O lado obscuro do caso Navalny
Figura de proa da ala pró-ocidental da oposição russa, ex-candidato presidencial contra Putin, Aleksei Navalny adoeceu subitamente, no passado dia 20 de agosto, num voo entre Tomsk e Moscovo. Dois dias depois era transportado para um hospital de Berlim.
As autoridades alemãs foram prontas no veredicto: Navalny tinha sido envenenado com novichok, o mesmo agente neurotóxico que teria sido utilizado em 2018 no caso, nunca esclarecido, do agente duplo Sergei Skripal.
O apelo não cai em saco roto. A União Europeia ameaça com sanções. Jens Stoltenberg, o secretário-geral da Aliança, promete uma "resposta internacional". O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, juntou-se ao coro, garantindo que são altos responsáveis russos os responsáveis pelo atentado.
A imprensa internacional marca o compasso. Os editoriais ameaçam: os russos só entendem a linguagem da força. O Spiegel escreve a 3 de setembro: "chegou a altura de sermos duros", "é tempo de atingir a sério o homem do Kremlin".
O diálogo entre Berlim e Moscovo sobe de tom. O ministro dos Negócios Estrangeiros Serguei Lavrov acusa a Alemanha de "fazer bluff". O Kremlin fala de campanha de "desinformação", "histeria" e de uma "agenda política suja" "para "justificar sanções" contra a Rússia.
Mas nos últimos tempos estava mais longe da ribalta política e dificilmente poderia ser visto como uma ameaça ao Kremlin. Será difícil perceber porque teria Putin escolhido esta altura para tentar eliminar o rival. Tanto mais quando o líder russo calcularia decerto que lhe apontariam de imediato o dedo.
DestaquedestaqueNavalny é uma figura política complexa. Apontam-lhe posições políticas controversas e ligações aos meios da extrema-direita e aos oligarcas russos.
Navalny é uma figura política complexa. Apontam-lhe posições políticas controversas e ligações aos meios da extrema-direita e aos oligarcas russos. A sua campanha contra a corrupção valeu-lhe alguma popularidade, sobretudo entre os jovens, mas também não lhe faltam inimigos. Não seria mesmo de excluir a hipótese de uma ação montada para comprometer Putin.
É igualmente intrigante a aparente facilidade com que as autoridades russas permitiram a evacuação de Navalny para um hospital alemão, sujeitando-se a um provável diagnóstico incriminatório. O laboratório de Munique que apurou a presença de novichok no organismo está sob o comando do Exército alemão. E a ONG que organizou a evacuação de Navalny para a Alemanha, a Cinema for Peace, com base em Berlim, tem laços diretos com influentes líderes ocidentais.
E o caso Navalny assumiria outras dimensões quando Angela Merkel, defensora convicta do Nord Stream 2 - um ambicioso projeto de gasoduto destinado a abastecer a Alemanha com gás russo -, admitiu pela primeira vez rever a posição alemã quanto ao projeto.
Os Estados Unidos estão há meses empenhados numa intensa campanha para travar o Nord Stream 2 (NS2). Lançado em 2018, o projeto propõe-se aumentar para o dobro o fornecimento de gás natural russo à Alemanha. Completado a 90%, o pipeline está suspenso a pouca distância da costa germânica desde que entraram em vigor as sanções americanas no final de 2019.
Trump diz que quer proteger a Europa contra uma "excessiva dependência energética" da Rússia. Mas o Nord Stream 2 representa ao mesmo tempo um obstáculo à ambição de vender o gás de xisto americano à Alemanha e à Europa. Mais cara do que o gás russo, a alternativa americana teria custos financeiros de monta para a Europa.
DestaquedestaqueTrump diz que quer proteger a Europa contra uma "excessiva dependência energética" da Rússia. Mas o Nord Stream 2 representa ao mesmo tempo um obstáculo à ambição de vender o gás de xisto americano à Alemanha e à Europa
A polémica assume ao mesmo tempo uma forte dimensão política. Qualquer tentativa de parar com o NS2 equivale a "uma tentativa de erigir uma 'Cortina de Ferro'" - disse à Deutsche Welle Katia Iafimova, investigadora do Oxford Institute for Energy Studies Natural Gas Research Program.
As pressões de Washington têm mesmo dado azo a um evidente mal-estar nas relações germano-americanas. Nos meios políticos germânicos falou-se até de "atentado à soberania alemã". Um eurodeputado alemão, citado pela Deutsche Welle, alertou que ceder no caso do NS2 "abre a porta a novas pressões americanas" noutras áreas. E a Casa Branca anunciou em julho a retirada de 12 mil militares americanos da Alemanha em "punição" pelo arrastar de pés de Berlim face às exigências de um maior contributo para as despesas da NATO.
"Não me parece apropriado ligar este projeto com a questão Navalny", dizia há dias Merkel. A chanceler alemã diz agora que "nada se pode excluir" quanto ao NS 2.
Merkel está sob enorme pressão. A Polónia entrou entretanto no coro dos que exigem o fim imediato do Nord Stream 2 e Varsóvia não esconde que o objetivo é atingir a Rússia.
O facto é que já antes do caso Navalny se assistia a um crescente endurecimento nas posições de Angela Merkel face a Moscovo. A crise da Bielorrússia fornece bons exemplos.
O caso Navalny assenta que nem uma luva neste quadro. A discórdia entre Berlim e Moscovo representa um trunfo precioso para Trump.