inspetor-chefe João Diogo, que é um dos 13 funcionários do SEF sujeitos a processos disciplinares pela Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) devido à respetiva atuação neste caso, acabaria por admitir, em resposta a uma pergunta da procuradora, que afinal - como resulta da mera lógica - podia ter dado ele próprio a ordem de desalgemar o detido.
"Eu, como autoridade de polícia, se me dissessem que ele continuava algemado e estava bem, tinha competência para mandar desalgemar."
Foi no entanto taxativo no sentido de desobrigar desse cuidado os três arguidos, incluindo o inspetor Luís Silva, dono das algemas que tinham ficado colocadas em Ihor.
"A partir do momento em que os três se dirigem a si e dizem que o homem ficou algemado, têm alguma possibilidade de individualmente ir lá ver o resultado do que aconteceu de manhã, desalgemá-lo, aliviar as algemas, ir buscar as algemas, desalgemar?", perguntou um dos juízes.
"Só com ordens", respondeu João Diogo.
Esta resposta parece de algum modo colidir com o que o inspetor Ricardo Diogo, que se lhe seguiu no banco das testemunhas, afirma. Este, que contactou duas vezes com Ihor, e na primeira das quais o algemou para o retirar do pátio onde o levara para fumar (temia, explicou, um confronto com outros detidos), retirou-lhe as algemas de seguida e declarou ter autonomia para algemar e desalgemar sem necessidade de autorização superior.
Ricardo Diogo também disse que não deixaria jamais uma pessoa algemada deitada - mesmo se reconheceu que a última formação que teve sobre algemamento foi em 2004 e que não se recorda se essa regra lhe foi comunicada.
Já João Diogo afiança que na mesma formação, no mesmo ano, lhe disseram que a posição correta era "de lado, em posição de segurança, não deitada".
Ao DN, depois do seu testemunho perante o tribunal - ficou na sala a assistir ao resto da sessão - repetiria o mesmo, enquanto demonstrava a que posição se referia: de lado, reclinado e de pernas deitadas, com o cotovelo no chão. À pergunta do jornal sobre como é que alguém com as mãos algemadas atrás das costas poderia permanecer naquela posição sem se desequilibrar (ou sequer pôr o cotovelo no chão), retorquiu: "Pode se estiver algemado com as mãos à frente." O que como se sabe não era o caso de Ihor.
Quando questionado sobre a existência de uma norma europeia, de 2004, com transposição automática para a legislação nacional, que especifica deverem as pessoas imobilizadas ser mantidas de tronco direito para certificar que respiram normalmente, o inspetor-chefe recusou responder a mais perguntas.
A norma em causa - decisão 2004/563 - foi exarada pela então Comissão Europeia na sequência da morte por asfixia de um cidadão nigeriano sob custódia da polícia de estrangeiros austríaca e estabelece que "nenhuma medida coerciva deve comprometer ou ameaçar a capacidade de (...) respirar normalmente. Em caso de utilização da força como meio de coerção, deve-se assegurar que o tronco da pessoa se mantém em posição vertical e que a sua caixa torácica não é comprimida, a fim de manter as funções respiratórias normais." A mesma norma prescreve igualmente que "os sujeitos imobilizados devem ser mantidos sob vigilância constante."
Numa conferência promovida em 2020, já após a morte de Ihor, pela IGAI, sobre "retornos forçados" (ou seja, as situações em que estrangeiros são obrigados a regressar aos respetivos países por não lhes ser admitida a entrada em Portugal, como foi o caso de Ihor, ou por serem objeto de medida acessória de expulsão no caso de serem condenados por crimes) um dos oradores citou amplamente esta norma, frisando que "os inspetores do SEF conhecem-na de trás para a frente."
Como se constata, não será bem assim - na verdade, ninguém no SEF do aeroporto de Lisboa que soube do algemamento de Ihor, desde o então diretor de Fronteiras Sérgio Henriques, que admitiu em tribunal saber que o ucraniano fora algemado (e ao DN conhecer a norma europeia), até aos que o algemaram, passando pelas chefias intermédias, João Agostinho e João Diogo, cumpriram ou fizeram cumprir a norma, ou seja, a lei - o cidadão ficou mais de sete horas algemado sem "vigilância constante" e deitado, de lado ou de barriga para baixo, jamais com "o tronco em posição vertical".
Aliás, antes ainda de ser algemado pelos três inspetores foi, durante a madrugada de 11 para 12 de março, manietado pelos funcionários da Prestibel - que obviamente não têm qualquer legitimidade para manietar pessoas - pelo menos duas vezes, com fita adesiva. De uma dessas vezes, de acordo com o testemunho do inspetor Ricardo Diogo, com "oito ou 10 voltas, das pernas ao peito." Foi assim, garantiu ao tribunal, que ele e o seu colega Filipe Cardoso encontraram Ihor. O que levou aquele último, ainda de acordo com Ricardo Diogo, a ser "cáustico com os seguranças, perguntando o que lhes tinha passado pela cabeça para fazer aquilo."
Foi exatamente o ser manietado com fita adesiva pela polícia austríaca que causou a morte do referido cidadão nigeriano em 1999.
Apesar de a referida atuação dos funcionários da Prestibel ser considerada por todos os inspetores que testemunharam no processo como "irregular" (a IGAI classifica-a de "tortura"), nem sequer foi reportada no relatório feito pelo SEF sobre Ihor (e que foi confecionado já após a morte, sob a direção do então diretor de Fronteiras de Lisboa - o qual seria demitido a 30 de março de 2020, quando morte do ucraniano e a suspeita de homicídio foram tornadas públicas). E como o DN já noticiou, o SEF renovou todos os contratos que tinha com aquela empresa, não exigindo desta qualquer reparação face ao ocorrido.
De resto, os seguranças que manietaram Ihor disseram em tribunal que a Prestibel não lhes instaurou qualquer processo disciplinar pelos factos descritos - e que os próprios confessaram em tribunal..
O DN questionou formalmente o SEF, a Polícia de Segurança Pública, a Guarda Nacional Republicana e a Inspeção Geral da Administração Interna sobre as regras de algemamento em vigor. Nenhuma destas instituições respondeu até ao momento da publicação deste texto..
Nota: Texto alterado às 14.51 de 11 de março, para acrescentar a referência às perguntas enviadas à GNR e à IGAI, que por lapso não haviam sido referidas.