Fevereiro de 2020: "Processo de desconstrução e pré-falência", "dificuldades inéditas", "mínimos" de efetivo "nunca verificados", "dificuldades de sustentação e manutenção" - factos denunciados por um grupo de Generais das Forças Armadas (FA), entre os quais três ex-chefes do Estado-Maior numa carta de oito páginas enviada ao Presidente da República..Junho de 2022: "Envelhecimento e obsolescência dos meios militares", "bloqueios" à execução da Lei de Programação Militar (LPM), quadros de pessoal "bastante abaixo" das necessidades, foram alguns dos obstáculos identificados pelo ex- Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, Almirante Silva Ribeiro, para as nossas Forças Armadas enfrentarem os "desafios futuros"..Março de 2023: 13 militares do navio NRP Mondego, que se encontra na Madeira, recusaram-se no sábado a embarcar para cumprir uma missão, invocando falta de condições de segurança. Entre as várias limitações técnicas invocadas pelos militares constava designadamente o facto de um motor e um gerador de energia elétrica estarem inoperacionais..Os avisos sobre a degradação dos meios nas FA vieram das mais altas patentes, têm sido insistentes nos últimos anos, mas a "revolta" acabou por ser protagonizada pelos conhecidos na gíria militar por "homens das máquinas" de um navio da Marinha..Quatro sargentos e nove praças formaram militarmente no cais e recusaram navegar naquela embarcação. São eles o prenúncio de uma "tempestade" que se está a formar nas FA?.Citaçãocitacao"A tempestade já está em cima de nós, já está instalada. Temos é disfarçado por amor à camisola e milagres que vamos fazendo para manter os meios operacionais. Há muito que alertamos para a falta de condições. Cada vez há mais missões e menos meios e gente. ."A tempestade já está em cima de nós, já está instalada. Temos é disfarçado por amor à camisola e milagres que vamos fazendo para manter os meios operacionais. Há muito que alertamos para a falta de condições. Cada vez há mais missões e menos meios e gente. É uma tempestade que já vem a ser formada há muito tempo", afirma ao DN o presidente da Associação de Nacional de Sargentos (ANS), Lima Coelho..Nada que o próprio Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA),Gouveia e Melo não saiba. Numa recente audição na Comissão de Defesa, afirmou que as questões relativas à manutenção de navios da Marinha, devido a carência de verbas, bem como a falta de pessoal, que obriga à repetição de escalas para os militares são os problemas mais sentidos no ramo..Frisou ainda que os 40 milhões de euros que tinha anualmente para a manutenção dos seus navios, estava longe de ser suficiente. Gouveia e Melo pedia 70 milhões e, sabe o DN, o governo já terá concordado com esta verba a partir deste ano, no âmbito da revisão Lei de Programação Militar (LPM) que está a ser concluída..Ainda assim, ainda longe de valores na primeira década deste segundo milénio, em que a manutenção na Marinha chegou a contar com cerca de 100 milhões de euros por ano, segundo recorda ao DN um Oficial General do ramo..Também por isso, por ser público este contínuo de degradação, Lima Coelho apela á Marinha que "faça a devida análise e perceba que é importante não matar o mensageiro. Estes militares tiveram uma atitude de grande coragem, uma grande consciência profissional, como cidadãos e militares. Não abandonaram o seu trabalho. Formaram militarmente no cais e marcaram a sua presença. Não havia condições para ir para o mar. A Marinha deve ponderar sobre a seriedade desta postura"..Para já, Gouveia e Melo ainda não se pronunciou pessoalmente sobre o caso, como fez acerca dos fuzileiros, a propósito do homicídio do agente da PSP Fábio Guerra..Nessa altura, recorde-se, o capelão ao serviço daquela unidade de elite criticou o CEMA nas redes sociais, mas acabou por ser perdoado por Gouveia e Melo e enviado para o Exército. Neste caso do NRP Mondego, a Marinha instaurou processos disciplinares e criminais, por insubordinação, desobediência e usurpação de funções (por entender que a competência da avaliação de segurança é dos oficiais a bordo e não de sargentos ou praças). Incorrem em penas disciplinares graves e penas de prisão que podem ir até aos quatro anos..Na sua ponderação, Gouveia e Melo terá de equilibrar a sua autoridade de disciplina e exemplo, mas ao mesmo tempo, não ajudar a que este caso sirva de rastilho, com este grupo dos 13 a tornar-se uma espécie de "mártir" e voz para um descontentamento geral, mas que tem