"Para a prevenção é nefasto chamar terrorismo ao caso do João e não o fazer na violência da extrema-direita"

Cátia Moreira de Carvalho é investigadora de psicologia social na área do terrorismo e na prevenção da radicalização. É doutoranda da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e perita da <a href="https://ec.europa.eu/home-affairs/networks/radicalisation-awareness-network-ran_en" target="_blank">Radicalisation Awareness Network</a> da Comissão Europeia. Critica a "irresponsabilidade" de se libertar informação alarmista.
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Passada uma semana da detenção do estudante indiciado por suspeita de preparação de um atentado terrorista, já é possível perceber o que correu bem e o que correu pior?
O que correu bem foi o trabalho da Polícia Judiciária [PJ] que permitiu travar um ato de violência que, tendo em conta o que sabia na altura, podia resultar num massacre. Confio plenamente na PJ e no trabalho que faz em matéria de extremismos violentos. No entanto, tenho as minhas dúvidas sobre se este jovem fosse realmente capaz de fazer algo daquela magnitude, porque, compreendendo a necessidade de agir, ainda bem que se agiu e foi o correto a fazer, não creio que, como já foi dito, resultasse em algo muito sofisticado...

Mas quando a PJ parte para as buscas não sabia o que ia encontrar, muito menos o perfil do jovem...
Certo, mas quando é feito um comunicado conjunto PJ/Ministério Público [MP] já se sabe um pouco mais, provavelmente o suficiente para não imputar de imediato a esta pessoa o rótulo de terrorismo, independentemente de ter sido essa a formulação jurídica utilizada e a suspeita que estava em causa inicialmente.

Quando vi as notícias, comecei a tentar perceber o que tinha acontecido e pedi desde o início cautela às pessoas para não se associar esta tentativa de ato de violência a terrorismo porque pouco se sabia e porque a lei permite ancorar crimes que não são ideologicamente motivados.

Além disso, a experiência que tenho adquirido sobre as características da população portuguesa face ao terrorismo levaram-me a acreditar que seria antes um caso de alguém que não teria motivação político-ideológica.

Tem sido referido, entretanto, que esse comunicado foi feito porque tinha havido uma fuga de informação e a notícia iria ser dada com todo o estrondo por um órgão de comunicação social de forma não oficial.

Devo dizer que, a ser verdade, isso revela uma enorme irresponsabilidade de quem libertou essa informação sem o devido enquadramento, tal como irresponsabilidade por parte de quem a divulgou dessa forma. A nossa comunidade não está preparada para lidar com o terrorismo. É irresponsável quem liberta informação alarmista.

Tem criticado a forma como se comunicou esta situação. Essa foi a parte que correu pior?
O que correu menos bem, como já referi, foi a forma como foi feito o comunicado. Mas sobre isso terá havido razões de base. Mas devia ser de imediato explicado porque é feito aquele enquadramento jurídico num caso destes e evitar ao máximo rotular este jovem como terrorista.

Vai ficar para sempre conhecido como alguém que foi suspeito por um crime de terrorismo não sendo terrorismo. Isto tem implicações diferentes de ser alguém que tentou cometer um ato de violência de outra ordem. Isto tem implicações perante a comunidade. Não vale a pena pensar o contrário.

Nos EUA, por exemplo, os chamados school shootings ou mass shootings não são considerados atos de terrorismo. Como já referi, a nossa comunidade não está preparada. Nunca tivemos um atentado com a magnitude dos ataques em Londres, Madrid ou Paris.

O último ataque terrorista que houve em Portugal foi o que levou, a 10 de junho de 1995, à morte de Alcindo Monteiro e a graves ferimentos em inúmeras outras pessoas que, por serem negras, foram violentamente agredidas.

Isso sim, tal como os mais recentes casos, em 2007 com a acusação de 36 skinheads por crimes de ódio, e em 2020, com outros 27 skinheads acusados por terem atacado comunistas, homossexuais, muçulmanos e negros, foram atentados ideologicamente motivados. Não é o caso deste jovem, pelo que se sabe até agora.

Mas nesses casos que referiu não foi imputado o crime de terrorismo, sendo que, nestes últimos, já estava em vigor a nova lei que permitiria esse enquadramento... Porquê? Qual é o bloqueio?
Há poucos dias foi publicado um artigo científico da investigadora Raquel Silva [Universidade Nova], do qual sou uma das coautoras, precisamente a questionar porque em Portugal não se acusa, muito menos condena, por terrorismo crimes executados por grupos de extrema-direita violenta.

