OMS teme que África possa tornar-se o próximo epicentro do covid-19
Tem sido uma espécie de enigma: afinal, porque quase não há casos de covid-19 em África?, questionavam-se os especialistas. Poderia ser o clima? O maior isolamento do continente? Simplesmente a impossibilidade de fazer testes em grande escala para confirmar a infeção? Tudo isso junto? Não existe uma resposta satisfatória - e o cenário da epidemia pode estar a mudar.
Todos os dias mais Estados africanos anunciam casos da doença e, neste sábado, Angola, com os dois primeiros casos confirmados no território - dois cidadãos que regressaram ao país nos dias 17 e 18 de março, a partir de Portugal -, juntou-se à lista dos que já têm covid-19.
Neste fim de semana foram detetados mais de uma centena de novos casos em 12 países africanos. Cabo Verde tornou-se o primeiro lusófono a registar um caso de infeção pelo vírus e agora chegou a vez de Angola. Nesta altura são já mais de mil os casos em 38 dos 54 países do continente africano.
Depois de semanas em que os doentes foram surgindo a conta-gotas, os números estão agora a crescer, sugerindo que a epidemia pode estar a entrar numa nova fase naquele continente.
Por isso, nesta semana a Organização Mundial da Saúde (OMS) veio soar os alarmes: "A situação [em África] está a evoluir muito rapidamente", afirmou a diretora da OMS África, Matshidiso Moeti, na última quinta-feira, alertando para a necessidade de reforçar os sistemas de saúde no continente, no qual a própria OMS tem estado empenhada.
Desde meados de fevereiro, altura em que não havia ainda nenhum caso de covid-19 na região, que a OMS está a apoiar o reforço da capacidade de diagnóstico da doença, enviando equipamento e fazendo formação para possibilitar rastreios nos países africanos.
Há cerca de um mês, a diretora regional da OMS para África sublinhava ser "fundamental" os países da região "poderem detetar e tratar casos graves de forma precoce, para evitar a propagação de um surto" que acabaria por "desestabilizar os sistemas de saúde frágeis" na região.
No início da epidemia, ainda a doença mal tinha atravessado as fronteiras da China, só dois países em África tinham capacidade para fazer o diagnóstico laboratorial do covid-19. Hoje, 40 estão aptos a fazê-lo. Mas, claramente, não chega.
No final desta semana, Matshidiso Moeti afirmou não estar convencida de que haja neste momento transmissão em larga escala do covid-19 nos países africanos, mas teve de admitir que não existem kits de teste em número suficiente para se poder ter uma certeza absoluta.
O número total de casos em África é de 1007, para uma população global de 1,3 mil milhões de pessoas. Parece pouco, e é muito inferior ao que muitos países europeus estão nesta altura a registar diariamente, como acontece na Itália, que só nesta sexta-feira contabilizou quase seis mil novos casos, em Espanha (2335) ou na Alemanha (4528). Mas o problema é que ninguém sabe exatamente como a situação vai evoluir a partir daqui no continente africano.
Por isso, na última quinta-feira, o próprio diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, preferiu não poupar nas palavras e pediu aos governos africanos "para despertarem".
"A África tem de acordar, o meu continente tem de acordar", apelou o médico etíope que desde 2017 lidera a organização da Nações Unidas para a saúde e que nesta crise global do novo coronavírus tem, talvez, o seu maior desafio.
Com os casos a chegar perto do milhar, dos quais 24 resultaram na morte dos doentes, as recomendações da OMS para a região vão agora no mesmo sentido das que estão já em prática nos países mais atingidos pela pandemia: isolamento e distanciamento social, cancelamento de atividades que propiciem os ajuntamentos de pessoas.
"A recomendação da OMS é que todos os ajuntamentos de pessoas devem ser evitados e tudo deve ser feito para evitar o contágio, admitindo que poderemos chegar ao pior cenário", advertiu Tedros Adhanom Ghebreyesus.
A África do Sul, que tem talvez o melhor sistema de saúde no continente, lidera na contagem dos casos de covid-19 e é o único com mais de uma centena (são já 202) confirmados, depois de ter registado o primeiro doente há menos de duas semanas.
Nos últimos dias, o número de novos doentes não parou de subir, mas também é verdade que a África do Sul é o país que está em melhores condições para detetar pessoas infetadas.
Mesmo assim, outros países até há pouco poupados vieram nos últimos dias juntar-se aos que têm casos positivos e, por isso, há cientistas que temem que a doença esteja silenciosamente a espalhar-se na região.
Bruce Bassett, investigador em análise de dados na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, é um deles. "A minha preocupação", disse à Science, "é que isto se torne numa bomba-relógio".
Não é o único que está preocupado. A juntar a todas as carências e incógnitas que pesam sobre o continente e a forma como poderá ali comportar-se a pandemia, o fardo das várias doenças endémicas que afetam grande parte da população, como o VIH, a malária, a tuberculose, ou a doença do sono, entre outras, não deixam espaço para bons prognósticos, caso a epidemia assuma ali um padrão idêntico ao que mostra na Europa.
"Na verdade, não temos nenhuma ideia de como o covid-19 vai comportar-se em África", resume à Science Glenda Gray, pediatra, investigadora em VIH e presidente do Conselho de Investigação Médica da África do Sul.
Este país anunciou nesta semana que encerrará a fronteira com o Zimbabwe, para impedir a entrada de pessoas infetadas - e indocumentadas - e está a tomar medidas para evitar ajuntamentos.
Entretanto, a Nigéria, o país mais populoso de África, com 200 milhões de habitantes, fechou as escolas da capital, Lagos, e limitou a realização de celebrações religiosas. E há outros, como o Senegal, Angola ou Camarões, a fechar os aeroportos aos voos provenientes dos países mais afetados.
O que vai seguir-se é ainda uma incógnita. Existe a esperança de que o clima mais quente de muitos países do continente possa funcionar como um travão ao contágio rápido a que se assistiu na China e que tem sido o padrão na Europa ou nos Estados Unidos.
Estudos preliminares parecem apontar nesse sentido, mostrando que as temperaturas mais altas possam abrandar a progressão do contágio no covid-19. Seja como for, a África do Sul tem estações marcadas e, se as coisas se passarem como na gripe, é expectável que os casos de coronavírus aumentem mais já a partir de abril.
Uma análise feita por uma equipa do MIT, nos Estados Unidos, aos dados da pandemia da Universidade de Johns Hopkins, do mesmo país, indicam que o maior número de transmissões tem ocorrido em regiões cujas temperaturas se situam entre os 3 e os 13 graus Celsius, enquanto nos países com temperaturas médias acima dos 18 graus registam-se menos de 5% do total dos casos.
Se estes dados se confirmarem, e para isso é ainda necessária mais investigação, é bem possível que a epidemia venha assumir um padrão mais brando em África. Mas só as próximas semanas e os próximos meses poderão trazer uma certeza. E, enquanto isso não acontece, a OMS recomenda que África se prepare para o pior.