estado controlado..Ao que o DN conseguiu saber, o CEMA só terá sido informado quando a "revolta" já era facto consumado e não conseguiu evitar o inevitável impacto político que resultou, já com vários partidos políticos a pedir a presença da Ministra da Defesa no Parlamento..Internamente, apesar de se saber da situação dos navios (segundo a Associação de Sargentos há outros em condições semelhantes), a atitude dos militares está a ser, em geral, criticada.."A missão foi atribuída e o comandante do navio aceitou, tal como os outros oficiais a bordo (um 1º tenente ao comando, um imediato e um engenheiro de máquinas). É a eles e só a eles que compete fazer esta avaliação de segurança. O Comandante Naval, que é o superior hierárquico direto, falou com o comandante e disse que se o navio não respondesse que podiam cancelar a missão. Deu-lhe liberdade de decisão. Mas o pessoal das máquinas decidiu que não, sem ter qualquer competência para essa avaliação. A responsabilidade dessa decisão é dos oficiais", sublinha um oficial que pediu anonimato..Há também quem arrisque teorias mais "geopolíticas": "a questão de fundo é que quem estará a apoiar isto é a ANS e quem manipula a ANG é o PCP. Terá sido coincidência terem abortado uma missão que se destinava a controlar um navio russo (Akademic) que passava pelas nossas águas territoriais?", indaga outra fonte militar..Lima Coelho sorri. "Nem o príncipe Maquiavel teria tanta imaginação. Não vale a pena sequer responder. O relevante aqui é a essência do problema e fosse qual fosse a missão, ia acontecer a mesma coisa", garante..O ex-CEMA, Melo Gomes, não quis prestar declarações sobre este caso, mas no podcast "Soberania", publicado nesta terça-feira, tinha salientado alguns problemas que têm ajudado a formar a "tempestade": a "insustentável" perda de efetivos nas Forças Armadas (de 2020 a 2022 diminuíram 30%, com a Marinha a ter "problemas gravíssimos com os técnicos a irem-se embora e mesmo pessoas dos quadros permanentes"; e os vencimentos.."Atualmente, um oficial das Forças Armadas ganha menos 15% do que um oficial da GNR. Um sargento das Forças Armadas ganha menos 12,5% do que um sargento da GNR e uma praça das Forças Armadas ganha menos 28% do que uma praça da GNR, e a GNR também já não é bem paga. Não sou eu que estabeleço as prioridades, é governo, e claro que há dificuldades em vários setores do país, mas não podemos ter uma situação em que os militares das Forças Armadas são os mais mal pagos de todos os servidores do Estado", advertiu..O General Alfredo Cruz, ex-Comandante Operacional dos Açores e do Centro de Operações Conjunto da NATO, acredita que Gouveia e Melo "vai atuar de acordo com a "grave situação de indisciplina" dos 13 militares, que classifica como um "ato de insubordinação intolerável" pois põe em causa "a verdadeira essência das forças militares"..Mas, acrescenta, " é preciso ir mais fundo, para compreender a razão de um ato de indisciplina tão grave". "É bem conhecido que a insatisfação dos militares grassa nas nossas Forças Armadas, contudo a motivação sempre continuou presente. Na minha opinião, esta situação resulta de falta de motivação, e como tal deverá ser preocupação, primeiro dos militares e depois dos políticos, o porquê de tudo isto estar a acontecer", afirma.."Está tudo ligado ao desinvestimento, às condições de bem-estar da tropa aos problemas na saúde militar, aos salários, à baixa prontidão dos sistemas de armas, e logicamente tudo conduz à insatisfação e à desmotivação. O resultado do desinvestimento na segurança e defesa, há mais de 20 anos, está à vista, no estado depauperado das nossas Forças Armadas, sem prontidão operacional, sem dinheiro para o aprontamento dos sistemas de armas e quase sem munições"..Questionado pelos jornalistas sobre a recusa dos 13 militares, o Presidente da República e Chefe Supremo das Forças Armadas defendeu que "é uma das prioridades no presente e no futuro próximo a manutenção" de equipamentos militares..Esta posição de Marcelo Rebelo de Sousa vai ao encontro do que já foi garantido pela ministra da Defesa, Helena Carreiras, que, numa recente entrevista DN/TSF afirmou que a verba para a manutenção da próxima LPM será de 40% do total (era 25%)..No caso da Marinha aumentará, como já foi referido, 75%, mas não será de um dia para o outro. A recuperação será lenta, quando se bateu tão fundo. Resta também saber como será executada, uma vez que os estaleiros do Alfeite depauperados de recursos técnicos suficientes.