De facto, existe um viés cognitivo que leva a que se considere terrorismo apenas quando perpetrado por pessoas ditas suspeitas, como por exemplo pessoas de cor, estrangeiras, pessoas que professam o islão ou já pertencentes a declaradas organizações terroristas internacionalmente reconhecidas.

Tudo o que é praticado por pessoas, digamos, brancas ou nacionais, não é visto no mundo ocidental como terrorismo, devido a esse viés cognitivo, que é uma distorção de julgamento ou de avaliação que ocorre em determinadas situações, levando à prática de julgamentos errados e a irracionalidade.

Por exemplo, neste caso, existe uma grande resistência por parte do sistema de justiça em conseguir perceber que estes ataques ideologicamente motivados cometidos por pessoas associadas a movimentos de extrema-direita são um ato de terrorismo e normalmente julgam-se e sentenciam-se estes como crimes de delito comum, por vezes agravado pelo ódio racial ou ideológico.

E isto tem uma enorme importância na forma como estes crimes são percecionados pela sociedade. As vítimas sentem-se vítimas de terrorismo, mas não veem nem os tribunais nem a opinião pública a validar como tal. Por outro lado, tem também consequências no efetivo combate a estes extremismos violentos.

Uma coisa é dizer que é um crime de terrorismo, outra é dizer que é uma ofensa à integridade física ou mesmo um homicídio, outra coisa é dizer que é um ato ideologicamente motivado. As armas de combate e prevenção são totalmente diferentes.

Para a prevenção é muito nefasto a justiça chamar terrorismo ao caso do João e não o ter feito na violência de grupos de extrema-direita.

E do ponto de vista da perceção da comunidade?
Tem enorme impacto. Se a justiça não considera como terrorismo, nem uma forma de extremismo, também não haverá esse entendimento por parte da sociedade. Estes crimes vão ser automaticamente menorizados.

A carga emocional que lhe é dada vai ser diminuída e a comunidade vai continuar a perpetuar este tipo de vieses que existem, precisamente porque existe uma instância superior que não o classifica como tal. Na prática leva a que estes tipos de crimes acabem por ser branqueados e as formas eficazes de o combater não estarem a ser utilizadas na sua plenitude.

Em contrapartida nas comunidades "suspeitas" isso mantém-se. Mais depressa se acusa um muçulmano de terrorismo do que alguém da extrema-direita violenta.

No caso do João, pelo perfil que entretanto foi sendo conhecido, rapidamente suscitou até alguma compaixão. Se não fosse branco, português, a reação da comunidade teria sido diferente?
Claro. Quando comecei a tentar explicar nas intervenções que fui fazendo que isto não era terrorismo porque não tinha a tal motivação ideológica , houve logo uma série de pessoas que me disseram que o estava a afirmar porque ele era branco. Não tem nada a ver.

Há uma série de características que diferenciam o terrorismo, seja perpetrado por brancos, negros, católicos ou muçulmanos, ou outros, sendo que a principal é ser ideologicamente motivado. Não foi o caso aqui, pelo que se sabe. Se fosse, não teria qualquer problema em afirmar isso e explicar porquê.

Voltando à comunicação. Como se comunica uma situação destas sem criar alarme social? Está a nossa sociedade, incluindo a comunicação social, preparada?
Há muito que aprender. Foi criada uma atmosfera de sensacionalismo e de alarmismo em torno deste caso. A comunicação social, induzida também pelas próprias autoridades, precipitou-se a colar esta situação a terrorismo.

Obviamente que a comunidade, como não tem experiência a lidar como o terrorismo, fica extremamente alarmada. Tem um impacto psicológico muito maior do que um crime de delito comum. De forma a trabalhar o tema do terrorismo com a comunidade, devia haver uma comunicação mais transparente por parte das autoridades, obviamente dentro dos limites daquilo que se pode comunicar, e uma comunicação social mais eficaz e menos sensacionalista a lidar com estes temas.

Penso que também as autoridades e até a própria comunicação social, com algumas exceções obviamente, deviam ser alvo de formações para saber como identificar estes casos, as suas características específicas, e como lidar e transmitir informação se um caso de terrorismo vier efetivamente a acontecer.

Com a comunidade penso que a melhor maneira de trabalhar o tema do terrorismo sem criar alarme e medo é, por exemplo, através de programas de prevenção da radicalização mais ativos e alargados.

Desde 2015, como deve saber, a Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo prevê um plano de comunicação e um plano de prevenção de extremismos violentos. Até hoje nada se conhece...
Sim. E como a comunicação falhou, seja por que razões tenha sido, deviam ser tiradas ilações porque embora em Portugal seja muito baixa a probabilidade de um atentado é preciso estar-se preparado.

Os jovens portugueses não estão menos sujeitos a este tipo de risco, de aceder a violência na internet e poder querer imitar no mundo real, pois não?
É cedo para fazer essa avaliação porque a pandemia veio alterar o equilíbrio na sociedade. É certo e dado adquirido que a pandemia veio prejudicar a saúde mental de muitas pessoas, incluindo jovens. Por outro lado, em Portugal não há acesso a armas de fogo como nos EUA, o que diminui em larga medida o risco.

Que fatores identifica neste caso que possam ter levado o João a agir desta forma? Coincidem com os dos processos de radicalização violenta que conhece?
Não. Como não é um caso de terrorismo não existe um processo de radicalização.

Sabe-se que ele frequentava grupos onde havia um culto de violência, com vídeos de massacres, tiroteios em escolas...
São coisas diferentes. As pessoas podem ter culto de violência e não estarem ideologicamente radicalizadas. O processo de radicalização implica um extremar, cada vez maior, das posições ideológicas das pessoas, no sentido de um crescente envolvimento e comprometimento com a causa, movimento ou grupo terrorista, que leva as pessoas a sacrificarem-se em nome da ideologia e a cometer violência.

Exige uma radicalização da ordem das ideias. Mais uma vez não foi este o caso. Esta pessoa pode ter o culto da violência mas foi motivado por outros fatores. Como referiu ao DN a psicóloga Ana Vasconcelos, este rapaz deve estar a passar por um processo de enorme sofrimento e isto foi uma forma de o externalizar e chamar a atenção.

Devemos ser muito cautelosos a falar deste caso, das motivações e ainda mais extraordinariamente cautelosos a associar este caso a radicalização.

Já foi dito por peritos que, no caso do João, o facto de ser portador de síndrome de Asperger [SA] não é um fator que tenha influência nesta sua ação - a SA nem sequer é considerada hoje em dia uma doença mental, mas uma condição neuropsicológica. Afastando esse dado desta análise, como é a relação entre doenças mentais e o extremismo violento/terrorismo?
Quando nos anos 1970 se procuraram fatores de ordem individual, problemas de saúde mental, que explicassem que alguém matasse indiscriminadamente outras pessoas, não se encontrou nenhum dado que sustentasse esta hipótese.

Concluiu-se que não havia qualquer relação entre problemas de saúde mental, designadamente psicopatias, e os atos terroristas. Depois estudaram-se os fatores de ordem contextual e as dinâmicas sociais. Percebeu-se que o terrorismo é consciente, racional, exige planeamento e é normalmente executado em grupo.

Nos recentes anos começou a haver alguma escassez de respostas para certos casos e os cientistas sociais começaram a olhar de novo para a saúde mental. O que se constatou é que entre os chamados atores solitários, que apesar de agirem sozinhos radicalizam-se normalmente em grupos das comunidades virtuais, o fator de saúde mental, embora não seja determinante, está presente em alguns casos.

Qual devia ser agora a preocupação das autoridades, tendo em conta as lições aprendidas no caso do João?
Não sendo de direito, julgo que, até por uma questão de perceção da sociedade, deveria ser revista a forma como o terrorismo é definido na lei em Portugal. É um conceito bastante elástico e permite ancorar crimes além do terrorismo. Isto quando, por outro lado, não enquadram nessa mesma lei crimes que são obviamente terrorismo.

Seria importante haver essa clarificação. Deveria também haver uma reflexão sobre a comunicação que foi feita. Se houve uma fuga de informação deveria ser averiguada até às últimas consequências pois o impacto foi muito nefasto. Foi uma irresponsabilidade muito grande.

Outra lição é que comece a haver formação junto às autoridades judiciais, tribunais, MP, sobre o que é de facto terrorismo e quais os crimes ideologicamente motivados. A comunicação social também podia ser alvo deste tipo de formações, pois é a sua mensagem que chega ao público.

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